Chucat é sobre mortalidade. Nele lemos sobre a morte de dois dos três notáveis lideres de Israel no deserto, Miriam e Aharon, e a sentença de morte decretada contra Moshê, o mais notável deles todos. Essas foram perdas devastadoras.

Para contar aquela sensação de perda e luto, a Torá emprega um dos grandes princípios do Judaísmo: O Eterno, bendito seja, cria o remédio antes da doença.1

Antes de qualquer uma das mortes mencionadas lemos sobre o estranho ritual da Vaca vermelha, que purificava as pessoas que tinham tido contato com a morte – a fonte típica de impureza. Aquele ritual, com frequência considerado incompreensível, é na verdade profundamente simbólico.

Somos físicos, portanto mortais... para todos nós, há rios que não iremos cruzar, terras prometidas em que não iremos entrar, futuros que ajudamos a moldar mas não viveremos para ver.

Isso envolve encarar o mais chocante emblema da vida – uma bezerra que é toda vermelha, a cor do sangue que é a fonte da vida, e que nunca foi feita para suportar o peso de um jugo – e reduzi-la a cinza. Isso é mortalidade, o destino de tudo que vive. Nós somos, disse Avraham, “mero pó e cinzas” (Bereshit 18:27). “Pó tu és,” disse D'us a Adam, “e ao pó retornarás” (Bereshit 3:19). Mas a poeira é dissolvida em “água viva”, e da água vem nova vida.

A água está mudando constantemente. Nunca pisamos no mesmo rio duas vezes, disse Heráclito. Porém o rio mantém seu curso entre os bancos de terra. A água muda mas o rio permanece. Portanto nós como seres humanos podemos um dia ser reduzidos ao pó. Mas há dois consolos.

O primeiro é que não somos apenas seres físicos. D'us fez o primeiro ser humano “do pó da terra”2 mas Ele soprou dentro dele o sopro da vida. Podemos ser mortais mas há dentro de nós algo que é imortal. “O pó retorna à terra como era, mas o espírito retorna a D'us que o deu” (Cohelet/Eclesiastes 12:7).

O segundo consolo é que, até mesmo aqui na terra, algo de nós vive, como foi para Aharon na forma de seus filhos que levaram o nome do sacerdócio até o dia de hoje, como foi para Moshê na forma de seus discípulos que estudaram e viveram pelas suas palavras como fazem até os dias atuais e como foi para Miriam nas vidas de todas aquelas mulheres que, pela sua coragem, ensinaram aos homens o verdadeiro significado da fé.3 Para bem ou mal, nossas vidas têm um impacto sobre outras vidas, e as ondas dos nossos atos se espalham para fora pelo espaço e tempo. Somos parte do rio imorredouro da vida.

O fato de que Moshê não viveu para ver seu povo cruzar o Jordão não diminui seu eterno legado como o homem que transformou uma nação de escravos num povo livre, levando-os à própria fronteira da Terra Prometida.

Portanto podemos ser mortais, mas isso não reduz nossa vida à insignificância, como Tolstoy pensava que fazia, 4 pois somos parte de algo maior que nós mesmos, personagens numa história que começou cedo na história da civilização e que irá durar tanto quanto a humanidade.

É nesse contexto que deveríamos entender um dos mais problemáticos episódios da Torá, no desapontamento de Moshê quando as pessoas pediram água, e ele e Aharon foram condenados a morrer no deserto sem nunca sequer entrar na Terra Prometida.5 Escrevi sobre essa passagem muitas vezes em outros locais, e não quero focar nos detalhes aqui. Quero simplesmente notar que a história de Moshê atingindo a rocha aparece aqui, na Parashá Chucat, cujo tema mais forte é nossa existência como seres físicos num mundo físico, com suas duas consequências potencialmente trágicas.

Primeiro, somos uma mistura instável de razão e paixão, reflexão e emoção, portanto isso às vezes tristeza e exaustão podem levar até o mais notável a cometer erros, como foi no caso de Moshê e Aharon após a morte de sua irmã. Em segundo, somos físicos, portanto mortais. Dessa forma, para todos nós, há rios que não iremos cruzar, terras prometidas em que não iremos entrar, futuros que ajudamos a moldar mas não viveremos para ver.

A Torá está mostrando os contornos de uma ideia realmente notável. Apesar dessas duas facetas da nossa humanidade – que cometemos erros e que morremos – a existência humana não é trágica. Moshê e Aharon cometeram erros, mas aquilo não os impediu de estarem entre os maiores lideres que já viveram, cujo impacto ainda é palpável hoje nas dimensões proféticas e sacerdotais da vida judaica. E o fato de que Moshê não viveu para ver seu povo cruzar o Jordão não diminui seu eterno legado como o homem que transformou uma nação de escravos num povo livre, levando-os à própria fronteira da Terra Prometida.

