Em Ekev Moshê estabelece uma doutrina política de tal sabedoria que nunca pode se tornar redundante ou obsoleta. Ele o faz por meio de um contraste acentuado entre o ideal ao qual Israel é chamado e o perigo que enfrenta. Este é o ideal:
E guardarás os preceitos do Eterno, teu D’us, andando em Seus caminhos e temendo-O. Por que o Eterno, teu D’us,te traz a uma boa terra, uma terra com riachos e fontes que fluem nos vales e nas colinas; terra de trigo e de cevada, e de vide e de figueirae de romeira, terra de oliveira que dá azeite e de tamareiral; terra em que sem escassez comerás pão e nada te faltará; terra cujas rochas são ferro e de seus montes poderás extrair cobre. E comerás e te fartarás e louvarás ao Eterno, teu D’us, pela boa terra que te deu. (Devarim 8:6-10)
E esse é o perigo:
Cuidada-te para não te esquecer do Eterno, teu D’us, deixando de observar os Seus mandamentos e s Suas leis e os seus decretos que Eu te ordeno hoje. Para não suceder que depois de teres comido e estares farto, depois de teres edificado boas casas e habitado nelas, e teu gado e teu rebanho se terem multiplicado, e tua prata e o teu ouro se terem aumentado e tudo que possuires se ter multiplicado, por isso tudo se orgulhe o seu coração e te esqueças do Eterno, teu D’us, quem te fez sair da terra do Egito, da casa dos servos, quem te conduziu pelo grande e temível deserto em que há cobras, serpentes abrazadoras e escorpiões, lugar earido onde não há água; quem fez sair para ti água da rocha forte; quem no deserto te fez coer maná, que teus pais não conheceram, par ate afligir e par ate provar, para te fazer bem afinal… Quiçá dirás no teu coração: “a minha força e a fortaleza das minhas mãos conseguiram estes bens. Mas antes te lembrarás do Eterno, teu D’us, pois é Ele quem lhe dá força para conseguires riqueza, a fim de confirmar Sua aliança, que jurou a teus pais, como o faz hoje. (Devarim 8:11-18)
As duas passagens seguem diretamente de uma para outra. Elas estão ligados pela frase “quando você comeu e está satisfeito”, e o contraste entre elas é uma fuga entre os verbos “lembrar” e “esquecer”.
Coisas boas, diz Moshê, acontecerão com você. Tudo, no entanto, vai depender de como você responde. Ou você comerá e ficará satisfeito e abençoará a D’us, lembrando que todas as coisas vêm dEle – ou você comerá e ficará satisfeito e esquecerá a quem você deve tudo isso. Você pensará que vem inteiramente de seus próprios esforços: “Meu poder e a força de minhas mãos produziram esta riqueza para mim”. Embora isso possa parecer uma pequena diferença, fará, diz Moshê, toda a diferença. Isso por si só transformará seu futuro como nação em sua própria terra.
O argumento de Moshê é brilhante e contra-intuitivo. Você pode pensar, diz ele, que os tempos difíceis ficaram para trás. Você vagou por quarenta anos sem um lar. Houve momentos em que você não tinha água, nem comida. Você foi exposto aos elementos. Você foi atacado por seus inimigos. Você pode pensar que este foi o teste de sua força. Não foi. O verdadeiro desafio não é a pobreza, mas a riqueza, não escravidão, mas liberdade, não a falta de moradia, mas o lar.
Muitas nações foram elevadas a grandes alturas quando enfrentaram dificuldades e perigos. Elas lutaram batalhas e venceram. Passaram por crises – secas, pragas, recessões, derrotas – e foram fortalecidas por elas. Quando os tempos são difíceis, as pessoas crescem. Eles enterram suas diferenças. Há um senso de comunidade e solidariedade, de vizinhos e estranhos se unindo. Muitas pessoas que viveram uma guerra sabem disso.
O verdadeiro teste de uma nação não é se ela pode sobreviver a uma crise, mas se ela pode sobreviver à falta de uma crise. Ela pode permanecer forte em tempos de facilidade e abundância, poder e prestígio? Esse é o desafio que derrotou todas as civilizações conhecidas na história. Não deixe, diz Moshê, derrotá-lo.
A previsão de Moshê foi pouco menos do que impressionante. As páginas da história estão repletas de relíquias de nações que pareciam inexpugnáveis em seus dias, mas que eventualmente declinaram e caíram no esquecimento – e sempre pela razão que Moshê previu profeticamente. Eles esqueceram.1 As memórias desapareceram. As pessoas perdem de vista os valores pelos quais uma vez lutaram – justiça, igualdade, independência, liberdade. A nação, com suas primeiras batalhas encerradas, torna-se forte. Alguns de seus membros enriquecem. Tornam-se negligentes, auto-indulgentes, supersofisticados, decadentes. Eles perdem o senso de solidariedade social. Já não sentem que é seu dever cuidar dos pobres, dos fracos, dos marginalizados, dos perdedores. Eles começam a sentir que a riqueza e a posição que têm é deles por direito. Os laços de fraternidade e responsabilidade coletiva começam a se desgastar. Os menos abastados sentem uma aguda sensação de injustiça. O cenário está montado para revolução ou conquista. As sociedades sucumbem às pressões externas quando há muito estão enfraquecidas pela decadência interna. Esse foi o perigo que Moshê previu e sobre o qual ele alertou.
