Sábio ou Entediante?

A porção dessa semana, Côrach, relata a trágica história do motim formado por um homem chamado Côrach (Números, cap. 16), que organizou uma rebelião contra Moshê e Aharon, escolhidos pelo Todo Poderoso para atuarem respectivamente com o Profeta e o Sumo Sacerdote de Israel.

Os rabinos no Midrash fizeram uma estranha observação. “ Côrach era inteligente,” declaram os rabinos, “então por que ele cometeu tamanha tolice?” O que levou o esperto Côrach a declarar guerra contra Moshê e Aharon?

A pergunta deles é intrigante. Como os rabinos sabiam que Côrach era inteligente? Essa pessoa ou sua sabedoria jamais foram mencionadas na Torá antes. Portanto de onde vem a certeza de que Côrach era um homem sábio? Talvez fosse um tolo. A resposta, é claro, é que os rabinos discerniram a sabedoria de Côrach com base nesse mesmo incidente. O próprio motim de Côrach contra a autoridade de Moshê e Aharon demonstra sabedoria e percepção.

Mas por quê? Na superfície, o motim parece ser um sintoma da boa e velha inveja, de um ego desenfreado ansiando pelo poder e pela fama.

Sem Distinções

Por isso devemos dissecar o argumento de Côrach. “A comunidade inteira é sagrada,” disse Côrach a Moshê e Aharon na porção dessa semana, “e D'us está dentro deles. Por que vocês se exaltam acima da comunidade de D'us?”

Essas palavras são poderosas. D'us está dentro de toda e cada pessoa.

Então por que alguém se considera espiritualmente superior a qualquer outro? Verdade e santidade estão embebidas em toda e cada alma; dentro de cada coração pulsante flui a energia cósmica, então por que Moshê está dizendo ao povo o que D'us deseja? Por que Aharon está servindo como o exclusivo sumo Sacerdote de D'us? Por que um judeu precisa de Moshê para ensinar-lhe a palavra de D'us e de Aharon para realizar o serviço no Templo sagrado por ele, quando ele próprio tem uma alma que é uma centelha da chama divina? Por que ele não pode entender seu relacionamento com D'us por si mesmo, sem professores, líderes e sacerdotes?

Côrach é o pai da anarquia espiritual. Côrach argumenta contra todas as formas de autoridade e liderança espiritual, e contra qualquer papel prescrito na comunidade espiritual. Côrach aspira a criar uma sociedade livre de distinções, fronteiras e categorias. Nós somos todos divinos, e portanto somos todos um. Imagine que não houvesse nenhum Moshê, nenhum Aharon, nenhum Santuário, nenhum dos Cohanitas, Levitas ou Israelitas, e nenhuma autoridade religiosa também. “Imagine...”, Imagine, é fácil se você tentar. E os judeus viveriam como somente um. E então a partir dos judeus, acreditava Côrach, o fluxo de energia holística chegaria a toda a humanidade. “E o mundo viveria como um só.”

A mensagem de Côrach – confessemos – toca uma corda dentro de nós. Existe algo sobre essa visão que ressoa em nossos corações. Isso porque Côrach estava totalmente certo (e é por isso que a Torá deseja que saibamos sobre sua ideologia.) Pois ele também estava totalmente errado.

Da Unidade para a Multiplicidade e de Volta

Todos nós viemos de uma fonte. Todos nos origimaos no “útero” de D'us, por assim dizer, onde somos de fato singulares. Antes da criação, havia somente unidade indefinida. Não havia fronteiras, definições ou distinções. Nada de céu, terra nem países. Nada de professores e alunos. Não havia culturas, nações e tribos. Todos nós estávamos submergidos na unidade singular da Luz Infinita.

Em nosso nível mais profundo, ansiamos por recriar essa integridade em nossas vidas. Ansiamos que nossos egos se fundam na singularidade da existência. Lembrar o senso de êxtase que você sentia nos bons tempos de antes, sentado com seus amigos no meio da noite, tocando a música. Não havia você nem eu; somente a música.

Cada um de nós, à sua própria maneira, quer voltar àquele paradigma de unidade da pré-criação. Queremos imaginar que jamais fomos criados. Mas – veja só – fomos criados!

Espiritualidade da Era Moderna

A ideia de que todas as almas são iguais foi o erro de Côrach, e é um dos enganos da espiritualidade da era moderna. Estamos acostumados a pensar que definições criam fronteiras, e fronteiras causam desconfiança e ódio. Estamos convencidos de que ser espiritual significa não ter fronteiras.

