Discurso proferido por Elie Wiesel, ganhador do Nobel da Paz em 1986, no dia 12 de abril de 1999, na Casa Branca, Washington D.C. para o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, Richard Holbrooke, embaixador americano na ONU e inúmeras autoridades presentes.
Senhor presidente, senhora Clinton, membros do Congresso, embaixador Holbrooke, excelências, amigos:
Cinquenta e quatro anos atrás, neste dia, um jovem menino judeu de uma cidadezinha nos montes Cárpatos acordou – não na amada Weimar de Goethe, mas num lugar de eterna infâmia chamado Buchenwald. Finalmente estava livre, mas não havia alegria em seu coração. Ele pensava que nunca mais haveria.
Liberado um dia antes pelos soldados americanos, ele lembra a raiva deles pelo que tinham visto. E mesmo que viva o bastante para ser um homem muito idoso, sempre será grato a eles por essa raiva, e também por sua compaixão. Embora não compreendesse a língua deles, seus olhos lhe disseram o que precisava saber – que eles, também, se lembrariam, e seriam testemunhas.
E agora, estou diante do senhor, senhor Presidente – comandante em chefe do exército que me libertou, e a dezenas de milhares de outras pessoas – cheio de uma profunda e eterna gratidão ao povo americano. “Gratidão” é uma palavra da qual gosto muito. Gratidão é o que define a humanidade do ser humano. E sou grato à senhora, Hillary, ou senhora Clinton, pelo que disse e pelo que está fazendo pelas crianças no mundo, pelos sem-teto, pelas vítimas da injustiça, as vítimas do destino e da sociedade. E agradeço a todos vocês por estarem aqui.
Estamos no limiar de um novo século, de um novo milênio. Qual será o legado deste século que está terminando? Como ele será lembrado no novo milênio? Certamente será julgado, e severamente julgado, em termos tanto morais quando metafísicos. Suas falhas projetaram uma sombra escura sobre a humanidade: duas guerras mundiais, incontáveis guerras civis, uma cadeia de assassinatos sem sentido – Gandhi, os Kennedys, Martin Luther King, Sadat, Rabin –, banhos de sangue no Camboja e na Argélia, na Índia e no Paquistão, na Irlanda e em Ruanda, na Eritreia e na Etiópia, em Sarajevo e em Kosovo; a desumanidade no gulag e a tragédia em Hiroshima. E, num nível diferente, é claro, Auschwitz e Treblinka. Tanta violência, tanta indiferença.
O que é indiferença? Etimologicamente, a palavra significa “não diferença”. Um estado estranho e inatural no qual as linhas se embaçam entre luz e escuridão, crepúsculo e aurora, crime e castigo, crueldade e compaixão, bem e mal. Quais são seus percursos e inescapáveis consequências? É uma filosofia? Existe uma concebível filosofia da indiferença? É possível que alguém veja a indiferença como uma virtude? Será necessário às vezes praticá-la simplesmente para manter a sanidade, viver normalmente, saborear uma refeição fina e um cálice de vinho, enquanto o mundo em volta experimenta angustiantes convulsões?
Claro, a indiferença pode ser tentadora – mais do que isso, sedutora. É tão mais fácil afastar o olhar das vítimas. É tão mais fácil evitar essas bruscas interrupções de nosso trabalho, nossos sonhos, nossas esperanças. É, afinal, inconveniente, problemático, envolver-se na dor e no desespero de outra pessoa. Afinal, para a pessoa que é indiferente, seu vizinho ou sua vizinha não têm importância. E, portanto, suas vidas não têm significado. Sua angústia oculta, ou mesmo visível, não interessa. A indiferença reduz o Outro a uma abstração.
Lá, atrás dos portões negros de Auschwitz, os mais trágicos de todos os prisioneiros eram os Muselmanner, como eram chamados. Envoltos em seus cobertores amarrotados, eles ficavam sentados ou deitados no chão, olhando vagamente para o espaço, sem saber quem eram ou onde estavam – alheios a seu entorno. Já não sentiam dor, fome, sede. Não tinham medo de nada. Não sentiam nada. Estavam mortos e não sabiam.
Arraigados em nossa tradição, alguns de nós sentimos que ser abandonados pela humanidade, então, não era o mal definitivo. Sentimos que ser abandonados por D’us era pior do que ser punidos por Ele. Melhor um D’us injusto do que um D’us indiferente. Para nós, ser ignorados por D’us era punição mais dura do que ser vítimas de Sua ira. Homens podem viver longe de D’us – não fora de D’us. D’us está onde quer que estejamos. Mesmo no sofrimento? Mesmo no sofrimento.
De certa forma, ser indiferente a esse sofrimento é que faz o ser humano ser desumano. A indiferença, afinal, é mais perigosa do que a raiva e o ódio. A raiva pode às vezes ser criativa. Fazer alguém escrever um grande poema, compor uma grande sinfonia. Alguém faz algo especial em benefício da humanidade porque está com raiva de uma injustiça que testemunhou. Mas a indiferença nunca é criativa. O ódio pode às vezes até mesmo suscitar uma resposta. Você luta com ele, você o denuncia, você o desarma.
A indiferença não suscita resposta. A indiferença não é uma resposta. A indiferença não é um início; ela é um fim. E, portanto, a indiferença é sempre o amigo do inimigo, pois ela beneficia o agressor – nunca sua vítima, cuja dor é ampliada quando ele ou ela sente-se esquecido ou esquecida. O prisioneiro político em sua cela, as crianças famintas, os refugiados sem-teto – não responder a seu pleito, não aliviar sua solidão oferecendo uma centelha de esperança é exilá-los da memória humana. E ao negar sua humanidade, traímos a nossa.