Sua análise provou ser verdadeira várias vezes, e foi reafirmada por vários grandes analistas da condição humana. No século 14, o estudioso islâmico Ibn Khaldun (1332-1406) argumentou que quando uma civilização se torna grande, suas elites se acostumam ao luxo e ao conforto, e o povo como um todo perde o que ele chamou de asabiyyah, sua solidariedade social. O povo torna-se então presa de um inimigo conquistador, menos civilizado do que eles, mas mais coeso e motivado.
O filósofo político italiano Giambattista Vico (1668-1744) descreveu um ciclo semelhante: As pessoas, disse ele, “primeiro sentem o que é necessário, depois consideram o que é útil, depois cuidam do conforto, depois deleitam-se com os prazeres, logo se tornam dissolutas no luxo, e finalmente enlouquecem desperdiçando suas propriedades.”2 A afluência gera decadência.
No século 20, poucos disseram isso melhor do que Bertrand Russell em sua “História da Filosofia Ocidental”. Ele acreditava que os dois grandes picos da civilização foram alcançados na Grécia antiga e na Itália renascentista, mas ele foi honesto o suficiente para ver que as mesmas características que os tornaram grandes continham as sementes de sua própria morte:
O que havia acontecido na grande era da Grécia aconteceu novamente na Itália renascentista: as restrições morais tradicionais desapareceram, porque eram vistas como associadas à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criativos, produzindo uma rara fluorescência de gênio; mas a anarquia e a traição que inevitavelmente resultaram da decadência da moral tornaram os italianos coletivamente impotentes, e eles caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas de coesão social.3
Moshê, no entanto, fez mais do que profetizar e advertir. Ele também ensinou como o perigo poderia ser evitado, e aqui também sua visão é tão relevante agora quanto era então. Ele falou do significado vital da memória para a saúde moral de uma sociedade.
Ao longo da história, houve muitas tentativas de fundamentar a ética em atributos universais da humanidade. Alguns, como Immanuel Kant, baseou-a na razão. Outros a basearam no dever. Bentham enraizou-a nas consequências (“a maior felicidade para o maior número”4). David Hume atribuiu-a a certas emoções básicas: simpatia, empatia, compaixão. Adam Smith a baseou na capacidade de se afastar das situações e julgá-las com distanciamento (“o espectador imparcial”). Cada uma delas tem suas virtudes, mas nenhuma provou ser à prova de falhas.
O judaísmo teve, e tem, uma visão diferente. O guardião da consciência é a memória. Repetidamente o verbo zachor, “lembrar”, ressoa através dos discursos de Moshê em Devarim:
- Lembre-se de que você foi escravo no Egito... por isso o Senhor teu D’us ordenou que você guarde o dia de Shabat. (Devarim 5:15)
- Lembre-se de como o Senhor teu D’us o guiou por todo o caminho no deserto nesses quarenta anos…Devarim 8:2)
- Lembre-se disso e nunca se esqueça de como você provocou a ira do Senhor teu D’us no deserto…( Devarim 9:7)
- Lembre-se do que fez o Eterno, teu D’us, a Miriam no caminho quando saíste do Egito. (Devarim 24:9)
- Recorda-te do que te fez Amalec no caminho quando saístes do Egito. (Devarim 25:17)
- Lembre-se dos dias de outrora, atentai para os anos das gerações sucessivas... ( Devarim 32:7)
Como Yosef Hayim Yerushalmi observa em seu grande tratado, Zachor: História Judaica e Memória Judaica, “Somente em Israel e em nenhum outro lugar a injunção de lembrar é sentida como um imperativo religioso para um povo inteiro.”5 As civilizações começam a morrer quando se esquecem. Israel foi ordenado a nunca esquecer.
Em uma passagem eloquente, o estudioso americano Jacob Neusner escreveu certa vez: A civilização está suspensa, de geração em geração, pelo fio diáfano da memória. Se apenas um grupo de mães e pais deixar de transmitir a seus filhos o que aprendeu com seus pais, então a grande cadeia de aprendizado e sabedoria se rompe. Se os guardiões do conhecimento humano tropeçam apenas uma vez, em sua queda desmorona todo o edifício do conhecimento e da compreensão.6
A política das sociedades livres depende da transmissão da memória. Essa foi a visão de Moshê, e fala conosco com poder inabalável hoje.
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