Publicado com permisssão de Kehot Publication Society
Vamos contar a você uma história notável sobre o Rei Shaul. Não, não o Rei Shaul, filho de Kish, que é bem conhecido por nós todos pelo Tanach. O “rei Shaul” da história de hoje foi um rei na Polônia há cerca de quatrocentos anos, e foi rei por apenas um dia!
Você vai concordar que isso parece inacreditável, algo como uma lenda. Mas mesmo assim, tem sido aceito como um fato histórico, e a família em questão tem observado isso como tradição, e o bisneto escreveu tudo exatamente como foi contado a ele pelo seu próprio pai.
Então, eis a história.
Shaul, cuja família originalmente era Katzenelenboigen, e mais tarde, Vall (em alemão o nome significa “escolhido”), nasceu na cidade de Pádua, na Itália, por volta do ano 5300 (1540). Seu pai, Reb Shmuel Yuda Katzenelenboigen, filho do famoso Rav Maharam de Pádua, era o rabino daquela cidade.
O jovem Shaul era um menino brilhante, fazia excelente progresso nos estudos sob a orientação e ensinamento de seu pai e, quando chegou a uma certa idade, seu pai o enviou para a yeshivá de seu bom amigo Rabi Shlomo Shur em Brisk, que então era considerada a melhor yeshivá em toda a Polônia e Lituânia.
Naquela época vivia na Polônia uma das pessoas mais importantes da aristocracia polonesa, o Príncipe Radzivil. Ele também era um amigo muito chegado do Rei Batori, e era seu Primeiro Ministro.
O Príncipe Radzivil era o homem mais rico na Polônia. Um dia ele decidiu fazer uma viagem pelo mundo, visitar muitos países e conhecer seus povos. Reuniu um grande número de servos e escravos para assegurar seu conforto onde quer que estivesse. E, para garantir uma boa diversão, convidou alguns amigos para acompanhá-lo. Mas dinheiro e “tempos bons” não duram para sempre. Ele e os amigos logo gastaram toda a grande quantia que ele tinha levado, e de repente percebeu que isso não apenas era o final de seus “bons tempos”, mas ele não tinha dinheiro nem para voltar à sua casa na Polônia.
O Príncipe Radzivil estava na cidade italiana de Pádua. Agora tinha restado apenas um servo, pois teve de demitir todos os criados, sendo incapaz de pagá-los ou alimentar seus escravos. O príncipe estava realmente numa situação terrível. Era muito orgulhoso para divulgar que estava sem qualquer dinheiro. Porém, tinha de fazer alguma coisa. Teve uma ideia: iria procurar o Rav da cidade que certamente o ajudaria nessa situação desagradável.
Então enviou seu servo de confiança para conseguir um encontro imediato. Quando o Rav soube que era o Príncipe Radzivil que queria vê-lo, enviou resposta pelo servo dizendo que o príncipe era bem vindo em sua casa e seria seu hóspede.
Nesse ínterim, o Rav preparou um banquete preparado para o príncipe, e convidou os judeus mais proeminentes e respeitados de Pádua para estarem presentes. O príncipe estava desfrutando da farta refeição quando, para sua surpresa, ouviu seu anfitrião, o Rav, dizer para seu Shamash:
“Por favor, vá até o Mercado de Escravos e compre-me um escravo.”
Naqueles dias as pessoas compravam ou vendiam escravos no mercado como se fossem gado. E os donos tinham o direito de fazer com eles tudo que quisessem, até mesmo matá-los, e ninguém tinha o direito de interferir. O Rav tinha falado privadamente ao Shamash o que ele deveria fazer, pois queria ensinar uma lição ao príncipe. Então, quando o Shamash voltou do mercado com um escravo, o Rav chamou em voz alta:
“Leve ele à sala nos fundos e ponha um fim ao seu sofrimento!”
O Rav falou essas palavras tão calmamente, que o Príncipe Radzivil ficou espantado, mas nada disse: apenas deu de ombros e continuou comendo.
O Shamash logo retornou e disse: “Rabi, cumpri todas as suas ordens.”
Bem, agora eu quero que você volte ao mercado e me traga um escravo ainda mais simpático e mais forte que o primeiro,” disse o Rav ao Shamash, que saiu sem dizer uma palavra.
Quando o Shamash retornou com o segundo escravo, o Rav balançou a cabeça aprovando e disse: “Agora faça com o escravo o mesmo que fez com o primeiro.”
Ele logo retornou e disse que tinha cumprido a ordem de seu chefe.