A indiferença, pois, não é somente um pecado; é um castigo.
E esta é uma das mais importantes lições dos vastos experimentos deste século que está acabando, no que concerne ao bem e o mal.
No lugar de onde venho, a sociedade era composta de três categorias simples: os assassinos, as vítimas e os espectadores. Durante o mais tenebroso dos tempos, dentro dos guetos e campos da morte – e estou contente por ter a senhora Clinton mencionado que estamos comemorando agora aquele evento, aquele período, que estamos agora nos Dias da Lembrança –, mas depois nos sentíamos abandonados, esquecidos. Todos nós sentimos.
E nosso único e miserável consolo era que acreditávamos que Auschwitz e Treblinka eram segredos estritamente guardados; que os líderes do mundo livre não sabiam o que estava acontecendo atrás daqueles portões negros e do arame farpado; que não tinham conhecimento da guerra contra os judeus que os exércitos de Hitler e seus cúmplices travavam como parte da guerra contra os aliados. Se soubessem, pensávamos, certamente esses líderes teriam movido céus e terra para intervir. Teriam se expressado veementemente com ultraje e convicção. Teriam bombardeado as ferrovias que levavam a Birkenau, ao menos as ferrovias, ao menos uma vez.
E agora soubemos, aprendemos, descobrimos que o Pentágono sabia, que o Departamento de Estado sabia. E o ilustre ocupante da Casa Branca, então, que era um grande líder – e digo isso com alguma angústia e dor, porque hoje fazem exatamente 54 anos de sua morte – Franklin Delano Roosevelt morreu no dia 12 de abril de 1945. Assim, ele está muito presente, para mim e para nós. Sem dúvida, foi um grande líder. Ele mobilizou o povo americano e o mundo para se juntar à batalha, trazendo centenas e milhares de valentes e bravos soldados da América para lutar contra o fascismo, para combater a ditadura e combater Hitler. E tantos desses jovens caíram na batalha. E, não obstante, sua imagem na história judaica – devo dizer isso – sua imagem na história judaica está comprometida.
A deprimente história do navio St. Louis é um bom exemplo. Sessenta anos atrás, sua carga humana – cerca de 1.000 judeus – foi devolvida à Alemanha nazista. E isso foi depois da Kristallnacht, depois do primeiro programa patrocinado pelo Estado, com centenas de lojas de judeus destruídas, sinagogas queimadas, milhares de pessoas levadas para campos de concentração. E esse navio, que já estava no litoral dos Estados Unidos, foi enviado de volta. Não consigo entender. Roosevelt era um bom homem com um bom coração. Ele compreendia as pessoas que precisavam de ajuda.
Por que não permitiu que esses refugiados desembarcassem? Mil pessoas, na América, o grande país, a grande democracia, a mais generosa de todas as nações na história moderna. O que aconteceu? Não compreendo. Por que a indiferença, no mais alto nível, ao sofrimento das vítimas?
Mas depois, houve também seres humanos que foram sensíveis à nossa tragédia. Esses não judeus, esses cristãos, que nós chamamos de “Gentios Justos”, cujos atos altruístas de heroísmo salvaram a honra de sua fé . Por que foram tão poucos? Por que houve mais esforço para salvar assassinos da SS depois da guerra do que para salvar suas vítimas durante a guerra? Por que algumas das maiores corporações americanas continuaram a fazer negócios com a Alemanha de Hitler até 1942? Foi sugerido, e foi documentado, que a Wehrmacht não poderia ter conduzido sua invasão da França sem o petróleo obtido de fontes americanas. Como alguém pode explicar essa indiferença?
E contudo, meus amigos, coisas boas aconteceram também neste século traumático: a derrota no nazismo, o colapso do comunismo, o renascimento de Israel em seu solo ancestral, a extinção do apartheid, o tratado de paz entre Israel e Egito, o acordo de paz na Irlanda.
E depois, é claro, a decisão conjunta dos Estados Unidos e da OTAN de intervir em Kosovo e salvar aquelas vítimas, aqueles refugiados, aqueles que tinham sido destituídos e desarraigados por um homem por cujos crimes, acredito, deveria ser acusado por crimes contra a humanidade.
Mas desta vez, o mundo não ficou em silêncio. Desta vez nós respondemos. Desta vez, intervimos.
Será que isso significa que aprendemos com o passado? Significa que a sociedade mudou? O ser humano ficou menos indiferente e mais humano? Aprendemos realmente de nossas experiências? E somos menos insensíveis ao pleito de vítimas de limpeza étnica e outras formas de injustiça em lugares próximos e distantes? Será que a justificada intervenção em Kosovo, liderada pelo senhor, sr. Presidente, uma advertência duradoura de que nunca mais a deportação, o terror movido contra crianças e seus pais, será permitido em qualquer lugar do mundo? Será que isso vai desencorajar outros ditadores em outros países de fazer o mesmo?
E quanto às crianças? Oh, nós as vemos na televisão, lemos sobre elas nos jornais, e fazemos isso com o coração partido. Seu destino é sempre mais trágico, inevitável. Quando adultos travam guerras, crianças perecem. Vemos seus rostos, seus olhos. Ouvimos seus apelos? Sentimos sua dor, sua agonia? A cada minuto uma delas morre de doença, violência, fome.
Algumas delas – muitas delas – poderiam ser salvas.
E assim, mais uma vez, penso no jovem garoto judeu dos montes Cárpatos. Ele acompanhou o velho que me tornei ao longo desses anos de busca e de luta. E juntos vamos ao encontro do novo milênio, levados por um medo profundo e por uma extraordinária esperança.
Clique aqui para comentar este artigo