Três homens, todos prisioneiros, não conseguiam pensar em nada além da proximidade de Pêssach. Como milhares de judeus – incluindo seus próprios parentes – estavam sendo enviados para a morte numa base diária, Yaakov Friedman, Moshe Goldstein, e Rabi Yekusiel Halberstam (o Rebe de Klausenburger) tiveram a coragem e a presença de espírito para garantir matsá para Pessach em 1945.
Eis aqui a narrativa de Moshe Goldstein da impressionante onda de eventos que lhes permitiram a capacidade de observar a Festa da Liberdade em meio ao sofrimento abismal e morte:
“Nos dias anteriores a Pêssach, a guerra estava chegando ao fim. A incansável frota de aviões americanos enchia os céus alemães, seguidos pela saraivada de bombas que transformaram o complexo da estrada de ferro de Muhldorf em ruínas.
Poupados da destruição estavam os campos de trabalho forçado nas redondezas onde trabalhávamos sob as mais duras condições. Nós prisioneiros celebrávamos esta poderosa amostra da destruição aliada, mas a ansiedade dos nossos vigias alemães era mais alta. A estrada era vital para os esforços de guerra, e foram emitidas ordens para consertar os danos imediatamente. Os alemães decidiram enviar um grupo de 12 escravos judeus para começar o trabalho.
Eu me voluntariei para ir. Sabia que o trabalho seria excruciante, mas tinha esperança de talvez encontrar alguma comida em meio aos destroços.
Chegamos a uma cena de total devastação. Os carros de transporte estavam caídos de lado, a fumaça subindo dos buracos. Pedaços de trilhos tinham sido arrancados do chão e jogados ao lado em pilhas retorcidas. Praticamente todo prédio tinha sofrido dano extenso. Estava claro que alguns dos carros não teriam mais conserto.
Consegui desaparecer entre as fileiras de trens que ainda estavam de pé. Demorou um pouco, mas finalmente encontrei um carro da Hungria carregado com trigo em sacos de estopa. Trigo! E tão perto de Pêssach! D'us tinha nos dado um bom começo, mas como eu poderia esconder o trigo dentro do campo?
Um gemido fraco no meio dos sacos chamou minha atenção. Ali, num canto escuro do carro, estava um homem, esmagado pelo peso enorme do trigo. O homem resmungou algo mais, que eu reconheci como húngaro, meu idioma natal. Vi que ele usava o uniforme cinza de um oficial da SS.
“O que aconteceu?” perguntei.
O oficial da SS sussurrou fracamente sobre ter sido colocado em baixo dos sacos.
“Entendo. Deixe-me ajudar você.”
Quando me aproximei, vi as botas do oficial, de cor preta e com aparência luxuosa. As minhas eram pedaços de couro rasgado, que mal ficavam juntos.
“Vou tirar os seus sapatos,” eu disse. “Assim, você vai se sentir menos preso, e então veremos o que podemos fazer.”
Quando desatei os laços, puxei as botas para fora. Então, usando toda a força e o ódio que conseguia dominar, balancei a cabeça do homem. Peguei as botas e continuei minha busca.
Eu sabia que não tinha muito tempo e precisava pensar numa forma de pegar o máximo possível de trigo sem que os guardas soubessem.Passar com os sacos pelos portões principais nem sequer me ocorreu; o trigo seria confiscado e eu seria fuzilado em um segundo.
Vaguei mais um pouco ao redor e descobri duas calças. Vesti as duas e fechei os botões ao redor dos meus tornozelos com uma corda. Consegui então derramar uma pequena quantidade de trigo no espaço entre as duas calças. Quando minhas pernas estavam tão cheias ao ponto em que eu ousava carregar, comecei a longa caminhada de volta ao campo.
Os bombardeios deixaram os alemães encurralados e temerosos, e nos primeiros dias após o ataque aéreo, a inspeção dos prisioneiros nos portões do campo era forçada quase sem rigor. Assim eu consegui esconder uma boa quantidade de trigo.
Tínhamos trigo, mas e agora?
Reb Sender Direnfeld, um colega interno e um chassid Belzer, ofereceu-se para esconder o trigo, e surpreendentemente ele conseguiu mantê-lo longe dos olhos espiões dos alemães.
Mais tarde, um antigo moinho foi procurado em algum lugar. Moemos o trigo durante a noite, e usando um pedaço de pano limpo, coamos a farinha. Em seguida precisávamos de combustível para acender um fogo.
Durante uma passada pelo campo, pedi a todos para encontrar um pedaço de madeira e levá-lo de volta ao campo. Os ramos foram escondidos e chamaram a atenção de um guarda alemão. Ele me abordou.
“Por que todos estão com um pedaço de madeira?”
“Que diferença isso faz? As pessoas querem andar por aí com um pedaço de madeira,” eu respondi.
Tínhamos farinha e tínhamos combustível. Estávamos preparados para assar matsá.
Uma noite antes de Pêssach, começamos a assar a matsá. Perto da porta da barraca ficava um prisioneiro, vigiando com olhos temerosos.
Acendemos um fogo sob uma lata de metal que funcionou como nosso forno, e o preparo da matsá assada – debaixo do nariz dos nazistas – começou. O Rebe, Reb Yaakov, e eu misturamos a farinha e preparamos a massa. Trabalhamos depressa, não apenas por causa do limite estrito de 18 minutos, mas também por causa do perigo sempre presente de sermos apanhados. Terminamos com 20 pequenas matsot.
Na véspera de Pêssach após retornar do trabalho, nosso pequeno grupo sentou-se para o seder. Em pranchas de madeira ao redor estavam corpos adormecidos, exaustos do trabalho interminável. Para aqueles que celebravam, as durezas do Holocausto e da vida no campo foram embora quando experimentamos a redenção bíblica do Egito. Incapazes de sentar por mais tempo, cada um comeu um pedacinho de matsá, o sabor das lágrimas se misturando com as migalhas de matsá em nossas bocas.
Não pudemos sentar relaxadamente e recitar a Hagadá, mas naqueles momentos cada um rezou – mais fervorosamente que desde então – as palavras que ainda ecoam em meus ouvidos: “No ano que vem em Jerusalém.”
Adaptado das memórias de Yaakov Friedman, “Tiferet Yaakov [Hebraico], escrito por seu genro, Rabi Sholom Horowitz
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