A constelação de heróis chassídicos está coroada com homens notáveis, e cada um deles contribuiu muito para o bem estar social e espiritual do nosso povo. Bem menos conhecidas são as mulheres cuja influência no movimento raramente foi documentada e é muito mais difícil de pesquisar.
Exceções notáveis incluem Odel, filha do Baal Shem Tov: Temerel, a magnata que usou sua riqueza e sua influência para espalhar profundamente o chassidismo na Polônia; Devorah Leah, filha, irmã e mãe dos três primeiros Rebes de Chabad; e Malka, a reverenciada primeira Rebetsin de Belz.
Porém a história em grande parte tem deixado de lado a notável história de Guittel, filha de Rabi Meshulam Feivish de Kremnitz e esposa de Rabi Avraham o Anjo (assim chamado pelo seu comportamento angélico). Na verdade, a maioria das informações que temos sobre ela vem do livro Shivchei Habesht, que registra muitos detalhes fascinantes de sua vida, mas omite seu nome. 1
Guittel provavelmente nasceu por volta de 1753 em Kremnitz, onde seu pai, um descendente da prestigiosa família Horowitz, devotava suas noites e dias ao estudo de Torá, enquanto sua mãe assumia responsabilidade pelo bem estar financeiro da família.
Escolhida para Casar
Quando ela tinha doze anos de idade, dois sábios veneráveis, Rabi Zushe de Anipoli e Rabi Yehuda Leib Hakohen, chegaram à sua porta.2
Eles disseram à mulher da casa que tinham sido enviados pelo notável mestre chassídico, Rabi Dovber de Mezrich, cujo filho, Rabi Avraham com 25 anos, estava pronto a se casar (ele tinha enviuvado há dez anos da sua esposa, com quem tinha se casado aos 15 anos de idade).
Um ascético que preferia uma vida espiritual, Rabi Avraham não estava inclinado a se casar novamente, mas seus pai e outros o forçavam dizendo que o ideal chassídico é viver com dois pés no chão e criar uma família. Assim que o jovem concordou em se casar, Rabi Dovber enviou os dois homens, entre seus alunos mais prestigiosos, a Kremnitz para arranjar o shiduch. Ele disse-lhes para concordar com quaisquer condições que os futuros parentes por afinidade pudessem ter. A única coisa que eles precisavam insistir era que as núpcias fossem realizadas sem demora.
A mãe de Guittel a princípio estava cética sobre o casamento. Sua filha ainda era muito jovem, e eles nem pensavam em casamento para ela. Além disso, por que ela deveria casar-se com um homem com o dobro da sua idade, o filho de um rabino que ela não tinha ouvido falar?
Mas antes de dispensá-los imediatamente, ela sugeriu que eles declarassem o caso perante seu marido, que estava na sinagoga estudando Torá. Ciente do Maguid, e confiante de que seu filho deveria ser um erudito notável e homem sagrado, ele deu sua bênção para a união.
E então o escriba foi chamado, e os tenaim (contratos delineando os planos do casamento) foram escritos. Como eles tinham sido instruídos, os rabinos visitantes contaram à família que eles poderiam traçar o plano como julgassem adequado. A única estipulação sobre a qual eles insistiam era que o casamento ocorresse o mais rápido possível. Após algumas idas e vindas, aquilo também foi resolvido, e mãe e filha logo se viram numa carruagem, rumando a nordeste para Mezeritch (Rabi Horowitz escolhera permanecer em casa, em vez de perder vários dias ou até semanas de precioso estudo de Torá).
Enquanto eles viajavam, a mãe de Guittel pensava sobre o estranho decorrer dos eventos. Eles teriam tomado a decisão certa? Quem eram essas pessoas com quem sua filha logo estaria unida? Quando passavam pela cidade de Rivne, ela ficou agradavelmente surpresa pela grande multidão que surgiu para cumprimentar a ela e sua filha, que em breve se tornaria a esposa de Rabi Avraham o Anjo.
A cena se repetiu novamente quando elas chegaram a Mezeritch, onde a cidade inteira se aproximou para acompanhá-los até a cidade dando tributo como se dá à realeza, O casamento foi realizado com grande júbilo, e vinho e pensamentos de Torá fluíram livremente pelos sete dias de celebração.
A mãe de Guittel partiu logo após o termino das festividades, satisfeita por sua filha estar em um bom lugar.
Quanto a Guittel, ela se viu vivendo como sua mãe. Ela trabalhava duro administrando uma loja, enquanto seu marido passava as noites e os dias em reclusão, estudando e rezando.
Ela logo encontrou um admirador e mentor em seu sogro, aquele que a tinha escolhido em primeiro lugar.
Ela e seu marido foram abençoados com filhos. Yisrael Chaim, Shalom Shachna, e possivelmente outros.
Sonhos
Uma noite ela teve um sonho aterrorizante. Ela se viu entrando num palácio brilhante, dentro do qual ela avistou veneráveis sábios, sentados em conselho.
