Baseado nos ensinamentos do Rebe
Dentre os numerosos nascimentos relatados em Bereshit, dois são de gêmeos: o nascimento dos gêmeos de Yischac e Rivka, Yaacov e Esav; e o nascimento de Peretz e Zerach, filhos gêmeos de Tamar e Yehuda.
Embora certas semelhanças marquem os dois nascimentos, há também relevantes diferenças, tanto nas circunstâncias cercando ambas gravidez, quanto no caráter dos gêmeos.
Yischac e Rivka permaneceram sem filhos durante vinte anos; eles rezavam para que fossem abençoados, cada um evocando a bondade do outro em seu apelo a D'us. Sua união sagrada produziu dois filhos distintos: Yaacov cresceu e tornou-se um gentil erudito; Esav, um materialista crasso e conivente.
Os gêmeos de Tamar foram concebidos em circunstâncias pouco exaltadas. Tamar originalmente foi casada com o filho mais velho de Yehuda, Er. Com a morte precoce de Er, ela casou-se, conforme a lei do levirato, com o segundo filho de Yehuda, Onan; mas Onan, também morreu sem deixar filhos. Quando Tamar percebeu que Yehuda não tinha intenção de casá-la com seu terceiro filho, Shelá, ela disfarçou-se de prostituta e seduziu o próprio Yehuda, sua intenção era dar descendência à família. Quando sua gravidez tornou-se visível, Tamar foi condenada a morte, por ordens de Yehuda, por devassidão; foi somente quando ela mostrou determinados bens pessoais que Yehuda havia deixado com ela como pagamento é Yehuda percebeu que a “prostituta” com quem ele tinha coabitado era sua ex-nora, e os gêmeos em seu útero foram aceitos por ele como filhos.
Porém ao contrário da progenitura mista do casamento de Yischac e Rivka, os filhos gêmeos nascidos dessa união moralmente dúbia foram ambos homens justos. Na verdade, todos os reis de Israel, de David a Mashiach, são resultado da gravidez de Tamar.
As diferenças entre a gravidez e nascimentos são mencionadas nos versículos que as descrevem. Sobre a gravidez de Rivka, a Torá diz: “Seus dias para dar à luz foram cumpridos, e vejam, havia gêmeos em seu útero.” Nossos sábios, notando a fraseologia diferente, explicam que a gravidez de Rivka foi uma gravidez “completa” de nove meses, enquanto Tamar deu à luz após uma gravidez “incompleta” de apenas sete meses.
Nossos sábios também afirmam que a palavra hebraica para “gêmeos”, te’omim, é escrita diferentemente nas duas narrativas. Em hebraico muitas palavras podem ser escritas de maneira “completa” ou de maneira “deficiente” (i.e., faltando uma ou mais letras). Na narrativa do nascimento de Peretz e Zerach, a palavra te’omim aparece inteira; mas na narrativa do nascimento de Yaacov e Esav, aparece em forma deficiente, faltando as letras alef e yud. Isso, explicam os comentaristas, alude ao fato de que os gêmeos de Tamar “eram ambos justos, enquanto no caso [de Rivka], um era justo e o outro perverso.” O Midrash parece sugerir que a metade perversa da progênie já estava declarando sua natureza perversa quando ainda estava no útero. Em outras palavras, a gravidez “completa” de Rivka produziu um par “deficiente” de gêmeos, enquanto a gravidez “deficiente” de Tamar produziu uma prole “completa” e perfeita.
Sobre a gravidez de Rivka a Torá relata que “os filhos lutavam dentro dela”. O Midrash explica: “Toda vez que ela passava por uma casa de oração ou casa de estudo, Yaacov lutava para sair… e quando ela passava por uma casa de idolatria, Esav lutava para sair.” Rivka, perplexa pelos esforços contrários exibidos pelos seus filhos, “buscou o conselho de D'us” e lhe foi dito: “Há duas nações em seu útero; dois povos irão se separar das suas entranhas.”
