Na gloriosa canção que Moshê entoa à congregação, ele convida o povo a pensar na Torá – seu pacto com D’us – como sendo igual à chuva que molha o solo para que este produza:
Que meu ensinamento caia como a chuva
e minhas palavras desçam como o orvalho,
como chuvas sobre a grama nova,
como chuva abundante nas plantas tenras.
A palavra de D’us é como chuva na terra seca, traz vida, faz as sementes e plantas crescerem. Há muito que podemos fazer por nós mesmos; podemos arar a terra e plantar as sementes. Porém no final nosso sucesso depende de algo que está além do nosso controle. Se não houver chuva, não haverá colheita, não importa quantos cuidados e preparativos fazemos. Portanto isso cabe a Israel. Jamais deve ser tentado a ponto de dizer: “Meu poder e a força das minhas mãos produziram a riqueza para mim” (Devarim 8:17).
Os Sábios, no entanto, sentiram algo mais nessa analogia. Eis como o Sifri explica isso: que meu ensinamento caia como a chuva, assim como a chuva cai sobre as árvores, permitindo que produzam frutos saborosos de acordo com cada tipo de árvore – a vinha à sua maneira, a oliveira a seu modo, e também a tamareira, pois a Torá é uma, porém suas palavras revelam a Escritura, Mishná, Leis e doutrina.
Como as chuvas na grama nova; assim como caem sobre as plantas e as fazem crescer, algumas verdes, outras vermelhas, algumas pretas e outras brancas, assim as palavras de Torá produzem mestres, indivíduos dignos, sábios, justos e piedosos.
Há somente uma Torá, porém tem múltiplos efeitos. Dá origem a diferentes tipos de ensinamentos e de virtudes. A Torá às vezes é vista pelos seus críticos como muito prescritiva. O Midrash argumenta de outra forma. A Torá é comparada à chuva exatamente para enfatizar que seu efeito mais importante é fazer cada um de nós crescer até o ponto que somos capazes de atingir. Não somos todos iguais, nem a Torá busca a uniformidade.
Conforme diz uma famosa Mishná:
Quando um ser humano faz muitas moedas a partir da mesma cunhagem, elas são todas iguais. D’us fez todos à mesma imagem – Sua imagem – porém ninguém é igual ao outro. (Mishná Sanhedrin 4:5)
Essa ênfase sobre a diferença é um tema recorrente no Judaísmo. Por exemplo, quando Moshê pede a D’us que aponte seu sucessor, ele usa uma frase pouco comum: “Que o Eterno, D’us dos espíritos de toda a humanidade, escolha um homem na comunidade” (Bamidbar 27:16).
Sobre isto, Rashi comenta:
Por que essa expressão (“D’us dos espíritos de toda a humanidade”) é usada? [Moshê] disse a Ele: Senhor do Universo, Tu conheces o caráter de cada pessoa, e que não há duas pessoas iguais, Portanto, aponte um líder para eles que tratará cada pessoa segundo a sua disposição.
Uma das exigências fundamentais de um líder judeu é que ele ou ela seja capaz de respeitar a diferença entre os seres humanos. Este é um ponto enfatizado por Maimônides em seu Guia para os Perplexos:
O homem, como se sabe, é a forma mais elevada na criação, e portanto ele inclui o maior número de elementos constituintes. É por isso que a raça humana contém uma variedade tão grande de indivíduos que não conseguimos encontrar duas pessoas exatamente iguais em qualquer qualidade moral ou na aparência exterior… Essa grande variedade e a necessidade de vida social são elementos essenciais na natureza do homem. Porém o bem-estar da sociedade exige que haja um líder capaz de regular as ações do homem. Ele deve corrigir toda falha, remover todo excesso, e prescrever a conduta de todos, para que a variedade natural seja contrabalançada pela uniformidade da legislação, e que a ordem social seja bem estabelecida. (Guia, II:40).
O problema político, como Maimônides vê, é como regular os assuntos dos seres humanos de maneira a respeitar a individualidade e ao mesmo tempo não criar o caos.
O shofar é o sistema de navegação via satélite da alma, lembrando-nos do nosso supremo destino, dizendo-nos até onde ainda temos de ir.Um ponto semelhante surge de um surpreendente ensinamento rabínico. Nossos Sábios ensinaram: se alguém vê uma multidão de judeus, diz: Bendito seja Aquele que discerne segredos – porque a mente de cada um é diferente da mente do outro, assim como cada face é diferente. (Berachot 58a)
Teríamos esperado uma bênção sobre a multidão para enfatizar seu tamanho, sua massa: seres humanos em sua coletividade. Uma multidão é um grupo suficientemente grande para que a individualidade das faces se perca. Porém a bênção enfatiza o oposto – que cada membro da multidão ainda é um indivíduo com pensamentos, esperanças, temores e aspirações distintas.