Ao se aproximar, ela os ouviu chamando seu marido para juntar-se a eles, aparentemente significando que seu tempo na terra estava chegando ao fim e que estava sendo chamado para juntar-se à yeshivá celestial.
“Não, vocês não podem levá-lo!” ela gritou com eles, enumerando vários motivos pelos quais ele ainda precisava viver.
E com isso, o sonho terminou.
Guittel acordou assustada mas decidiu não contar a ninguém sobre o sonho, e deixou-o de lado sem dar importância. Mas então a mesma cena se repetiu, mais e mais vezes. Na terceira noite, depois que ela apresentou seu melhor argumento para que seu marido permanecesse entre os vivos, os sábios responderam: “Veja, você argumentou bem, e agora vamos conceder-lhe 12 anos como presente.”
Na manhã seguinte, seu sogro a cumprimentou calorosamente e a abençoou pelos seus esforços, dizendo a ela que seu marido iria viver realmente por mais 12 anos. Mesmo depois que seu sogro, o Maguid, faleceu em 1772, ela manteve sua conexão espiritual com ele, e recebia orientação noturna dele.
Numa quinta-feira à noite, seu sogro apareceu a ela em um sonho e lhe disse para trocar seus aposentos de dormir com os de seu marido. Na manhã seguinte, ela compartilhou o sonho com o marido, que o considerou sem sentido . Afinal, ele raciocinou, se seu pai realmente desejava comunicar isso, por que não veio até ele, seu filho?
Tragicamente, um incêndio irrompeu na área de dormir de Rabi Avraham, e os muitos livros sagrados que ele guardava lá foram queimados.
Viuvez
Pouco tempo depois, Rabi Avraham viajou à cidade de Chvastov (Fastov), onde foi nomeado maguid – guia espiritual e pregador. Ele mandou um recado para sua esposa vir ao seu encontro.
Mais uma vez, seu sogro veio até ela em um sonho, advertindo-a a não viajar para Chvastov. Sua recusa causou um grande rebuliço, e muitos dos principais sábios chassídicos (incluindo Rabi zusha e Rabi Yehuda Leib) tentaram persuadi-la a ir até onde seu marido certamente a esperava.
Não demorou muito para chegar a notícia de Chvastov: Rabi Avraham tinha falecido. Os 12 anos haviam se passado.
Após sentar shivá pelo seu marido, a própria Guittel viajou para o leste, para Chvastov, para coletar os pertences de seu marido e resolver seus negócios.
Quando ela chegou, os habitantes da cidade a saudaram calorosamente e organizaram uma recepção para ela no Shabat. No decorrer do evento, eles tentaram confortá-la pela sua perda, mas sem sucesso.
Durante a terceira refeição – um momento místico, quando melodias lindas são cantadas e os segredos mais profundos da Torá são compartilhados – quase toda a população judaica de Chvastov compareceu.
Enquanto as pessoas cantavam, ela sentou-se em silêncio na poltrona, imóvel, perto da dona da casa. Enquanto a cantoria continuava noite adentro, ela adormeceu.
Mais uma vez ela se viu fora de um palácio vistoso. Dessa vez, ela abriu a porta e foi saudada pelo seu marido, cuja face estava tão radiante como o sol. Eles foram acompanhados os por vários homens de aparência venerável.
Rabi Avraham pediu aos homens que se sentassem e se dirigiu a eles:
“Senhores da corte,” ele começou. “Minha querida esposa tem motivos para reclamar de mim – e ela está certa. Por anos vivi uma vida espiritual e ela foi privada de um marido totalmente presente. Eu agora imploro que ela me perdoe.”
“Eu alegremente perdôo você de todo o coração,” respondeu Guittel.
“Ela certamente tem o direito de se casar novamente, especialmente porque ela tem apenas 24 anos de idade, e não posso impedi-la de fazer isso. Porém, se ela escolher não se casar, garanto que nada lhe faltará, nem para ela nem para nossos dois filhos. Na verdade, antes de ela voltar para casa, verá quão bem os dois estão se saindo.”
E ela despertou, repleta de alegria e conforto.
Seus dois filhos foram criados na casa de Rabi Shlomo de Karlin, O filho mais velho, Rabi Yisrael Chaim, casou-se com a filha de seu professor, Rabi Shlomo, e o filho mais novo casou-se com a neta de Rabi Menachem Nachum de Chernobyl.
Os anos se passaram, e a esposa de Rabi Menachem Nachum faleceu. Pensando que Guittel poderia talvez ser uma boa esposa, ele pediu ao seu neto para abordar o assunto casamento com sua mãe.
No caminho para visitar sua mãe, o jovem sonhou que estava fora de um palácio resplandecente, e que seu pai, que falecera quando ele era pequeno, estava parado na entrada com os braços apoiados no telhado do edifício, gritando: “Quem ousa entrar no meu palácio?”
Ele percebeu que sua mãe não deveria se casar novamente.
Com o tempo, ela realizou um sonho de uma vida inteira e viajou para a Terra Santa, onde viveu o resto de seus dias. .3
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