A parashá Tazria começa com o nascimento de um filho, e no caso de um menino, “No oitavo dia a carne de seu prepúcio será circuncidada.”1 Isso tornou-se conhecido não apenas como milá, “circuncisão”, mas algo mais teológico, brit milá, “o pacto da circuncisão”. É por isso que antes até do Sinai, quase ao nascer da história judaica, a circuncisão se tornou o sinal do pacto de D'us com Avraham.2
Por que esse foi desde o início não apenas uma mitsvá, uma ordem entre outras, mas o próprio sinal do nosso pacto com D'us e Dele conosco? E por que no oitavo dia?
A parashá da semana passada foi Shemini, “o oitavo dia”3 porque lidava com a inauguração do Mishcan, o Santuário, que também ocorreu no oitavo dia. Qual a conexão entre esses dois eventos tão diferentes?
O local para começar é um estranho midrash registrando um encontro entre o governador romano Tiranus Rufus4 e Rabi Akiva. Rufus começou a conversa perguntando: “Quais obras são melhores, as de D'us ou as do homem?”
Surpreendentemente, o Rabino respondeu: “Aquelas do homem.”
Rufus respondeu: “Mas olhe para os céus e a terra. Um ser humano consegue fazer algo como aquilo?”
Rabi Akiva respondeu que a comparação era injusta. “Criar o céu e a terra está claramente além da capacidade humana. Dê-me um exemplo extraído de matérias que estejam dentro do âmbito humano.”
Rufus então disse: “Por que vocês praticam a circuncisão?” A isso, Akiva respondeu: “Eu sabia que você faria essa pergunta. É por isso que eu disse antes que as obras do homem são melhores que aquelas de D'us.”
O rabino então colocou perante o governador espigas de milho e bolos. O milho não processado é a obra de D'us. O bolo é a obra do homem. Não é mais agradável comer bolo que espigas de milho cruas?
Rufus então disse: “Se D'us realmente deseja que pratiquemos a circuncisão, por que Ele não fez os bebês já nascerem circuncidados?”
Rabi Akiva respondeu: “D'us deu as ordens a Israel para refinar nosso caráter.”5
Essa é uma conversa bastante estranha, mas, como veremos, profundamente significativa. Para entender, temos de voltar ao início do tempo. A Torá nos diz que durante seis dias D'us criou o universo e no sétimo Ele descansou, declarando-o sagrado. Sua última criação, no sexto dia, foi a humanidade: o primeiro homem e a primeira mulher. Segundo os sábios, Adam e Eva pecaram ao comer o fruto proibido já naquele dia e foram condenados ao exílio do Jardim do Éden. Porém, D'us retardou a execução da sentença por um dia para permitir-lhes passar o Shabat no jardim.
Quando o dia se aproximou do fim, os seres humanos estavam para ser mandados para o mundo na escuridão da noite. D'us teve pena deles e lhes mostrou como fazer a luz. É por isso que acendemos uma vela especial na Havdalá, não apenas para marcar o final do Shabat mas também para mostrar que começamos a semana de trabalho com a luz que D'us nos ensinou a fazer.
A vela de Havdalá portanto representa a luz do oitavo dia – que assinala o início da criatividade humana. Assim como D'us começou o primeiro dia da criação com as palavras “Que haja luz”, também no início do oitavo dia, Ele mostrou aos seres humanos como eles também poderiam fazer luz. A criatividade humana é assim concebida no Judaísmo como paralela à criatividade Divina,6 e é o símbolo do oitavo dia. É por isso que o Mishcan, Santuário, foi inaugurado no oitavo dia. Como Nechama Leibowitz e outros disseram, há um paralelismo inegável entre a linguagem que a Torá usa para descrever a criação de D'us do universo e a criação do Santuário pelos israelitas. O Mishcan foi um microcosmo – um cosmos em miniatura. Assim Bereshit começa e Shemot termina com histórias da criação, a primeira por D'us, a segunda pelos israelitas. O oitavo dia é quando celebramos a contribuição humana para a criação.
