O décimo nono capítulo de Vayikra, com o qual nossa parashá começa, é uma das afirmações supremas da ética da Torá. É sobre o direito, o bem e o sagrado, e contém alguns dos maiores mandamentos morais do judaísmo: "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo" e "Como o natural entre vós, será para o peregrino, e o amarás como a ti mesmo, porque peregrinos fostes na terra do Egito".

Mas o capítulo parece um pouco estranho em sua abordagem. Contém o que parece ser um amontoado aleatório de comandos, muitos dos quais não têm nada a ver com a ética e apenas possui uma tênue conexão com a santidade:

O teu animal não fará juntar com outra espécie.
Em teu campo não semearás com diversas sementes.
Não vestirás roupas tecidas de linho e lã juntos.
Não comerás nenhuma carne que ainda contenha sangue nela [pois a alma de toda a criatura está ligada a seu sangue.]
Não pratique magias ou feitiçaria.
Não cortarás os cabelos nas laterais de sua cabeça, nem corte as bordas de sua barba. (26-28)
E assim por diante. Mas o que estes mandamentos tem a ver com o direito, o bem e a santidade?

Para entender isso, temos que empreender um enorme esforço para captar a visão moral/social/ espiritual única da Torá, tão diferente de tudo o que encontramos em outros lugares.

O Ocidente fez muitas tentativas para definir um sistema moral. Alguns focaram na racionalidade, outros em emoções como simpatia e empatia. Para alguns, o princípio central era o serviço ao Estado, outros focaram no dever moral, e para mais alguns o principal era a maior felicidade para o maior número possível. Estas são todas formas de simplicidade moral..

O judaísmo insiste no oposto: complexidade moral. A vida moral não é fácil. Às vezes, deveres ou lealdades chocam. Às vezes, a razão diz uma coisa, a emoção outra. Mais fundamentalmente, o judaísmo identificou três sensibilidades morais distintas, cada uma das quais tem sua própria voz e vocabulário. Elas são [1] a ética do rei, [2] a ética do sacerdote e fundamentalmente [3] a ética do profeta.

Yirmiyahu e Yechezekel falam sobre suas sensibilidades distintas:
Para o ensino da lei [Torá] pelo sacerdote não cessará,
nem aconselhará [etzah] do sábio [chakham],
nem a palavra [davar] dos profetas. (Yirmiyahu 18:18)

Eles irão procurar por uma visão [chazon] do profeta, a instrução sacerdotal na lei [Torá] cessará, o conselho [etzah] dos anciãos chegará ao fim. (Yechezekel
7:26)

Os sacerdotes pensam em termos da Torá. Os profetas têm "a palavra" ou "uma visão". Os anciãos e os sábios têm "etzah". O que isto significa?

Os reis e os seus tribunais estão associados ao judaísmo com sabedoria – chochmá, etzá e seus sinônimos. Vários livros do Tanach, mais conspicuosamente, Provérbios e Eclesiastes (Mishlei e Kohelet), são livros de "sabedoria" dos quais o supremo exemplo foi o Rei Salomão. A sabedoria no judaísmo é a forma mais universal de conhecimento, e a literatura da Sabedoria é o mais próximo que a Torá chega à outra literatura do antigo Oriente Próximo, bem como dos sábios helenísticos. É prática, pragmática, baseada em experiência e observação; é judiciosa, prudente. É uma receita para uma vida segura e sadia, sem excessos ou extremos, mas dificilmente dramática ou transformadora. Essa é a voz da sabedoria, a virtude dos reis.

A voz profética é bem diferente, apaixonada, viva, radical em sua crítica ao mau uso do poder e à busca exploradora da riqueza. O profeta fala em nome do povo, dos pobres, dos oprimidos e dos abusados. Ele ou ela pensa na vida moral em termos de relações: entre D’us e a humanidade e entre os próprios seres humanos. Os termos fundamentais para o profeta são tzedek (justiça distributiva), mishpat (justiça retributiva), chessed (bondade amorosa) e rachamim (misericórdia, compaixão). O profeta tem inteligência emocional, simpatia e empatia, e sente o sofrimento dos solitários e oprimidos. A profecia nunca é abstrata. Não pensa em termos de universos. Responde ao aqui e agora no tempo e lugar. O sacerdote ouve a palavra de D’us para sempre. O profeta ouve a palavra de D’us para este tempo.

