É difícil traçar com precisão o momento em que uma nova ideia faz sua primeira aparição na cena humana, especialmente uma tão amorfa como a do amor. Mas o amor tem uma história.1

Há o contraste que encontramos no pensamento grego, e no cristão, entre eros e agape; desejo sexual e um amor altamente abstrato pela humanidade em geral. Há o conceito de cavalheirismo que aparece na época das Cruzadas, o código de conduta que premiava a galanteria e atos de bravura para “ganhar o coração de uma mulher”.

Há o amor romântico que faz sua aparição nas novelas de Jane Austen, insinuando que o homem jovem ou não tão jovem destinado para a heroína deve ter a renda adequada e propriedades, para exemplificar a “verdade universalmente reconhecida de que um homem solteiro com uma boa fortuna deve estar à procura de uma esposa”.2

A história da humanidade é em parte a história do amor. E a certa altura uma nova ideia aparece na Israel bíblica. Podemos traçá-la melhor numa passagem altamente sugestiva no livro de um dos grandes profetas da Torá, Hosea. Ele viveu no oitavo século AEC. O reino tinha sido dividido desde a morte de Salomão. O reino ao norte, onde Hosea morava, após um período de paz e prosperidade tinha caído numa época de ilegalidade, idolatria e caos. Entre 747 e 732 AEC houve nada menos que cinco reis, o resultado de uma série de intrigas e lutas sangrentas pelo poder. O povo, também, tinha relaxado. “Não há fé ou bondade, e nenhum conhecimento de D'us no país; há trapaça, mentira, assassinato, roubo e adultério; eles quebram todos os vínculos e ocorre um assassinato depois do outro” (Hosea 4 1-2).

Como outros profetas, Hosea sabia que o destino de Israel dependia de seu senso de missão. Fiel a D'us, foi capaz de fazer coisas extraordinárias: sobreviver face aos impérios, e gerar uma sociedade ímpar no mundo antigo, de dignidade igual a todos os cidadãos sob a soberania do Criador do céu e da terra. A falta de fé, no entanto, era apenas mais um poder menor no antigo Oriente Próximo, cujas chances de sobrevivência contra os predadores políticos maiores eram mínimas.

O que torna notável o livro de Hosea é o episódio com o qual ele começa. D'us diz ao profeta para casar-se com uma prostituta, e ver como é ter um amor traído. Somente então Hosea tem um vislumbre ao senso de traição a D'us pelo povo de Israel. Tendo os libertado da escravidão e os levado para sua terra, D'us os viu esquecer o passado, desprezar o pacto, e adorar deuses estranhos. Porém Ele não os pode abandonar apesar do fato de que eles O abandonaram. É uma passagem poderosa, transmitindo a impressionante afirmação de que mais do que o povo judeu ama a D'us, D'us ama o povo judeu.

A história de Israel é uma história de amor entre o D'us fiel e Seu povo com frequência infiel. Embora D'us seja irado às vezes, Ele sempre perdoa. Ele os aceitará numa espécie de segunda lua de mel, e eles renovarão seus votos de casamento. “Portanto, agora vou contrair casamento com ela; eu a levarei ao deserto e falarei ternamente com ela… Vou unir você comigo para sempre; vou comprometer-me com você em bondade e justiça, em amor e compaixão. Vou me comprometer com você em fidelidade e você conhecerá o Eterno.” (Hosea, 2:16-22).

É sua última sentença - com sua comparação explícita entre o pacto e o casamento - que homens judeus dizem quando colocam tefilin na mão, enrolando sua correia ao redor do dedo como uma aliança. Um versículo no meio desta profecia merece um escrutínio mais apurado. Contém duas metáforas complexas que devem ser desvendadas palavra por palavra.

“Naquele dia”, declara o Eterno, “você Me chamará de ‘meu marido’ [ishi]: não mais Me chamará de ‘meu mestre’ [baali]. (Hosea 2:18). Este é um duplo trocadilho. Baal, no hebraico bíblico, significa ‘um marido’, mas num sentido mais específico - ou seja, ‘mestre, dono, possuidor, controlador.” Demonstra domínio físico, legal e econômico. Era também o nome do deus canaanita - cujos profetas Elijah desafiou no famoso confronto no Monte Carmel. Baal (com frequência retratado como um touro) era o deus da tempestade, que derrotou Mot, o deus da esterilidade e da morte. Baal era a chuva que impreganava a terra e a tornava fértil. A religião de Baal é a adoração de deus-como-poder. Hosea contrasta este tipo de relacionamento com a outra palavra hebraica para marido, ish. Aqui ele está relembrando as palavras do primeiro homem para a primeira mulher:

“Esta agora é osso dos meus ossos e carne da minha carne; será chamada Mulher [ishá]. Porque ela foi tirada do homem [ish].” (Gênesis 2:23)

Aqui o relacionamento macho-fêmea é baseado em algo que não o poder e o domínio, posse e controle. Homem e mulher se confrontam em igualdade e diferença. Um é a imagem do outro; porém cada qual é separado e distinto. O único relacionamento capaz de juntá-los sem o uso de força é o casamento - como um pacto - um vínculo de lealdade mútua e amor no qual cada qual faz uma promessa ao outro para se servirem. Não apenas esta é uma forma radical de reconceitualizar o relacionamento entre homem e mulher. Também, sugere Hosea, é a maneira pela qual devemos pensar no relacionamento entre seres humanos e D'us. D'us chega à humanidade não como poder - tempestade, trovão, chuva - mas como amor, e não um amor abstrato e filosófico, mas uma paixão profunda que sobrevive a todos os desapontamentos e traições.

