Cashrut está voltando. Onde quer que vivam judeus, as pessoas estão descobrindo ou fortalecendo seu compromisso com as normas alimentares de trinta e três séculos do povo judeu.

Se perguntássemos a um judeu comum, que viveu cerca de cem anos atrás, se ele observava a Cashrut, a provável resposta seria: "Naturalmente! Eu sou judeu!"

Para as nossas bisavós, manter-se Casher era um ato tão natural quanto o próprio ato de comer. Poucas pessoas se afastavam dessa prática, mesmo que houvesse deslizes em sua observância sob outros aspectos.

Na transição da Europa para as Américas e depois das revoluções sociais destes séculos, a situação inverteu-se quase que completamente. Muitos de nós fomos criados pensando que os judeus que ainda observavam Cashrut eram exoticamente anacrônicos, algo assim como os "amish" com seus cavalos e charretes. Assumimos que Cashrut era uma precaução de saúde obsoleta, válida nos tempos anteriores à refrigeração, mas atualmente sem significado.

Nosso grande mestre e profeta Moshé Rabênu era, então, presumivelmente uma espécie de administrador primitivo da fiscalização de saúde e alimentação, e as proibições de misturar leite e carne ou de consumir carne de porco e ostras, de acordo com este novo decreto de comer casher, tinha a ver com bactérias, triquinose, medidas sanitárias e coisas do gênero. O fato de que alguns dos maiores cérebros da História - Rashi, Maimônides, Nachmanides, Rabi Yitschac Luria (o Arizal) e os sábios do Talmud - disseram claramente outra coisa, não nos impressionou absolutamente (a maioria de nós não tinha sequer ouvido falar deles).

Se alguém nos tivesse dito que Cashrut é um mandamento da Torá, outorgado ao povo judeu por D'us no Monte Sinai, com a intenção de ajudar a formar uma nação, cuja missão era e ainda é trazer Divindade ao mundo, teríamos ficado um tanto incrédulos, e até mesmo indignados.

"O que você quer dizer com 'trazer Divindade ao mundo'?" - poderíamos ter retrucado. 'Por que deveria D'us se preocupar com o que como? O que tem a comida a ver com isso?'

Tais perguntas ainda formam a espinha dorsal das objeções modernas à Cashrut, e possibilitam a idéia absurda de que a origem das leis alimentares é higiênica.

As perguntas podem ser válidas, mas elas não são judaicas. No mundo europeu de nossos ancestrais, a questão de D'us Se preocupar ou não com o que comemos não foi levantada - não porque eles eram menos inteligentes ou sofisticados do que nós, nem porque eles não tinham refrigeradores, mas porque seu mundo era totalmente judaico. Era permeado de valores judaicos e idéias judaicas sobre a natureza do homem, D'us e o Universo.

Uma mudança no meio ambiente acarretou uma transformação total no pensamento. Estamos imersos em uma cultura que assume uma perspectiva a qual é, às vezes, diametralmente oposta à do judaísmo. O pensamento não-judaico permeou de tal forma a civilização ocidental que chegamos a pensar em seus valores como neutros ou mesmo universais. Mas eles não o são.

O Rabino Zalman Posner, um erudito e autor contemporâneo decorre sobre a necessidade de falar inglês mas pensar judaicamente em seu livro "Think jewish". A maior parte de nossas idéias sobre D'us e religião, ressalta ele, origina-se de fontes não judaicas. Armados com uma educação judaica de nível, quando muito, elementar (e muitas vezes absolutamente nenhuma) passamos anos absorvendo conhecimento nos saguões da escola superior. Mesmo o conhecimento de judaísmo é filtrado através das tendências culturais da Filosofia, Literatura e História Ocidentais.

É difícil, portanto para a mente contemporânea compreender exatamente por que o judaísmo traz tamanho alarde com assuntos como comer e beber, necessidades básicas que são compartilhadas não apenas por toda a humanidade, como também pelos animais.

A prece, a meditação, a caridade e um estilo de vida ascético, são reconhecidos por todos como sendo "assuntos religiosos". De acordo com o enfoque predominante a alma é espiritual e sagrada, enquanto o corpo é material e desprezível (o reverso da medalha é o hedonismo, onde o próprio corpo é cultuado). De uma forma ou de outra - por que deveria D'us preocupar-se com o que como?

A Torá nos diz: "Conhece-O em todos os teus caminhos."

A língua hebraica nem mesmo tem uma palavra para "religião". O enfoque judaico é que, não apenas no Shabat e nas Festas, e não apenas na oração, mas em todos os momentos temos o poder de santificar a existência cotidiana. O lar judaico é chamado de "santuário em miniatura"; a mesa é considerada um altar.

Cada um dos mandamentos, muitos do quais envolvem objetos físicos (alimentação casher, velas de Shabat, tefilin, mezuzá, serve como um canal de conexão entre um judeu e D'us. Cada mitsvá cumprida fortalece este elo. A existência física, demonstrada pelo corpo, não é desprezada nem glorificada por seu próprio mérito, mas elevada e refinada a serviço da alma. O próprio mundo físico é um veículo para trazer santidade ao mundo.