A ética do sacerdote e da santidade em geral, é diferente novamente. As principais atividades do sacerdote são lehavdil - discriminar, distinguir e dividir - e lehorot - instruir as pessoas na lei, tanto em geral como professores quanto em casos específicos como juízes. As palavras-chave do sacerdote são kodesh e chol (santo e secular), tamei e tahor (impuro e puro).

A única passagem mais importante na Torá que fala na voz sacerdotal é o Capítulo 1 de Bereishit, a narrativa da criação. Aqui também um verbo-chave é lehavdil, para dividir,  que aparece cinco vezes. D’us divide-se entre a luz e a escuridão, as águas superiores e inferiores, e o dia e a noite. Outras palavras-chave são "abençoar" – D’us abençoa os animais, a humanidade e o sétimo dia; e "santificar" (cadesh) - no final da criação D’us santifica o Shabat. Abrumadoramente em outros lugares da Torá o verbo lehavdil e o
Mas em todo o resto da Torá o verbo lehavdil e a raíz Kadosh ocorre em um contexto sacerdotal; e são eles que abençoam as pessoas.

A tarefa do sacerdote, como D’us na criação, é estabelecer a ordem fora do caos. O sacerdote estabelece fronteiras em ambos tempo e espaço. Há tempos sagrados e lugares sagrados, e cada tempo e lugar tem sua própria integridade, seu próprio cenário no esquema total das coisas. O protesto do Cohen é contra a confusão de fronteiras tão comuns nas religiões pagãs - entre deuses e humanos, entre a vida e a morte, entre os sexos e assim por diante. Um pecado, para o Cohen, é um ato no lugar errado, e seu castigo é o exílio, sendo expulso do seu lugar legítimo. Uma boa sociedade, para o ele, é aquela em que tudo está em seu lugar apropriado, e o Cohen tem especial sensibilidade para o estrangeiro, a pessoa que não tem lugar próprio.

A coleção de mandamentos estranhos em Kedoshim, portanto, não é totalmente estranha. O código de santidade vê o amor e a justiça como parte de uma visão total de um universo ordenado em que cada coisa, pessoa e ato possui seu lugar legítimo, e é essa ordem que está ameaçada quando a fronteira entre diferentes tipos de animais, grãos, tecidos é violada; quando o corpo humano está lacerado; ou quando as pessoas comem sangue, o sinal da morte, para alimentar a vida.

No Ocidente secular, estamos familiarizados com a voz da sabedoria. É um ponto comum entre os livros de Provérbios e Eclesiastes e os grandes sábios de Aristóteles a Marcus Aurelio a Montaigne. Conhecemos também a voz profética e o que Einstein chamou de "amor quase fanático de justiça". Estamos muito menos familiarizados com a ideia sacerdotal de que, assim como há uma ordem científica para a natureza, há uma ordem moral e consiste em manter separadas as coisas que são separadas mantendo os limites que respeitam a integridade do mundo que D’us criou e sete vezes pronunciadas boas.

A voz sacerdotal não é marginal ao judaísmo. É central, essencial. É a voz do primeiro capítulo da Torá. É a voz que definiu a vocação judaica como "um reino de sacerdotes e uma nação santa". Ela domina Vayikra, o livro central da Torá. E enquanto o espírito profético vive em agadá, a voz sacerdotal prevalece em halachá. E o próprio nome Torá - do verbo lehorot - é uma palavra sacerdotal.

Talvez a ideia da ecologia, uma das principais descobertas dos tempos modernos, nos permitirá compreender melhor a visão sacerdotal e o seu código de santidade, onde ambos vêem a ética, não apenas como sabedoria prática ou justiça profética, mas também como honrando a estrutura profunda - a ontologia sagrada - do ser. Um universo ordenado é um universo moral, um mundo em paz com o próprio Criador e com ele próprio.