Exatamente um ano após deixarem o Egito e receberem a Torá, os judeus testemunharam a primeira rebelião em suas fileiras, quando um levante de duzentos e cinquenta homens e seu líder, Côrach, desafiaram a autoridade de Moshê.

Na porção da Torá que leva seu nome, Côrach, que fala sobre a revolta e sua solução, aprendemos sobre a gana de Côrach pelo poder, seu complô para depor Aharon, irmão de Moshê, do sumo sacerdócio e usurpar o cargo para si mesmo.

O Midrash1, no entanto, descreve o confronto inicial entre Moshê e os rebeldes como concentrados num outro problema. Moshê tinha acabado2 de ensinar a mitsvá do tsitsit (franjas), como é declarado no versículo3: “Fala aos Filhos de Israel e diz a eles para fazer franjas nos cantos de suas vestes… e eles colocarão nas franjas de cada canto um fio azul.”4

Imediatamente, Côrach ordenou que duzentos e cinquenta mantos fossem feitos inteiramente em azul, e que nenhuma franja fosse colocada sobre eles. Seus correligionários então se vestiram com aquelas roupas estranhas e desfilaram perante Moshê. “Você nos ensinou,” Côrach disse a Moshê “que D'us disse a você: ‘Eles colocarão sobre as franjas de cada canto um fio em azul.’ Pergunto a você, e se uma veste for inteiramente azul? Essa, também, exije franjas?”

Moshê respondeu que sim, que a lei permanece a mesma e que essa veste deveria de fato ser obrigada a levar franjas. Côrach e seus homens então riram de Moshê e zombaram: “Uma veste que é feita inteiramente de azul não cumpre a mitsvá – e quatro pequenos fios cumprem? Essas coisas que você nos ensina, não foram ordenadas a você, mas você mesmo as faz!”

Na narrativa bíblica, o foco da oposição de Côrach era político – sua pretensão ao sumo sacerdócio, como mencionado. Porém, como o Midrash deixa claro, a rebelião em si foi iniciada devido ao peculiar caso de Côrach sobre as leis das franjas.

Isso parece estranho, pois Côrach estava presente com todos os judeus no Sinai quando a Torá foi dada a Moshê, e viu ele próprio como Moshê recebeu a Torá de D'us. Além disso, Côrach tinha estudado essa mesma Torá e era um erudito por direito próprio, como fica provado pela sua capacidade de atrair duzentos e cinquenta seguidores, dos quais todos eram chefes de cortes rabínicas.E mesmo assim, apesar de tudo que ele tinha visto e estudado, Côrach denunciou Moshê e a divindade dos mandamentos, tudo por causa de uma questão aparentemente acadêmica sobre se uma roupa feita inteiramente de lã azul está obrigada a ter franjas.

Compreendendo os Mandamentos de D'us

Vamos examinar o argumento exato de Côrach conforme apresentado no Midrash. Não encontramos que Côrach discutiu o argumento básico das franjas. Ele também não rejeitou o conceito de um código de lei Divino em geral. Ao contrário, como fica aparente pelo seu próprio argumento, ele certamente não acreditou que D'us tinha ordenado leis específicas, incluindo até o ritual das franjas em alguma forma. A discórdia de Côrach foi apenas que Moshê não transmitiu fielmente a verdadeira lei, mas sim que inventou suas próprias regras como julgou apropriado.

A não-validade desses ensinamentos, argumentou Côrach, poderia ser observada pela falha das leis de Moshê em se conformarem com a lógica. A lei, conforme apresentada por Moshê, não parecia consistente. Uma veste comum com um único fio de azul em cada canto cumpre um preceito, ao passo que uma roupa feita inteiramente desse mesmo azul não cumpre? Este caso, afirmava Côrach, nada mais era que um exemplo flagrante de como Moshê tinha distorcido toda a Torá, extemporaneamente ou até calculadamente acrescentando suas próprias ideias a todos os mandamentos, até que o corpo de seus ensinamentos se tornassem totalmente inverídicos.

É claro, o argumento de Côrach era substanciado por uma premissa importante – que os mandamentos na verdade se baseiam na lógica. Moshê, no entanto, respondeu com a verdade, pois os mandamentos não aderem estritamente à razão, mas transcendem o intelecto, pois são baseados na própria vontade de D'us. Assim, foi a recusa de Côrach em permitir que a suprema racionalidade superior da lei que o levou a discordar de Moshê e negar seus ensinamentos.

