Por que razão, ao mesmo tempo que a Torá nos orienta a respeitar os animais e a natureza em geral, o texto bíblico detalha tão profundamente a questão dos corbanot (sacrifícios)? Qual a relação entre o corban e a remissão dos pecados? Porque essa prática não é executada nos dias de hoje?

RESPOSTA:

Vamos tentar dar uma explicação mais ampla sobre o assunto de sacrifícios. Assim, mesmo que se torne um pouco prolongado, certamente terá paciência de ler tudo.

Os sacrifícios de animais, aves ou até mesmo de uma pequena medida de farinha e trigo (conforme a possibilidade da pessoa) é um mandamento da Torá conforme consta em vários lugares, especificamente no Livro de Levítico (Vayicrá, 3º Livro da Torá).

Existem vários tipos de sacrifícios e são ofertados por várias razões, entre eles:

a) Sacrifícios comunais, i.e., em nome de toda a congregação, com acréscimo (Mussaf) nos dias especiais.

b) Sacrifícios individuais

1. Para pedir perdão de certos pecados. Neste caso, o sacrifício é aceito somente se a pessoa se arrependeu completamente da falha cometida (e se foi algo contra o próximo, se também se desculpou totalmente e reparou qualquer dano); só então podia o sacrifício trazer o perdão, pois a pessoa precisava estar presente no ato, acompanhando todo o processo e pensando que aquilo que está sendo feito com o animal deveria acontecer para ela por ter pecado contra D'us. Apenas pedir perdão não seria suficiente.

Para ser um arrependimento sincero, precisa de um método de maior eficácia. O efeito de uma palavra ("desculpe, eu errei") não se compara à impressão visual de assistir todos os detalhes do processo do sacrifício até a parte final quando a carne e outras partes eram queimadas no Altar. Isto estimulava a pessoa a se perguntar em que ela se distingue do animal?

A resposta: somente pela alma Divina, uma partícula do Próprio D'us. O processo do pensamento continuava: "Come pude ser tão tola a ponto de desobedecer ou transgredir a vontade do Todo Poderoso, deixando minha natureza animalesca apossar-se de mim?" Isto levava a pessoa ao arrependimento verdadeiro, pois a Justiça suprema exige a morte pela violação da vontade Divina - e vendo até mesmo a morte do animal no Altar trazia-lhe a realidade de que D'us aceitou uma troca e poupou sua vida!

Desta forma os sacrifícios eram um meio para uma finalidade do retorno a D'us. Quando o povo não mais entendeu o assunto, realmente o Templo Sagrado foi destruído e os sacrifícios abolidos.

2. Em agradecimento a D'us por algum milagre ou benefício que aconteceu à pessoa.

3. Para aproximar-se de D'us. Este tipo de sacrifício não tem nada a ver com pecado. Era uma oferenda de aproximação. Por isso a palavra "sacrifício" em hebraico é "corban" do mesmo radical que significa "aproximação". O sacrifício era um meio de aproximação com D'us e só funcionava quando a pessoa fazia tudo, do âmago do seu coração.

Os animais casher usados para sacrifícios eram de três tipos: boi (ou vaca), bode (cabra) e ovelha. Cada um desses representa um tipo de personalidade que as pessoas têm. A finalidade da oferenda era de "sacrificar" a natureza humana (cada um conforme seu tipo - conforme explicação em seguida), e foi isto que aproximava a pessoa de D'us. Os três tipos são:

1. O "boi" que mostra sua força com os chifres, chifrando e chutando. Traduzido para o ser humano, é aquele que sempre tem uma palavra áspera na língua, que fala com ironia, que gosta de ressaltar os defeitos do próximo, e cujos próprios defeitos são óbvios;

2. O "bode" cuja natureza é ousada, porém se quiser move-lo do lugar é impossível a não ser que ele próprio o queira. Traduzido em termos humanos é a pessoa que não aceita opiniões ou sugestões de outrem, achando que sabe tudo e é teimosa e obstinada em suas convicções;