Pergunto se qualquer outra cultura, credo ou civilização fez maior justiça à condição humana que o Judaísmo, com sua insistência de que somos humanos, não deuses, e que somos, mesmo assim, parceiros de D'us na obra da criação e no cumprimento do pacto.

Ambos os erros – que somos deuses ou que somos insetos – são perigosos. Levados a sério eles podem justificar quase qualquer crime contra a humanidade. Sem um delicado equilíbrio entre eternidade Divina e mortalidade humana, perdão Divino e erro humano, podemos trazer mais destruição – e nosso poder de fazer isso cresce durante o ano.

Quase toda outra cultura tem borrado a linha entre D'us e seres humanos. No mundo antigo, reis eram geralmente considerados como deuses, semideuses, ou chefes intermediários com os deuses. O cristianismo e o Islã sabem de seres humanos infalíveis, o filho de D'us ou o profeta de D'us. Ateístas modernos, em contraste, tendem a ecoar a pergunta de Nietzsche de que, para justificar nosso destronamento de D'us, “Devemos nós mesmos não nos tornarmos deuses simplesmente para parecer merecedores disso?”6

Em 1967, quando eu estava começando meus estudos na universidade, ouvia as Palestras Reith na Rádio BBC, feitas naquele ano por Edmond Leach, professor de antropologia em Cambridge, com suas francas sentenças: “Homens se tornaram como deuses. Não chegou a hora de entendermos nossa divindade?” 7 Lembro que assim que escutei essas palavras, senti que algo estava errado na civilização ocidental. Não somos deuses, e coisas más aconteceram quando as pessoas pensaram que eram.

Nesse ínterim, paradoxalmente, quanto maiores nossos poderes, mais baixa nossa estimativa da pessoa humana. Em seu conto Zadig, Voltaire descreveu os seres humanos como “insetos devorando uns aos outros num pequeno átomo de lama.”

Stephen Hawking declarou que “a raça humana é apenas uma espuma química num planeta de tamanho moderado, orbitando ao redor de uma estrela media no subúrbio exterior de uma entre um bilhão de galáxias.”

O filósofo John Gray declarou que “a vida humana não tem mais significado que aquele do lodo.”8 Em seu Homo D’us, Yuval Harari chega à conclusão de que “Olhando para trás, a humanidade se tornará apenas uma onda dentro do fluxo dos dados cósmicos.”9

Essas são duas opções que a Torá rejeita: alto demais ou baixo demais na estimativa da humanidade. Por um lado, nenhum homem é um deus. Nenhum é infalível. Não há vida sem erro ou falha. É por isso que foi tão importante notar, na parashá que trata da mortalidade, o pecado de Moshê. Da mesma forma foi importante dizer no início de sua missão que ele não tinha dotes carismáticos especiais. Ele não era um orador natural que poderia envolver multidões (Ex. 4:10). Igualmente a Torá enfatiza ao final de sua vida que “Ninguém conhece seu local de enterro,” (Devarim 34:6) portanto esse não poderia se tornar um local de peregrinação. Moshê era humano, todo humano, porém ele foi o maior profeta que jamais viveu (Devarim 34:10).

Por outro lado a ideia de que somos mero pó e nada mais – insetos, lama, lodo, uma onda no fluxo cósmico de dados – deve estar entre as mais tolas jamais formuladas por mentes inteligentes. Nenhum inseto jamais se tornou um Voltaire. Nenhuma lama química se tornou um químico. Nenhuma onda escreveu livros campeões de venda internacionais. Ambos os erros – que somos deuses ou que somos insetos – são perigosos. Levados a sério eles podem justificar quase qualquer crime contra a humanidade. Sem um delicado equilíbrio entre eternidade Divina e mortalidade humana, perdão Divino e erro humano, podemos trazer mais destruição – e nosso poder de fazer isso cresce durante o ano.

Portanto a ideia de Chucat muda a vida; somos pó da terra mas há dentro de nós o sopro de D'us. Falhamos, mas ainda podemos atingir grandeza. Morremos, mas a melhor parte de nós continua a viver.

O mestre chassídico R. Simcha Bunim de Peshischke disse que deveríamos ter cada um dois bolsos. Em um deve estar uma nota dizendo: “Eu sou apenas pó e cinzas.”10 Na outra deveria haver uma nota dizendo: “Para mim o mundo foi criado,”11

A vida vive na tensão entre nossa pequenez física e nossa grandeza espiritual, a brevidade da vida e a eternidade da fé pela qual vivemos. Falha, desespero e um senso de tragédia são sempre prematuros. A vida é breve, mas quando erguemos nossos olhos ao céu, caminhamos alto.