Desde épocas remotas, os homens têm tido consciência de uma realidade além da material, uma realidade que transcende os sentidos e intelecto do homem. E, ainda assim, aquela mesma consciência é desconcertante, pois essa realidade espiritual está em um plano mais elevado do que nós podemos compreender.
Alguns tipos de práticas religiosas tentam resolver essa dificuldade procurando atingir além de nosso mundo limitado. Existem, entretanto, duas dificuldades fundamentais com essas abordagens:
a) Já que a realidade espiritual está, por definição, acima de nossa concepção, como é possível que o homem se relacione com ela?
b) Além disso, o Mundo Vindouro é contrário à intenção de D’us. D’us criou nosso mundo por um motivo, e uma fixação de ir além daquele propósito implica numa rejeição a Ele.
Convite de Cima
O Judaísmo oferece uma alternativa diferente. Uma ligação pode, de fato, ser estabelecida entre o material e o espiritual, mas a iniciativa deve ser tomada por D’us1. D’us “desceu” ao nosso mundo para nos dar meios com os quais nós pudéssemos nos relacionar com Ele e, assim fazendo, elevar nosso ambiente. Este é o propósito das mitsvot.
Que diferença faz para o Santo, bendito seja Ele, se nós abatemos a parte da frente ou de trás de um animal? As mitsvot foram dadas somente para refinar as criaturas2.
A maioria das mitsvot envolve coisas materiais3. Por si só, essas entidades têm pouca importância para D’us. No entanto, para dar à humanidade um meio pelo qual se relacionar com Ele, D’us dá importância a essas entidades. Além disso, a conexão estabelecida com D’us por meio do cumprimento de Suas mitsvot permeia nosso ambiente, e as entidades usadas nessa prática são incluídas nessa conexão espiritual.
Explicando por uma analogia4: um intelectual vive no mundo do pensamento; sua vida é centrada em ideias e conceitos. Um simples carregador de água não atrairá sua atenção. Não é que ele olhe com desdém para ele ou o veja negativamente. Os dois simplesmente parecem não ter nada em comum. Parece não haver nenhum jeito de o carregador de água se relacionar com o intelectual; ele não tem a capacidade. Nem o que preocupa o carregador de água interessa ao pensador.
Se, entretanto, o intelectual pede uma bebida ao carregador de água e este lhe atende, sua conexão torna-se clara.
A lacuna entre o Criador e a criatura é muito maior que aquela que separa o carregador de água do intelectual e, ainda assim, D’us nos pede um favor: “Faça Minhas mitsvot”. A própria palavra mitsvá dá uma dica sobre esse relacionamento, pois ela compartilha uma raiz com a palavra tzavsa que significa “ligação”.
Três Abordagens
Existe uma dimensão mais profunda no conceito acima. É o mandamento de D’us, não o seu cumprimento pelo homem, que estabelece uma conexão entre os dois. O homem tem a opção de obedecer ou desobedecer, mas, ao lhe dar um mandamento, D’us já entrou em seu mundo. Se o homem escolhe cumprir o mandamento, ele confirma a conexão e, se ele a recusa, ele a nega. Mas, independentemente da decisão do homem, D’us já estabeleceu um relacionamento. A opção do homem reside na extensão de sua disposição em reconhecer e desenvolver aquela ligação.
Aqui reside uma conexão com a leitura semanal da Torá, Parashá Tsav. O nome tsav significa “ordem” e é tirado do versículo inicial5: “E D’us falou a Moshé: ‘Ordene a Aharon...’”.
Ao longo da Torá, três termos são usados para introduzir um mandamento: emor (“diga”), daber (“fale”) e tsav (“ordene”). Todos os três termos comunicam a vontade de D’us, mas o termo tzav está mais intimamente relacionado conceitualmente e etimologicamente com o conceito de mitzvá explicado acima.
