Você já foi a um casamento judaico? Se sim, deve ter notado que um dos rituais realizados sob a chupá é a leitura da ketubá, o contrato de casamento.

Muitos pensam que é uma nota romântica. À medida que o documento é desenrolado e as antigas palavras aramaicas vão sendo ouvidas, a multidão quase pode sentir os laços de amor entre o marido e mulher. O problema é que a Ketubá está longe de ser (apenas) um contrato de amor. Na verdade, é exatamente o oposto.

Claro que contém uma única linha em que o marido se compromete a “servir, honrar, alimentar e apoiar sua esposa… fielmente”. Mas se formos realmente ler o aramaico complicado, ele afirma, em termos claros, que se o marido sonhar em se divorciar de sua esposa, ele estará sujeito a dar a ela uma quantia monetária muito expressiva.

A história deste documento remonta aos tempos talmúdicos, quando os casamentos eram muito mais baseados na conveniência e muitos homens despediam facilmente as suas esposas com base em pretextos frágeis. Como proteção contra homens irreverentes, os rabinos implementaram medidas que os fariam pensar duas vezes antes de se separaraem de suas esposas. Assim nasceu a ketubá. 1

Em baixo da chupá não é um lugar inapropriado para lê-la? Por que evocarímos a hipótese de divórcio e grandes recompensas durante este momento de amor e devoção, quando o relacionamento está apenas sendo construído com bons sentimentos de ambas partes? Por que falar em destruição durante a construção? Existem razões haláchicas, 2 mas há uma lição mais profunda aqui.

O Projeto de Construção

A Parashá Terumá abre com o primeiro projeto de construção da nação incipiente: o Tabernáculo. “Faça para mim um lar”, 3 D'us solicita, e naquela que é provavelmente a primeira e última ocorrência desse tipo, a maioria das pessoas responde à campanha de arrecadação de fundos aderindo com todo entusiasmo. Ouro, prata, cobre e uma série de outras doações chegam rapidamente. Em pouco tempo, o projeto está bem encaminhado.

Os rabinos vêem um significado tremendo em cada elemento da construção do Mishkan: os materiais utilizados, a altura das paredes, a forma como os móveis foram dispostos – tudo foi concebido para refletir diferentes facetas da vida e do significado judaico.

Nesse sentido, o Midrash 4 traça uma conexão entre quatro materiais usados na construção do Tabernáculo e quatro épocas da história judaica. Usando referências da Torá, são feitas associações entre ouro, prata, cobre e peles de carneiro tingidas de vermelho e os quatro reinos da Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Estas são nações importantes na história judaica, pois são responsáveis pelos “ quatro exílios ” – os quatro períodos de domínio estrangeiro aos quais fomos submetidos. 5

Mas, aqui novamente não podemos deixar de perguntar: por que falar em destruição durante a construção? Por que o Midrash encontraria referências às nações que destruíram nosso Templo nos próprios versos que falam de sua construção?

Uma história convincente

O que torna uma narrativa convincente? Pergunte a qualquer roteirista que se preze e ele lhe dirá: conflito. Se não há conflito, não há crescimento do personagem, nem um marco narrativo – e é profundamente desinteressante. Há uma razão pela qual todos amamos uma boa história, porque é disso que se trata a vida: navegar e resolver conflitos e, mais importante, crescer a partir deles.

D’us também deseja isso

E sabe de uma coisa? Uma boa história de superação de conflitos é o que D'us deseja mais do que qualquer outra coisa. Existem todos os tipos de lugares maravilhosos que D'us poderia ter escolhido para chamar de lar. D'us é perfeito e Ele poderia ter escolhido permanecer sozinho com Seu eu perfeito. Ou, pelo menos, criar um mundo espiritualmente maravilhoso, cheio de anjos e outros seres celestiais que reconheçam a Sua glória e santifiquem o Seu nome.

Na verdade, D'us criou tais mundos, mas Ele não parou por aí, optando por criar este mundo físico bruto que chamamos de nosso universo – um lugar cheio de objetos materiais e criaturas interessantes que não têm a menor ideia de quem ou o que D'us é. E desafiando toda a lógica, foi este mundo que D'us escolheu para ser Seu lar. A Torá que incorpora Sua vontade mais profunda não foi dada aos anjos, nem Ele a guardou para Si mesmo. Para quem Ele deu? Para mim e para você – humanos humildes em um mundo muito bem concreto, material.

Você sabe porque? Porque é apenas neste mundo que existe conflito, escuridão e confusão – e o mais importante, humanos corajosos que fazem o seu melhor para superar tudo isso. 6

Desconstrução

E é por isso que os versículos que falam da construção do Templo aludem à sua destruição.

Veja, o Templo tratava da construção de um lar para D'us. Foi projetado para ser o epicentro espiritual num mundo físico, o lugar onde a presença de D'us seria mais manifestada no plano terrestre. E assim, o povo respondeu com entusiasmo, reunindo avidamente os seus recursos para construir uma estrutura magnífica que brilhasse com santidade.

Está tudo muito bem, mas lembre-se: um edifício brilhante sem adversários em seu encalço não contribui para uma história convincente. A verdadeira construção do Templo só se concretiza quando há destruição, quando se introduz o conflito. Quando o povo judeu é exilado e lançado em situações sombrias e desafiadoras e, mesmo assim, constrói um lar para D'us ali também. Então o propósito e objetivo final do projeto de construção é realizado.

Um Templo que exala Divindade é maravilhoso, e ansiamos por esses dias. Melhor ainda, porém, é um povo sem Templo, sem Divindade revelada, que ainda assim consegue conectar-se com D'us onde quer que vá.

Uma história de vida convincente: superando conflitos

Um casamento é um projeto de construção. É quando duas pessoas decidem construir uma vida e um relacionamento juntas.

Sob a chupá, são só sorrisos e rosas. Com os olhos arregalados de amor e paixão, o relacionamento é fácil e tão romântico; um edifício brilhante transbordando de positividade.

Mas dificilmente é convincente e ainda não é tão interessante.

A verdadeira prova do amor do jovem casal será descoberta quando o conflito chegar. E isso acontecerá. Ver como os dois apaixonados navegam, resolvem e crescem a partir desse conflito – isso cria um enredo convincente. É quando o seu verdadeiro amor será realizado e um relacionamento real nascerá.

E assim, embaixo da chupá, durante a construção, falamos da destruição, na ketubá. “Você vai enfrentar conflitos, disso tenho certeza”, insinua o ledor d aketubá com aquelas melodiosas palavras em aramaico. “Não fique desanimado ou com medo. Pelo contrário, abrace-o! - pois então você será capaz de realmente perceber a profundidade e a beleza do seu relacionamento florescer. 7

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