Israel pode nem sempre se comportar amorosamente com D'us, diz Hosea, mas D'us ama Israel e não deixará de amar. Esta é a mensagem de Hosea - e vice versa: a forma como nos relacionamos com outras pessoas afeta a maneira de pensarmos em D'us. O caos político em Israel no Século Oitavo AEC estava intimamente conectado com seus modos religiosos de ser. Uma sociedade construída sobre corrupção e exploração é uma na qual o poder poderia prevalecer sobre o direito.

Isso não é Judaísmo, mas idolatria, adoração a Baal. Agora entendemos por que o sinal do pacto é a circuncisão, o mandamento dado na primeira parashá dessa semana, Tazria. Para a fé ser mais do que a adoração do poder, deve afetar o relacionamento entre homens e mulheres. Numa sociedade baseada em pacto, relacionamentos macho-fêmea são construídos sobre algo mais gentil que o domínio masculino, poder masculino, desejo sexual e o anseio para controlar, possuir e mandar. Baal deve se tornar ish. O macho alfa deve ser tornar o marido que cuida. O sexo deve ser santificado e temperado pelo respeito mútuo. O desejo sexual deve ser circuncidado e circunscrito para que não procure mais possuir e sim amar. Há mais do que uma conexão acidentalentre monoteísmo e monogamia. Embora a lei bíblica não ordene a monogamia, mesmo assim ela é o estado normativo da história humana; Adam e Eva, um homem, uma mulher. Sempre que no Gênesis um patriarca desposa mais de uma mulher, há tensão e angústia. O compromisso com um D'us é espelhado no compromisso com uma pessoa.

A palavra hebraica emuná, traduzida como “fé”, na verdade significa fidelidade, exatamente o compromisso que a pessoa aceita ao se casar. De modo contrário, para os profetas há uma conexão entre idolatria e adultério. É como D'us descreve Israel para Hosea. D'us casou-Se com os israelitas mas eles, ao servir ídolos, agiram como uma mulher promíscua. (Hosea 1-1). O amor entre marido e mulher - pessoal e moral, apaixonado e responsável - é o mais perto que podemos chegar de entender o amor de D'us por nós e nosso amor ideal por Ele. Quando Hosea diz “Você conhecerá o Eterno”, ele não quer dizer conhecimento no sentido abstrato. Ele diz conhecimento da intimidade e relacionamento, o toque de dois seres cruzando o abismo metafísico que separa uma consciência da outra. Este é o tema de Cântico dos Cânticos, aquela expressão profundamente humana porém mística de eros, o amor entre a humanidade e D'us.

É também o significado de uma das frases definitivas no Judaísmo: “Amarás ao Eterno teu D'us com todo teu coração, toda tua alma e com toda tua força”(Deuteronômio 6:5).O Judaísmo desde o início fez uma conexão entre sexualidade e violência por um lado, fidelidade matrimonial e ordem social no outro. Não é por acaso que o casamento é chamado kidushin, “santificação”. Como o próprio pacto, o casamento é um voto de lealdade entre duas partes, cada uma reconhecendo a integridade da outra, honrando suas diferenças até quando se juntam para criar nova vida. O casamento é para a sociedade aquilo que o pacto é para a fé religiosa; uma decisão de fazer amor - não poder, riqueza ou força maior - o princípio gerador da vida. Assim como a espiritualidade é o relacionamento mais íntimo entre nós e D'us, assim o sexo é o relacionamento mais íntimo entre nós e outra pessoa.

A circuncisão é o sinal eterno da fé judaica porque une a vida da alma com as paixões do corpo, lembrando que ambos devem ser regidos pela humildade, autocontrole e amor. O brit milá ajuda a transformar o homem de Baal em Ish, de parceiro dominante em marido amoroso, assim como D'us diz a Hosea que isso é o que Ele busca em Seu relacionamento com o povo do pacto. A circuncisão transforma a biologia em espiritualidade. O instinto do macho para se reproduzir se torna um ato pactual de parceria e afirmação mútua. Foi assim uma mudança decisiva na civilização humana com o próprio monoteísmo de Avraham. Ambos são sobre abandonar o poder como a base do relacionamento, e nos alinharmos com aquilo que Dante chamou “o amor que move o sol e as estrelas.”3 A circuncisão é a expressão física da fé que vive no amor.