O termo “diga” ou “fale” parecem deixar a opção nas mãos do ouvinte. Sim, foi-lhe dada uma ordem, mas o tom usado indica que ele tem uma escolha. Foi-lhe dito o que ele deveria fazer, mas a decisão em fazê-lo ou não continua sendo sua.
Quando, ao contrário, a palavra “ordene” é usada, a indicação é a de que o assunto é imperativo6. Nesses casos, a iniciativa que D’us tomou é tão abrangente que ela empurra o homem em direção ao cumprimento da tarefa.
Força no Centro
Este conceito pode ser amplificado combinando-se ensinamentos de fontes mishnáicas e cabalísticas. Emor, traduzido como “diga”, está associado com a fala gentil7, enquanto daber, traduzido como “fale”, é associado com tons ásperos8. Na organização cabalística das Sefirot, os dez mundos espirituais que conectam a Divindade com o materialismo, existem três caminhos, ou vetores. O vetor da direita é associado com a bondade e o vetor da esquerda com a aspereza. Tsav está associado com o vetor do meio, uma abordagem equilibrada que combina esses dois extremos.
Por exemplo, misericórdia (um dos atributos do vetor do meio) representa uma fusão da bondade (do vetor da direita) e julgamento (do vetor da esquerda). Bondade implica em uma disposição de dar sem consideração se o recipiente é merecedor. Julgamento, ao contrário, envolve um escrutínio do recipiente para avaliar seu mérito.
Misericórdia leva a natureza do recipiente em consideração, mas pode conceder-lhe ajuda mesmo se ele não for merecedor. Ao agirmos com misericórdia, nós damos porque nós estabelecemos uma conexão interior com o recipiente e provemos em seu benefício.
Como é possível que duas tendências opostas se combinem em um único atributo? O vetor do meio implica a ação da Divindade em impulsos opostos9. Ela é capaz de produzir uma síntese entre diferentes abordagens. Ao assim fazê-lo, ela transmite uma influência ilimitada até para os níveis mais inferiores10.
As mitsvot associadas com a palavra tsav refletem esta síntese. Elas se relacionam à dimensão transcendental de D’us e penetram a dimensão interior do homem, unindo os dois em uma unidade completa.
Serviço por Amor a Ele
Os conceitos acima são refletidos no assunto da leitura da Torá desta semana: os sacrifícios oferecidos no Santuário, e depois no Beit HaMicdash.
As implicações da adoração com sacrifícios estão acima de nosso entendimento. O intelecto humano não pode apreciar porque D’us desejaria o sacrifício de um animal ou a queima de farinha sobre o Altar. Como forma de explicação, nossos Sábios nos explicam11 que D’us diz; “É agradável para Mim que Eu tenha dado uma ordem e Minha vontade tenha sido feita”.
Existem mitsvot que trazem benefícios que são prontamente apreciados, e outros cujos benefícios nós não podemos compreender12. Os sacrifícios, entretanto, não são em consideração ao homem, nem mesmo para treiná-lo em sua obediência. Eles são em consideração a D’us. Assim, a Torá se refere a eles13 como Lachmi, “Meu sustento”, indicando que D’us necessita este serviço espiritual, por assim dizer.
Por que D’us “necessita” de sacrifícios? Somente para prover o homem com meios de conexão com Ele de uma forma completa14. Quando alguém traz um sacrifício, a ênfase não é em seu compromisso com a vontade de D’us, mas que “Minha vontade foi feita”. Uma pessoa vê a si mesma como apenas um meio pelo qual a vontade de D’us possa ser realizada.
A prática completa de todas as mitsvot, e particularmente dos sacrifícios, acontecerá somente na Era da Redenção. Como dizemos em nossas orações15: “Leve-nos com alegria para Tsyion, Tua cidade, e com alegria duradoura para Jerusalém, Teu santuário. Lá nós ofereceremos a Ti nossos sacrifícios obrigatórios... de acordo com o mandamento de Tua vontade”.
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