Mais uma vez, o Rav ordenou ao Shamash que trouxesse um terceiro escravo, melhor ainda que os outros dois. Isso, o Shamash fez. O Príncipe Radzivil prestou pouca atenção ao que estava acontecendo. Mas, quando o mesmo procedimento ocorreu uma quarta vez, então uma quinta, o príncipe não pôde esconder seu assombro e disse ao Rav: “Meu bom amigo, não posso deixar de lhe perguntar, qual é o seu objetivo em gastar tanto dinheiro para comprar escravos, então mandando-os matar sem benefício para você, a menos que… nossos sacerdotes estejam certos sobre aquilo que dizem sobre vocês, judeus…”
“Então eles dizem que nós judeus somos pessoas sedentas de sangue que usam sangue humano? É nisso que você acredita, também?”, o Rav indagou ao príncipe.
O Príncipe Radzivil parecia bem desconfortável, mas o Rav o tomou pelo braço e disse: “Venha comigo; quero lhe mostrar algo.”
Dizendo isso, ele levou o príncipe à sala dos fundos onde, para sua surpresa, o príncipe viu todos os cinco escravos, vivos e alegres, sentados numa mesa, comendo e bebendo alegremente. Até as correntes dos escravos tinham sido removidas, e eles se sentavam livremente e à vontade.
“Quero que veja e seja convencido, Príncipe Radzivil, que os libelos de sangue dos quais nossos inimigos nos acusam é uma falsidade vergonhosa, desgraçada!”
“Nossa Torá nos proíbe até de ferir um animal, quanto mais um ser humano. E nossa Torá também nos proíbe de usar sangue deanimais ou aves que somos permitidos a usar para alimento (após a shechitá, o abate conforme a lei judaica, sem dor). É por isso que primeiro molhamos e salgamos a carne que vamos usar antes de cozinhá-la. O mais notável é que, até a menor mancha de sangue num ovo o torna inadequado para nosso uso. E apesar de tudo que lhe dissemos, e nossos inimigos sabem tudo a respeito, eles ousam nos acusar de crime abominável de usar sangue humano no cumprimento da nossa religião! Quantos dos nossos irmãos inocentes foram torturados e até condenados à morte por causa dos infames libelos de sangue!
“Não, meu amigo, todo que tenha juízo pode ver que o horrível libelo de sangue é apenas um resultado do cego e vergonhoso ódio aos judeus. Incidentalmente, quero que você saiba que os cinco escravos que comprei hoje são meu presente para VOCÊ, e confio que vai tratá-los não de maneira pior do que estou fazendo.”
“Por favor, Rabi, perdoe-me se ousei suspeitar de você por sequer um momento,” disse o príncipe, com o rosto vermelho de vergonha.
“Isso não é importante. O que é importante é que ao voltar pra casa você vai garantir que as pessoas saibam que libelos de sangue contra os judeus são mentiras. E você, Príncipe Radzivil, não vai permitir qualquer perseguição contra judeus inocentes.”
‘Eu lhe prometo de todo o coração,” disse o príncipe fielmente. E, quando o Rav o presenteou com o dinheiro que ele precisava, pouco antes de partir, o príncipe voltou-se ao Rav e disse, com sentimento: “Como posso retribuir a você por todos os ensinamentos que me mostrou! Naturalmente, além de devolver o dinheiro que você me emprestou,” ele disse com um sorriso.
“Não quero recompensa por aquilo que estou fazendo alegremente por você, mas há muito que você pode fazer para melhorar a situação dos meus irmãos judeus na Polônia. Como recompensa do empréstimo, meu filho está no momento estudando numa yeshivá em Brisk, e você pode dar a ele o dinheiro e ele irá ver que chega a mim. Não sei de nada que você precise fazer para ele pessoalmente, nesse momento, mas se numa data futura ele puder pedir ajuda a você, não tenho dúvida de que você será bom o suficiente para ajudá-lo, alguém que ele diga a você que está em necessidade de sua bondosa ajuda”
O Príncipe Radzivil imediatamente anotou o endereço do filho do Rav, Shaul, e saiu muito satisfeito e de bom humor.
Assim que o Príncipe Radzivil chegou em casa, enviou para Shaul o dinheiro que seu pai lhe tinha emprestado sem pedir qualquer garantia: apenas sua palavra que ele iria pagar. O príncipe estava tão impressionado com Shaul, admirando sua inteligência e comportamento, que imediatamente ofereceu a ele o cargo de ser seu secretário pessoal, e também o gerente de seus vários imóveis.
Shaul prontamente aceitou, vendo que iria ficar numa excelente posição de poder ajuda seus irmãos pobres e necessitados na Polônia. Em pouco tempo ele tinha ido tão bem que se tornou um homem rico, além de levar prosperidade ao seu “chefe”.
Shaul “Yuditch” (o filho de Yuda) como era conhecido, era agora famoso e amado na corte real. Todos o admiravam e respeitavam pela sua excepcional habilidade, honestidade, bondade e seu orgulho por ser um judeu.