Cashrut oferece uma oportunidade para sermos realmente humanos, pois apenas o homem pode exercer a opção e a autodisciplina ao satisfazer os desejos físicos.

Nutrição espiritual

Podemos então encarar o "ser judeu" como uma experiência sagrada, da qual observar a Cashrut é uma parte integral.

Nossos grandes Rabis e sábios nos dizem que Cashrut é ainda mais do que isto. Indiscutivelmente, é a mitsvá de maior alcance, pois afeta o corpo inteiro, a mente, o coração e a psique da pessoa.

As leis concernentes aos animais casher e não-casher são apresentadas no terceiro livro da Torá. Nenhuma razão é dada para explicar, por exemplo, porque um animal que rumina e tem os cascos fendidos é casher; enquanto um animal que apresenta apenas um destes sinais não o é. Não há nenhuma lógica aparente para fazer uma distinção entre um tipo de animal, ave ou peixe e outro.

O grande comentarista Rashi escreveu no século XI, citando fontes talmúdicas de muitos séculos atrás, que a proibição de carnes, tais como a de porco, é uma dessas mitsvot que devem ser aceitas exclusivamente pela fé, pois não tem, em nenhuma hipótese, qualquer base lógica humanamente compreensível.

Outras mitsvot, embora admissíveis para o intelecto humano, também são observadas simplesmente por serem preceitos da Torá. Ao aceitar a Torá no Monte Sinai, o povo judeu disse duas palavras que ecoam até hoje em nossa consciência e em nosso enfoque do cumprimento dos mandamentos: "Naassê Venishmá" - "Faremos e [só então] entenderemos." Isto significa que aceitamos as mitsvot como outorgadas por D'us,e que após termo-nos comprometido em cumpri-las, procuraremos então compreendê-las.

A tradição judaica às vezes nos oferece esclarecimentos, não para fornecer uma razão para cumprir as mitsvot, mas para satisfazer nosso desejo de entender, até onde for possível dentro das limitações do intelecto humano. A explicação mais próxima que encontramos na Torá sobre as leis de animais casher é a afirmação que segue imediatamente à enumeração daquelas leis: "Pois Eu sou o Senhor vosso D'us; santificai-vos, portanto, e sede santos, pois santo sou Eu" (Vayicrá XI:44).

O povo judeu foi escolhido no Monte Sinai para tornar-se "um reino de sacerdotes e uma nação sagrada." A razão da alimentação casher é que ela foi projetada para trazer refinamento e purificação ao povo judeu. Os alimentos que comemos são absorvidos pelo corpo, penetrando em nossa carne e nosso sangue, e afetando diretamente todos os aspectos do nosso ser. As aves de rapina e os animais carnívoros tem o poder de influenciar aquele que os come com atributos agressivos, e estão entre os alimentos proibidos pela Torá. Para um judeu, o alimento não-Casher embota a mente e o coração, reduzindo a capacidade de absorver conceitos de Torá e mitsvot, inclusive mesmo aquelas mitsvot que podem ser entendidas pela inteligência humana.

Os alimentos proibidos são citados na Torá como uma abominação para a alma Divina, elementos que são subtraídos de nossa sensibilidade espiritual. A pessoa se torna menos sensível aos sentimentos de Divindade, e menos capaz de entender conceitos Divinos. Ao contrário, quando a pessoa come alimentos Casher, sua receptividade à Divindade se intensifica.

O corpo é o único meio através do qual a alma se expressa. "Assim como o artesão não pode fazer seu trabalho sem as ferramentas adequadas" - escreveu o cabalista do século XlII, Rabi Menachem Recanati - "também a alma não pode cumprir sua tarefa sem um corpo que coopere; e assim como faz uma grande diferença para qualquer trabalho de qualidade se um artesão possui ou não ferramentas de precisão, é muito importante para a alma humana se o corpo é feito de material fino ou grosseiro. Mesmo a Iuz brilha mais forte através de uma boa luminária, e as mesmas árvores produzem frutos diferentes de acordo com o solo em que foram plantadas."

D'us se importa com o que eu como?

A frase bíblica que diz: "Nem só de pão vive o homem, mas da palavra de D'us", significa que o ser humano extrai sua força de vida das centelhas Divinas encontradas no alimento.

Acaso D'us se importa com o que eu como? Absolutamente, sim; por este motivo ele forneceu todas as indicações de como intervir na natureza e de que forma proceder na extração dos alimentos que se encontram em Sua Criação.

A conexão da cashrut à essência da alma judaica, em cada indivíduo e no povo em sua totalidade, fornece a resposta. Quem segue estritamente as leis dentro da cozinha sabe que a comida casher não somente cuida da saúde física, mas principalmente, da saúde da alma.