"E se D’us não tivesse tirado nossos antepassados para fora do Egito, nós, nossos filhos, e os filhos de nossos filhos ainda estaríamos como escravos do faraó no Egito" (Hagadá de Pêssach).

Muitos comentaristas perguntam-se como o escritor da Hagada pôde ser tão atrevido a ponto de predizer que, "se D’us não nos tivesse tirado do Egito há mais de 3300 anos, ainda estaríamos lá" nos dias de hoje. Afinal, nenhuma nação, não importa quão poderosa seja, pode reinar para sempre. Certamente, em certo ponto durante estes milhares de anos, os egípcios poderiam ter se distraído, dando ao povo judeu uma chance de escapar da escravidão. Como então podemos entender esta afirmação aparentemente não realista de que ainda seríamos escravos, se D’us não tivesse nos levado para fora na época do Êxodo?

Uma solução fascinante para esta dificuldade é apresentada pelo Beis Halevi em seu clássico comentário da Hagada. A explicação da passagem problemática enfatiza que existem, de fato, dois níveis de escravidão – escravidão do corpo e escravidão da mente – e a pessoa pode achar-se em uma situação em que não esteja escravizada nos dois níveis ao mesmo tempo. É possível para alguém permanecer num estado de liberdade física, com domínio total sobre seu corpo, mas mentalmente estar absolutamente limitado por forças externas que o deixam sem nenhum controle sobre sua própria mente.Tal pessoa terá grande dificuldade em levar uma vida normal.

De fato, lemos a respeito dos grandes obstáculos encontrados pelos escravos libertos no Sul dos Estados Unidos após a Guerra Civil, pois embora estivessem fisicamente emancipados, mesmo assim possuíam a "mentalidade de escravo."

O povo judeu foi escravizado no Egito por 210 anos. As condições em que viveram provaram-se ser tão severas que os egípcios conseguiram controlar não apenas seus corpos, como também suas mentes. O povo judeu sentiu-se tão dominado pelos amos egípcios que não conseguiam imaginar-se servindo a outro amo, ou seja, D’us. Assim, mesmo se o povo judeu tivesse conseguido libertar seus corpos em alguma ocasião nestes séculos, suas mentes ainda teriam permanecido escravizadas no Egito.

Por esta razão, D’us interveio e forneceu a solução definitiva, a redenção miraculosa, que permitiu aos judeus reconquistar o controle de suas mentes também. A partir daí, podiam tornar-se o povo de D’us. Agora podiam aceitar as leis de D’us.

A redenção do Egito, portanto, provou ser o pré-requisito para o evento mais importante na história judaica – o recebimento da Torá. Assim, a Hagada está na verdade declarando a verdade inegável: se D’us não tivesse nos tirado para fora do Egito, ainda seríamos escravos. Pois embora nossos corpos pudessem estar livres, mesmo assim permaneceríamos mental e espiritualmente escravizados ao faraó, sem nenhuma esperança.

Com esta profunda percepção, podemos prontamente entender outra declaração intrigante na Hagada. "Em toda geração, uma pessoa deve ver-se como se ela própria tivesse deixado o Egito." Graças a D’us, vivemos num país onde podemos praticar nossa religião em liberdade. Não somos perseguidos ou oprimidos. Somos homens livres. Como então poderemos simular a experiência de deixar o cativeiro?

Na realidade, podemos pensar que somos livres, mas esta liberdade representa apenas metade da equação. Embora possamos ter o controle total sobre nosso corpo, infelizmente nossa mente não está totalmente sob controle. A tensão provocada pela família, amigos e trabalho, bem como outras pressões no ambiente que nos rodeia, pode perturbar nosso bem-estar mental, impedindo-nos de servir adequadamente a D’us. Nossa mente fica atulhada pelas preocupações e problemas diários, não deixando espaço para pensar no cumprimento das mitsvot.

Pêssach é a hora de deixar todas nossas preocupações para trás. Representa a oportunidade de nos libertar do mundano, e chegarmos a platôs mais elevados, mental e espiritualmente. Dessa maneira, podemos sentir como se tivéssemos deixado o Egito, libertando nossa mente da escravidão e dando um novo sopro em nossa vida.