É por isso também que a circuncisão ocorre no oitavo dia. Toda a vida, acreditamos, vem de D'us. Todo ser humano carrega Sua imagem e semelhança. Vemos cada filho como presente de D'us: “Filhos são a provisão do Senhor; o fruto do útero, sua recompensa.”7 Porém é preciso um ato humano – a circuncisão – para assinalar que um menino judeu entrou no pacto. É por isso que ocorre no oitavo dia, para enfatizar que o ato que simboliza a entrada no pacto é humano – assim como foi quando os israelitas ao pé do Monte Sinai disseram: “Tudo que o Senhor disse, faremos e obedeceremos.”8
Mutualidade e reciprocidade assinalam a natureza especial do pacto específico que D'us fez, primeiro com Avraham, então com Moshê e os israelitas. É isso que o diferencia do pacto universal que D'us fez com Noach e através dele com toda a humanidade. Aquele pacto, marcado em Bereshit 9, não envolvia reação humana. Seu conteúdo eram as sete ordens Noachidas. Seu sinal foi o arco-íris. Mas D'us nada pediu a Noach, nem mesmo seu consentimento. O Judaísmo incorpora uma dualidade única do universal e do particular. Estamos todos em pacto com D'us pelo mero fato de nossa humanidade. Somos todos unidos, todos nós, pelas leis básicas da moralidade. Isso é parte do que significa ser humano. Mas ser judeu é também ser parte de um pacto particular de reciprocidade com D'us. D'us chama. Nós respondemos. D'us começa a obra e nos chama para completá-la. É isso que o ato da circuncisão representa. D'us não fez meninos nascerem circuncidados, disse Rabi Akiva, porque Ele deliberadamente deixou esse ato, este sinal do pacto, para nós.
Agora começamos a entender a profundidade da conversa entre Rabi Akiva e o governador romano Tineius Rufus. Para os romanos, os gregos e o mundo antigo em geral, os deuses eram encontrados na natureza: o sol, o mar, o céu, a terra e suas estações, os campos e sua fertilidade. No Judaísmo, D'us está além da natureza, e seu pacto conosco nos leva também além da natureza. Então para nós, nem tudo natural é bom. Guerra é natural. Conflito é natural. A violenta competição é natural. Judeus – e outros inspirados pelo D'us de Avraham – acreditam, como disse Katherine Hepburn a Humphrey Bogart no filme A Rainha Africana, que “Natureza, Sr. Allnut, é aquilo que somos colocados neste mundo para subir acima.”
Os romanos achavam a circuncisão estranha porque não era natural. Por que não celebrar o corpo humano como D'us o fez? D'us, disse Rabi Akiva ao governador romano, valoriza cultura, não apenas natureza, a obra dos seres humanos não apenas a obra de D'us. Foi esse conjunto de ideias – que D'us deixou a criação não terminada para nos tornarmos parceiros em sua compleição; que ao responder à ordem de D'us nos tornamos refinados; que D'us Se deleita em nossa criatividade e nos ajudou ao longo do caminho ensinando os primeiros seres humanos como fazerem luz – o que fez o Judaísmo único em sua fé em D'us e na fé na humanidade. Tudo isso está implícito na ideia do oitavo dia como o dia no qual D'us enviou os seres humanos ao mundo para se tornarem Seus parceiros na obra da criação.
Por que isso é simbolizado no ato da circuncisão?
Porque se Darwin estava certo, então o mais primário dos instintos humanos é procurar passar os genes para a próxima geração. Esta é a mais poderosa força da natureza dentro de nó. A circuncisão simboliza a ideia de que há algo mais elevado que a natureza. Transmitir nossos genes para a próxima geração não deveria ser simplesmente um instinto cego, um anseio darwiniano. O pacto de Avraham estava baseado em fidelidade sexual, a santidade do casamento, e a consagração do amor que traz vida nova ao mundo.9 É a rejeição da ética do alfa masculino.
D'us criou a natureza física; a natureza moldada pela ciência. Mas Ele nos pede para sermos co-criadores, com Ele, da natureza humana. Como disse Rabi Avraham Mordechai Alter de Ger: “Quando D'us disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem,’ com quem Ele estava falando? Com o próprio homem. D'us disse ao homem, Vamos – você e Eu – fazer o homem juntos.”1010 O símbolo daquela co-criação é o oitavo dia, o dia em que Ele nos ajuda a criar um mundo de luz e amor.
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