Porém a criação foi o ato de criar fronteiras. Da unidade veio a multiplicidade. De um único D'us indefinido, veio um universo infinitamente complexo e diverso. A diversidade é costurada no próprio tecido da existência. Não há dois flocos de neve iguais; não há duas pessoas iguais. Há dezenas de milhões de espécies diferentes de plantas e animais. E há as divisões inerentes entre as pessoas, como macho e fêmea, corpo e alma, e as divisões específicas entre nações, culturas e indivíduos.

Por que D'us criou a multiplicidade? Porque a unidade mais profunda é aquela encontrada dentro da diversidade. Se somos todos o mesmo, a unidade não é conquista. A unidade mais verdadeira é atingida quando as diferenciações e demarcações são impostas sobre a unidade primordial, e suas partes componentes recebem cada qual um papel distinto na existência, complementando uma à outra.

Como notas musicais numa balada, cada um de nós representa uma nota única e distinta, e juntos recriamos uma sinfonia Divina cósmica, não cantando a mesma nota, mas expressando nossa nota individual como uma parte indispensável da canção. Toda existência individual é parte de uma expressão sinfônica da singular essência de seu Criador. Nesse mundo devemos atingir a unidade dentro da diversidade. Para a união da humanidade precisamos de um D'us; mas para que a unidade de D'us seja completa precisamos da diversidade humana, cada indivíduo cumprindo seu papel na existência, partilhando com os outros sua contribuição única, e aprendendo com os outros a sabedoria que lhe falta.

Nossas diferenças não devem nos dividir; pelo contrário, nossas diferenças nos completam. Isso é verdadeiro também no nível político e sociológico. Muitos acreditam que a anarquia mundial poderia levar à paz mundial. Porém a anarquia nunca é pacífica, porque o conflito no mundo não é resultado da divisão de nosso planeta em países e culturas sobrepostas. O conflito é resultado da verdade que existem diferenças inerentes entre povos e quando essas diferenças competem, nasce o conflito. Portanto, nosso papel como seres humanos não é negar que existem distinções, mas sim criar aqueles tipos de fronteiras e limites que promoverão respeito, unidade e amor dentro da diversidade inerente na humanidade.

Se criamos unidade negando que haja qualquer diferença entre nós, nossa unidade será superficial e terá vida breve, quando percebermos que existem de fato distinções. Além disso, ao negar nossas diferenças, privamos uns aos outros daquilo que cada um de nós pode dar ao outro, aquilo que o próximo não tem. A unidade real é aquela atingida dentro da nossa diversidade, ou como escreveu Robert Frost: boas cercas fazem bons vizinhos.

Sem Imagem

E vai ainda um passo além. Como D'us não tem imagem, a única maneira de um mundo repleto de imagens poder entender Sua unidade é através de diversas imagens integradas, pois cada uma delas capta uma parte da verdade, nenhuma captura todas. Juntos recriamos a unicidade.

Para sentir a unidade indefinida num mundo de definição, diversidade é a única maneira. Pela integração de diversas forças captamos a unidade transcendental.

Fusão

D'us não pode ser definido por unidade nem por multiplicidade. Assim como Ele transcende a pluralidade, também transcende a unidade. Portanto, é somente através da fusão de unidade e multiplicidade – através de um local que transcenda as duas – que podemos nos conectar com a verdadeira essência iinfinita de D'us.

Se você escolhe unidade e a “adora”, está se apegando a um aspecto de D'us. De modo contrário, se você adota a multiplicidade, está reconhecendo outro aspecto de D'us. somente na fusão das duas, somente ao descobrir a unidade dentro da multiplicidade, e a multiplicidade dentro da unidade, você toca a essência indefinida de D'us, que transcende e integra a totalidade e a unicidade, onde o nada e algo são apenas um.

Engolido e Consumido: Qual foi o final da saga de Côrach?

Côrach e seus colegas foram engolidos vivos pela terra. Os 250 líderes de Israel que se juntaram ao motim foram consumidos por uma chama. Esta é uma descrição psicológica daquilo que aconteceu a mais de um idealista que tentou viver pela unidade mística de Côrach e pela imaginação.

A realidade dura e competitiva da terra “engoliu” grande parte de jovens idealistas e altruístas. Sua paixão ascendeu nas chamas do tempo, enquanto eles próprios eram absorvidos pelas exigências egoístas e egocêntricas do planeta terra. Pois debaixo da crosta da terra ainda podemos reconhecer braços estendidos, fazendo silenciosamente a pergunta: o que aconteceu a todo aquele amor? Pois o amor que desafia fronteiras tem vida curta. Sobe nas chamas do êxtase e nada resta nas duras realidades do planeta terra. Somente o amor e a unidade que reconhece a diversidade, fronteiras e categorias, permitirão que o céu e a terra se toquem.

(Este artigo é baseado numa palestra do Rebe, em 1957 e 1971, publicada em Licutei Sicot, vol. 18 págs. 202-211).