E este será um estatuto perpétuo para vós; no sétimo mês, no dia dez, afligireis vossas almas…

Vayicrá 16:29

No Mundo Vindouro, não há comida nem bebida…
Talmud, Berachot

O ser humano consiste de um corpo e uma alma – um invólucro físico de carne, sangue, nervos e osso, habitado e vitalizado por uma força espiritual descrita pelos mestres chassídicos como "literalmente uma parte do D’us acima".

A sabedoria comum afirma que o espírito é mais elevado que a matéria, e a alma mais sagrada (i.e., mais próxima do Divino) que o corpo. Esta concepção parece se originar no fato de que Yom Kipur, o mais sagrado dia do ano – no qual atingimos a altura da intimidade com D’us – é ordenado pela Torá como um dia de jejum, um dia no qual aparentemente abandonamos o corpo e suas necessidades para nos devotar exclusivamente a atividades espirituais de arrependimento e prece.

Na verdade, no entanto, um dia de jejum traz um relacionamento mais profundo, e não mais distante, com o corpo. Quando uma pessoa se alimenta, é nutrida pela comida e bebida que ingere. Num dia de jejum, a vitalidade vem do próprio corpo – da energia armazenada em suas células. Em outras palavras, nos dias menos sagrados, é uma força externa (a energia na comida e bebida ingeridas) que mantém o corpo e a alma juntos; em Yom Kipur, a união do corpo e da alma deriva do corpo em si.

Yom Kipur, assim, oferece um sabor do estado culminante da criação conhecido como o "Mundo Vindouro". O Talmud nos diz que no Mundo Vindouro, "não há comida nem bebida", uma declaração que às vezes é entendida como implicando que em seu estado supremo e mais perfeito, a criação é inteiramente espiritual, destituída de corpos e de tudo que é físico. O ensinamento cabalista e chassídico, no entanto, descreve o Mundo Vindouro como um mundo no qual a dimensão física da existência não é abolida, mas preservada e elevada. O fato de "não haver comida nem bebida" no Mundo Vindouro não é devido a uma ausência de corpos e vida física, mas ao fato de que neste mundo futuro, "a alma será nutrida pelo corpo" em si, e a simbiose de matéria e espírito que é o homem não exigirá quaisquer fontes externas de nutrição para sustentá-lo.

Dois Veículos

O físico e o espiritual são ambos criações de D’us. Ambos vieram a existir por Ele, a partir do nada, e cada qual leva a marca de seu Criador nas qualidades específicas que o definem.

O espiritual, com sua abstração e sua transcendência de tempo e espaço, reflete o sublime e a infinidade de D’us. O espiritual é também naturalmente submisso, reconhecendo prontamente sua subserviência a uma verdade mais elevada. São estas qualidades que tornam o espiritual "sagrado" e um veículo de relacionamento com D’us.

Por outro lado, o físico é concreto, egocêntrico e imanente – qualidades que o tornam "mundano" em vez de sagrado, que o marcam como um ofuscamento, em vez de uma manifestação, da verdade Divina. Pois o inequívoco "Eu sou" do físico desmente a verdade de que "não há ninguém mais além d’Ele" – que D’us é a única fonte e fim de toda a existência.

Em última análise, no entanto, tudo vem de D’us; cada aspecto de toda criação Sua tem sua fonte n’Ele e serve para revelar Sua verdade. Portanto, num nível mais profundo, as próprias qualidades que tornam o físico "profano" são as qualidades que o tornam a mais sagrada e Divina das criações de D’us. Pois o que é o "Eu sou" do físico, se não um eco do ser inequívoco de D’us? Qual é a tangibilidade do físico se não uma intimação do absoluto de Sua realidade? O que é o "egoísmo" do físico se não um desdobramento, embora remoto, da exclusividade de D’us expressa no axioma : "Não há ninguém mais além d’Ele"?

Atualmente, o mundo físico nos mostra apenas sua face superficial, na qual as características Divinas estampadas nele são corrompidas como uma ocultação em vez de uma revelação, da Divindade. Hoje, quando o objeto físico nos transmite "Eu sou", expressa não a realidade de D’us, mas uma existência independente, auto-suficiente, que desafia a verdade Divina. Porém no Mundo Vindouro, o produto do trabalho de uma centena de gerações para santificar o mundo material, a verdadeira face do físico, virá à luz.

No Mundo Vindouro, o físico será nada menos que um veículo de Divindade para o espiritual. De fato, em muitos aspectos, superará o espiritual como um transmissor da Divindade. Pois enquanto o espiritual expressa várias características Divinas – a infinidade, transcendência de D’us, etc. – o físico expressa o ser de D’us.

Hoje, o corpo deve olhar para a alma como seu guia moral, como sua fonte de conscientização e apreciação de todas as coisas Divinas. Porém no Mundo Vindouro "a alma será nutrida pelo corpo". O corpo físico será uma fonte de Divina percepção e identificação mais elevada que a própria visão espiritual da alma.

Yom Kipur é um sabor deste mundo futuro de biologia ao contrário. É portanto um dia no qual "somos sustentados pela fome", extraindo nosso sustento do próprio corpo. No mais sagrado dos dias, o corpo se torna uma fonte de vida e nutrição, em vez de seu receptáculo.