No ano 5346 (1586) quando Shaul Yuditch tinha quarenta e seis anos de idade, o rei polonês Bartori morreu. Todos os príncipes poloneses se reuniram para escolher um sucessor para governar o pais, pois o Rei Bartori não deixara um herdeiro. A lei do pais era que um novo rei deveria ser escolhido no mesmo dia em que o rei morrera. O debate continuou e os príncipes não conseguiam concordar sobre um sucessor. Nenhum tinha votos suficientes para se tornar o eleito. O sol estava lentamente baixando, e a situação se tornava desesperadora.
De repente, o Príncipe Radzivil levantou e chamou: “Amigos! Faltam apenas alguns minutos para o pôr do sol e ainda não escolhemos um rei. Isso não apenas será uma desgraça, mas também é contra a lei do nosso pais. Tenho uma sugestão a fazer e estou certo de que vocês concordarão com ela. Todos conhecem e respeitam o candidato. Ele vai agir como um rei até decidirmos unanimemente quem será nosso próximo rei. Podemos confiar nele e isso nos dará tempo para fazer a escolha certa, sem pressa. Podemos nos recolher à noite sem preocupação, e amanhã, podemos nos reunir novamente e resolver esse importante assunto para satisfação de todos.”
“E quem pode ser este candidato?”, todos perguntaram, prontos para acabar com o stress e toda a fricção que o cansativo debate tinha causado.
Com um sorriso, o Príncipe Radzivil apontou para seu secretário Shaul que estava sentado perto dele. “Hurra! Vida longa ao nosso rei!” eles cantaram em uníssono.
A coroa real foi trazida imediatamente e colocada sobre a cabeça de Shaul. Ele foi levado ao trono real, enquanto as trombetas tocavam para proclamar a todos que um novo rei tinha sido escolhido e coroado.
Como era o costume naquela época, todos os arquivos reais e os livros da lei foram trazidos imediatamente para o rei recém coroado, e em honra à sua coroação, ele entregou novos editos, novos decretos. Agora o Rei Shaul, sabendo que não seria um rei por muito tempo, imediatamente emitiu alguns decretos que iriam facilitar a vida de seus irmãos com problemas na Polônia. Um dos decretos era que todo aquele que matasse um judeu deveria receber o mesmo castigo daquele que matasse um membro da aristocracia polonesa, ou seja, a pena de morte, e não ser liberado com pagamento de dinheiro pelo seu crime.
Cedo pela manhã começou um processo de delegações levando presentes para o novo rei. Uma delegação era de todos os príncipes poloneses, Príncipe Radzivil era um deles, com o Príncipe Sigismund na frente. O rei Shaul recebe a todos calorosamente e com cumprimentos amigáveis. Disse a eles para lidar gentilmente com todos. Após falar com cada um individualmente ele então voltou-se ao Príncipe Sigismund. O Rei Shaul desceu do trono, retirou a coroa real da cabeça e a colocou sobe a cabeça do Príncipe Sigismund.
Todos os príncipes observaram a cena até que o Rei Shaul declarou:
“Meus amigos! Como vocês apontaram o Príncipe Sigismund para dirigir sua delegação de príncipes, tenho isso como um sinal de que ele é o mais adequado entre os nobres para tornar-se o rei da Polônia.
A escolha era obviamente certa e foi aprovada por todos. Portanto o novo rei da Polônia era agora Sigismundo, o Terceiro. Mais tarde, quando o Príncipe Radzivil e seu secretário pessoal Shaul estavam sozinhos ele disse a Shaul:
“Por que você não me coroou como rei? É essa a maneira de me retribuir como amigo?”
“Meu amigo”, respondeu Shaul. “Como teria parecido aos outros príncipes? Eles certamente teriam pensado que fizemos um acordo secreto; que você me faria rei por um dia e então eu o faria rei por toda a vida! Nenhum de nós teria saído de uma situação dessas com uma boa impressão.”
O Príncipe Radzivil teve de admitir que Shaul estava certo e tinha agido sabiamente na questão. Então permaneceu sendo seu amigo. Shaul agora era conhecido como Vall (escolhido) – porque tinha escolhido ser rei por um dia, e depois tinha escolhido o novo rei da Polônia.
Shaul era querido e admirado por todos e, naturalmente, não menos pelo novo rei Sigismundo que o recompensou com uma medalha real. Shaul, como pode-se adivinhar, foi importante em fazer muitos favores aos seus irmãos judeus, especialmente aqueles em Brisk. Ele criou yeshivot e micvaot, e apoiou Talmidei Chachamim (eruditos de Torá) muito generosamente.
Antes de sua morte em 5377 (1617) aos setenta e sete anos de idade, em Brisk, ele deixou um testamento pedindo aos seus filhos para seguirem os seus passos, fazendo o bem e sendo humildes.
E assim concluímos a notável história de Shaul Vall, o rei judeu da Polônia que reinou por um dia.
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