3. A "ovelha" cuja natureza é dócil, que não faz grandes estragos e é fácil subjugá-la. Porém tem um "apetite" insaciável. O ser humano que se compara à ovelha é uma pessoa boa por natureza, sem defeitos aparentes, mesmo assim tem que trabalhar para refinar-se nas pequenas coisas. Cada pessoa tem que trabalhar em refinar seu temperamento particular, sua natureza e instintos naturais. Em outras palavras, quem sabe controlar suas vontades, subjugar suas paixões, refinar seus instintos naturais e, com tempo e muito esforço, transformar sua natureza, realmente fica mais próximo de D'us.

Esta era a função dos sacrifícios (e continua sendo, porém hoje em dia através das preces): sacrificar a natureza animalesca e se auto refinar em tudo. Com esse esforço realmente a pessoa se aproxima de D'us.

Além disso o serviço espiritual dos sacrifícios também trazia bênção e abundância para o mundo todo. Por outro lado "fazia bem" para os mundos espirituais. Este último assunto é muito complexo, ligado com a parte mística do judaísmo e exige estudos mais profundos.

Hoje em dia, no lugar das oferendas de antigamente temos as preces diárias compostas pelos grandes profetas e Sábios após a destruição do Primeiro Templo, que escolheram e pesaram cada palavra do texto (rezamos três vezes ao dia, nos dias comuns, quatro vezes no Shabat, Rosh Chôdesh e Festas e cinco vezes no dia de Yom Kipur).

As orações diárias substituem os sacrifícios, embora também antigamente as preces acompanharam os sacrifícios, mas não com o texto oficial de hoje.

Encontramos o assunto de sacrifícios explicitamente pela primeira vez na Torá, quando os dois filhos de Adão trouxeram oferendas a D'us, brigando depois, pois D'us aceitou apenas o sacrifício de Abel que o ofertou do melhor de seu gado, e não aceitou o de Caim que deu apenas os restos de seus frutos. Mais tarde, também Nôach (Noé) ofertou os animais e aves permitidos (i.e. casher) logo após o Dilúvio.

Na verdade, nossos Sábios nos contam que o primeiro homem, Adão, também trouxe um sacrifício para D'us, embora este assunto não consta claramente na Torá, mas faz parte da Tradição Oral. Em todos estes casos, não foi D'us quem pediu as oferendas, mas a vontade veio do homem, que sentiu a importância de se unir a D'us através do sacrifício. Isto mostra que o sacrifício é natural ao homem.

Infelizmente, com o tempo, as pessoas começaram a ofertar sacrifícios a ídolos, pensando com isso apaziguar os deuses, ao ponto que chegaram a ofertar seus próprios filhos, pensando que ao dar um estariam assegurando a sobrevivência do restante de seus filhos. Este tipo de sacrifício é completamente condenado pela Torá, e por isso podemos entender o grande teste que Avraham (Abraão) o primeiro Patriarca do povo judeu, teve que passar quando D'us lhe pediu seu filho único como sacrifício. Na verdade, Abraão ensinou a todos que D'us não quer sacrifícios humanos e de repente, D'us lhe pedi seu filho. Lógico que era uma prova e não que D'us queria este sacrifício.

D'us não precisa de nossos sacrifícios, nem de nossos bons atos. Tudo isso é para nosso próprio bem. É como a mãe que dá algo para um filho e pede para ele dizer obrigado! Ela não precisa do obrigado do filho. Mas o filho precisa saber agradecer e reconhecer o bem que os outros fazem por ele. Ao pedir o obrigado do filho, na verdade, a mãe está lhe ensinando a ser uma pessoa sensível que percebe e aprecia o bem que os outros fazem. Caso contrário, a criança cresce com um ego incontrolável. Assim também todas as mitsvot (boas ações) que D'us exige de nós através da Torá (Seu Manual de Instruções) é somente para nosso próprio benefício.