Há, no entanto, outras narrativas no Midrash que descrevem Esav e Yaacov partilhando uma infância correta no ambiente sagrado da casa de seus pais e sob a tutela de seu santo avô, Avraham, e que “somente mais tarde Esav arruinou a si próprio com suas ações.” Isso apoia a ideia inicial de concepção, gravidez e nascimento impecáveis, seguidos por uma progênie “deficiente” que é atribuível somente ao fato de que Esav, pela sua própria vontade, escolheu seguir o caminho do mal. Mas uma contradição similar também é encontrada nas declarações de nossos sábios sobre a criação do mundo por D'us. Por um lado, temos a declaração de que “o mundo foi criado completo” – i.e., plenamente amadurecido sem faltar nada. Porém o mundo perfeito que D'us criou contém o potencial para a imperfeição, até mesmo o mal. Na verdade, este potencial é uma parte integrante de sua perfeição. O Midrash, citando o versículo “E D'us olhou sobre tudo que Ele tinha feito e, viu que era muito bom,” comenta: “Veja, era muito bom” – esta é a boa inclinação; ‘e veja era muito bom’ esta é a inclinação para o mal… ‘ veja era muito bom’ – isto é sofrimento… ‘veja era muito bom’ – este é o anjo da vida; ‘e veja era muito bom’ – este é o anjo da morte…”
As Duas Guloseimas
Um princípio fundamental da fé judaica, escreve Maimônides, é que “a liberdade de escolha foi concedida a todo homem: se ele deseja voltar-se a um caminho do bem e ser uma pessoa justa, a opção está em suas mãos; se ele deseja voltar-se ao caminho do mal e ser uma pessoa perversa, a opção está em suas mãos.” Porém observamos que certas pessoas são mais suscetíveis ao mal do que outras. O Talmud descreve a vitima prototípica do mal, Job, protestando a D'us: “Mestre do universo! Criastes pessoas justas, e Criastes pessoas perversas!”
Em seu livro Tanya, Rabi Shneur Zalman de Liadi explica que D'us de fato criou ”pessoas justas” e “pessoas perversas”. As “pessoas justas” (tsadikim) são indivíduos que, por natureza, abominam o mal e desejam somente o bem, seja porque nasceram assim ou porque transformaram seus anseios negativos em positivos. “Pessoas perversas”, por outro lado, são aqueles indivíduos que estão destinados “não a ser perversos de verdade, D'us não o permita, mas que as ações dos perversos deveriam abordá-los, em suas mentes e pensamentos apenas, para que constantemente eles batalhem para mudar suas mentes e suprimir o mal; pois eles não seriam capazes de assimilar isso completamente – como pode ser atingido somente pelos justos.”
D'us deseja estes dois tipos de seres humanos em Seu mundo. “Assim como nos alimentos físicos, por exemplo, há dois tipos de iguarias: comidas doces e atrativas, e comidas ardidas ou amargas que foram temperadas e enfeitadas portanto são transformadas em iguarias que gratificam a alma,” assim também, “há dois tipos de gratificação perante D'us; uma da completa aniquilação do mal pelos justos; a segunda, quando o mal é dominado enquanto ainda está mais forte e mais poderoso, através dos esforços do homem intermediário.”
Este é o significado mais profundo das “duas nações” que Rivka foi informada que habitavam em seu útero. A gravitação para o mal exibida por um dos seus gêmeos não era uma deficiência – era o potencial para a “segunda iguaria” colocada por D'us. Foi somente mais tarde, quando Esav escolheu render-se à sua má inclinação em vez de lutar contra ela, que a dualidade das forças que ela deu à luz se tornou um par “deficiente” de gêmeos.
Enquanto existiam dentro de Rivka, porém, Yaacov e Esav constituíam uma gravidez “plena”, contendo os dois potenciais fundamentais que D'us implantou em Sua criação; o deleite da bondade total, e o prazer distinto e senso de realização que somente chega após a luta contra a adversidade.
A gravidez e o parto de Tamar descrevem o processo reverso: como circunstâncias e ações negativas podem ser sublimadas para que a perfeição original, da qual brota todo potencial na existência, seja restaurada. Na verdade, quando o potencial para mal, sofrimento, inferno e morte se torna real, a oportunidade existe para que seja atingida uma perfeição ainda mais profunda, quando esses são descartados e transformados em bem.
A Subida ao Monte Zion
Daí vem o paradoxo da nossa existência: a perfeição gera imperfeição (como na gravidez de Rivka), pois nada pode ser dito como realmente perfeito a menos que possua o potencial para a luta, o que significa que deve ser vulnerável à imperfeição. E a imperfeição faz surgir a perfeição (como na gravidez de Tamar), quando a vulnerabilidade é explorada para colher as recompensas da luta e atingir a perfeita mistura de bondade prístina e o mal dominado.
O principal da história é o nobre e doloroso progresso rumo à resolução deste paradoxo, quando, na era de Mashiach, “os salvadores” (descendentes de Tamar) subirão à montanha de Zion para julgar a montanha de Esav (de Rivka), “unindo as vulnerabilidades que nascem da perfeição da criação de D'us com a perfeição que nasce das vulnerabilidades da condição humana.
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