Um Modelo para a Fé

Em outra parte, o Midrash5 relata uma discussão que ocorreu entre D'us e Moshê, pouco antes da emissão do mandamento das franjas. Moshê perguntou a D'us: “O que há de bom em teres dado aos judeus tantos mandamentos, quando eles estão aqui neste mundo físico e grosseiro, e provavelmente vão esquecer toda a ideia da Torá?” D'us respondeu: “Darei a eles a mitsvá das franjas e eles se lembrarão de todos os mandamentos, pois a palavra tsitsit é numericamente equivalente a seiscentos6 e com seus oito nós e cinco cordões, isto faz seiscentos e treze.7 A partir daí eles serão lembrados de todos os mandamentos, como está escrito:8 ‘Eles verão [suas franjas] e se lembrarão dos mandamentos de D'us.’”

Assim, segundo o Midrash, a função das franjas é especificamente representar os seiscentos e treze mandamentos. Essa explicação exegética, no entanto, é aparentemente difícil de reconciliar com o verdadeiro ritual conforme é apresentado na Torá.9

Segundo a lei da Torá, somos ordenados a fazer franjas expressamente para os cantos de nossas roupas. As franjas somente – os cordões por si mesmos – não têm função ritual ou valor a menos que sejam acoplados a uma roupa. E se, como o Midrash parece dizer, o objetivo das franjas for somente nos lembrar dos mandamentos, então ostensivamente deveríamos ser capazes de fazer apenas as franjas sem a necessidade de qualquer roupa. Poderíamos apenas segurar ou olhar para as franjas sozinhas e ser lembrados dos mandamentos dessa maneira.

Na verdade, porém, o Midrash e suas alusões são exatos. Precisamente pelo motivo que os tsitsit são para representar e nos lembrar de todos os outros mandamentos, eles podem servir a este propósito somente quando estão colocados numa roupa. Como discutimos a respeito de Côrach, sua falha estava em reconhecer que a raiz e fonte dos mandamentos excede os limites da compreensão. Este princípio por si mesmo está refletido na mitsvá do tsitsit.

A função de uma roupa é rodear a pessoa, permanecendo externa a ela. Ao contrário de outras necessidades, como comida e água, que oferecem sustento apenas quando levadas para dentro da pessoa, uma roupa age, na terminologia chassídica, como um makkif – aquilo que envolve e é separado. Assim, como as franjas simbolizam os mandamentos, a roupa na qual as franjas devem ser colocadas simbolizam a fonte transcendente dos mandamentos, a vontade Divina, que vai além da lógica e não pode ser intelectualmente interiorizada ou compreendida. Assim, embora haja na verdade uma dimensão intelectual nos mandamentos que não pode ser avaliada por análise e estudo, os mandamentos, como são uma expressão pura da vontade Divina, superam todo o intelecto – até o intelecto Divino, por assim dizer.

Agenda Intelectual

Este, exatamente, foi o problema de Côrach. Sua aceitação dos mandamentos era como um esforço racional. Assim, logo que a Torá deixou de se adequar ao seu entendimento, ele rejeitou sua divindade e aproveitou a oportunidade para adiantar sua agenda corrupta. Na verdade, este empurrão pelo auto-avanço nada mais foi que uma expressão do mais profundo problema de Côrach com o pensamento racionalista.

Nossos Sábios declararam10: “Qual a disputa que foi empreendida em prol do Céu? Aquela de Hilel e Shamai. Qual a disputa que não foi empreendida em prol do Céu? Aquela de Côrach e seus seguidores.” Hilel e Shamai, embora constantemente em desacordo um com o outro sobre a lei da Torá, não eram propensos somente ao intelecto. Por este motivo, encontramos casos em que tanto Hilel quanto Shamai se afastam da sua típica linha de raciocínio e apoiam opiniões que não são características de seus padrões.11 Assim, suas disputas, também, estavam livres de preconceitos intelectuais. Onde eles discordavam, era estritamente por motivos altruístas, para chegarem ao decreto apropriado em vez de promoverem a própria agenda.

Côrach, no entanto, que seguia somente o intelecto, entrava em debate com seus próprios objetivos em mente. Fosse na narrativa bíblica de seu golpe político, ou a narrativa midráshica de sua apostasia sobre uma peculiaridade nas leis das franjas, é sempre Côrach, o erudito, o pensador e líder desesperadamente confinado a cálculos e prisioneiro de seu próprio ponto de vista.12