"Estas são as palavras que Moshê falou a todos de Israel além do Rio Jordão, no deserto, em Aravat, em frente ao Suf, entre Paran e Tofel, e Lavan e Chatzerot e Di-Zavah" (Devarim 1:1).

Embora este versículo possa representar a abertura e introdução ao Sêfer Devarim, à primeira vista o versículo parece permeado de passagens problemáticas e expressões. O observador atento perceberá imediatamente que não apenas os judeus não foram localizados no deserto, como o versículo parece sugerir (eles estavam na verdade nas planícies de Moav), mas em lugar algum da Torá encontramos menção a locais como Paran, Tofel e Lavan.

Rashi resolve o enigma com a explicação de que na realidade este versículo não tem intenção de informar-nos sobre a localização dos filhos de Israel. Ao contrário, estas frases são na verdade alusões a fatos e servem como continuação da primeira metade do versículo. Dessa maneira, o versículo poderia na verdade ser lido: "Estas são as palavras (de admoestação) que Moshê falou a todos de Israel," com o versículo continuando a delinear os vários pecados cometidos pelos judeus no deserto, cada "lugar" referindo-se a um mal diferente.

Entretanto, deparamo-nos imediatamente com outra dificuldade: por que deveria Moshê mascarar suas palavras de repreensão com um manto de disfarce? Por que não simplesmente vir direta e claramente delinear os crimes do povo judeu?

Uma vez mais Rashi vem em nossa ajuda, explicando que Moshê escolheu ocultar sua repreensão em pistas e alusões para não arriscar-se a insultar ou ofender o próximo judeu. Se nos detivéssemos apenas um momento para refletir sobre as palavras de Rashi, poderíamos facilmente dispensá-las e seguir adiante. Entretanto, o tempo empregado em mergulhar um pouco mais a fundo na interpretação de Rashi vale a pena, pois ela revela ser um tesouro notável.

O Livro de Devarim representa a conquista final de Moshê como líder dos filhos de Israel. Ele guiou os judeus através do deserto por quarenta anos, agindo às vezes como pai e, em outras, como mediador e negociador. Cuidou de tudo. Agora chegou a hora de Moshê pronunciar suas palavras finais de admoestação e encorajamento. É agora ou nunca; se os judeus não entenderem a mensagem desta vez, jamais o farão.

Certamente, poder-se-ia esperar que Moshê desejasse que suas intenções ficassem tão claras quanto possível, a fim de não deixar margem para mal-entendidos. Entretanto, encontramos exatamente o oposto neste versículo, pois Moshê mascara sua mensagem com um véu de alusões e referências enigmáticas. E por qual razão? Para não ofender e embaraçar o judeu, o que poderia levar à desunião entre o povo. Moshê está disposto a correr o risco de que suas palavras finais de advertência possam ser mal interpretadas ou aplicadas erroneamente, a fim de manter a harmonia no acampamento de Israel. A demanda pela paz é tão grande que até mesmo supera a significativa mensagem de Moshê em seu discurso final.

Na verdade, encontramos a mesma idéia nas palavras de nossos sábios a respeito do reino de Achav, um dos reis mais perversos que Israel teve. O Talmud (Tratado Yerushalmi Pe'ah) ensina que embora a prática de idolatria tenha engolfado praticamente toda a população judaica em Israel na época, mesmo assim os exércitos de Achav foram capazes de derrotar seus inimigos na guerra. Por quê? Por causa da unidade e harmonia que reinava entre os judeus, que suplantou mesmo o grave pecado da idolatria.

A mensagem é clara – a necessidade de paz e solidariedade entre o povo judeu é da maior importância. Mesmo a última vontade e testamento de Moshê, ou o mal da idolatria, não podem minar a importância da unidade. Embora devamos estar sempre cientes desta realidade, o período no qual nos encontramos agora clama para que tenhamos mais atenção ainda com o assunto.

Este intervalo entre Shivah Asar B'Tammuz e Tishah B'Av, conhecido simplesmente como "Três Semanas", comemora os acontecimentos que culminaram com e incluíram a real destruição dos dois Templos Sagrados em Tishav B'Av. O Talmud (Tratado Yoma 9b) ensina que a destruição do Segundo Templo foi provocada pelo mal do ódio injustificado para com outros. Foi a falha dos judeus daquela época em reconhecer a importância de respeitar e honrar as necessidades do irmão judeu que levou à infortunada destruição do Templo.

Cabe a nós retificar esta omissão, levando a sério a importante lição oculta nas palavras de Rashi na porção desta semana da Torá. Pois assim como o Templo foi destruído por causa de ódio não justificado, assim também será reconstruído pela bondade não justificada.