O mesmo se aplicava ao relacionamento entre os Sábios. A Mishná Sotá 9:15 declara:
Quando Rabi Meir faleceu, os autores de fábulas cessaram. Quando Ben Azzai faleceu, os estudantes assíduos cessaram. Quando Ben Zoma faleceu, acabaram os expositores. Quando Rabi Akiva faleceu, a glória da Torá cessou. Quando Rabi Chanina faleceu, os homens de ação cessaram. Quando Rabi José Ketanta faleceu, os homens piedosos cessaram. Quando Rabi Yochanan ben Zakkai faleceu, o desejo pela sabedoria cessou.
Não havia um modelo único de sábio. Cada um tinha seus méritos distintivos, sua contribuição singular ao legado coletivo. Nesse aspecto, os sábios estavam meramente continuando a tradição da própria Torá. Não há um único modelo de herói ou heroína religiosa no Tanach. Os patriarcas e matriarcas têm cada qual seu caráter inconfundível. Moshê, Aharon e Miriam emergem como diferentes personalidades. Reis, cohanim e profetas têm papéis diferentes a desempenhar na sociedade. Mesmo entre os profetas, “Não há duas profecias com o mesmo estilo,” diziam os sábios. Eliyahu era zeloso, Elisha gentil, Hosea fala de amor, Amos fala sobre justiça. As visões de Yeshayahu são mais simples e menos opacas que aquelas de Yechezkel.
O mesmo se aplica até à própria revelação no Sinai. Cada indivíduo ouviu, nas mesmas palavras, uma inflexão diferente:
A voz do Eterno está com poder, (Tehilim 29:4): ou seja, de acordo com o poder de cada indivíduo, o jovem, o velho e as crianças, cada qual segundo seu poder [de entendimento]. D’us disse a Israel: “Não creiam que há muitos deuses no céu porque vocês ouviram muitas vozes. Saibam que somente Eu sou o Eterno seu D’us.” (Shemot Rabá 29:1)
Segundo Maharsha, há 600.000 interpretações da Torá. Cada indivíduo é teoricamente capaz de uma percepção singular sobre o seu significado.
O filósofo francês Emmanuel Levinas comentou:
A Revelação tem uma maneira particular de produzir significado, que está no seu chamado àquilo que existe de singular dentro de mim. É como se uma multiplicidade de pessoas… fosse a condição para a plenitude da “verdade absoluta”, como se cada pessoa, em virtude da própria singularidade, pudesse garantir a revelação de um único aspecto da verdade, de modo que algumas de suas facetas jamais teriam sido reveladas se determinadas pessoas estivessem estado ausentes da humanidade.
O Judaísmo, em resumo, enfatiza o outro lado da máxima E pluribus unum (“De muitos, um”). E afirma; “Do Um, muitos”.
O milagre da criação é que a unidade no Céu produz a diversidade na terra. A Torá é a chuva que alimenta essa diversidade, permitindo que cada um de nós torne-se aquilo que somente ele pode ser.
Rosh Hashaná, o Ano Novo judaico, nos leva à sinagoga onde escutaremos o shofar, o chifre de carneiro, como uma espécie de convocação para voltarmos ao caminho em nossas vidas. Pedir a D’us para nos inscrever no Livro da Vida nos ajuda a lembrar nossas metas e aspirações. E precisamos desses momentos de reflexão, individualmente e como sociedade, porque caso contrário, o ritmo e a pressão dos eventos pode nos impedir de perceber que apesar de todos os nossos esforços ainda não estamos mais próximos do nosso destino.
Aqui vai um exemplo. Fico fascinado pelos carros que vejo a caminho do trabalho. Há utilitários que podem levar você a qualquer lugar, do Polo Norte até o Deserto do Saara. Há carros esportivos que podem ir de zero a 160 quilômetros em segundos. Cada um é um milagre da tecnologia. Há 150 anos, tudo que havia eram cavalos e carruagens. Há 150 anos, a velocidade média do tráfego em Londres era de 16 km por hora. E hoje? Acertou: 16 km por hora. Um carro deveria levar você de A a B mais rapidamente, porém quanto mais rapidamente construímos carros, mais congestionadas se tornam as estradas.
Ou dá trabalho. Nos 1960s, quando eu estudava Economia, acreditávamos que a automação transformaria tanto a economia que a jornada de trabalho encolheria para 20 horas por semana e o maior problema que teríamos seria o que fazer com as horas livres. Porém em vez disso, estamos trabalhando cada vez mais; e agora nossos telefones celulares e e-mails significam que o trabalho nos persegue em locais e horas fora do trabalho, interrompendo até o pouco tempo de lazer que nos resta.
Não estou sugerindo que exista uma resposta fácil, mas jamais chegaremos aonde queremos ir se não pararmos, vez ou outra, para conferir até onde chegamos – e é isso que fazemos na sinagoga uma vez ao ano. O shofar é o sistema de navegação via satélite da alma, lembrando-nos do nosso supremo destino, dizendo-nos até onde ainda temos de ir.
Talvez todos nós precisemos de algo como o Ano Novo judaico, para nos lembrar das ideias e esperanças que já nos inspiraram e ainda deveriam nos inspirar, agradecendo a D’us pelas nossas realizações, pedindo Sua ajuda nas tarefas que ainda nos esperam.
Que este seja um ano bom, doce e repleto de realizações para todos nós.
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