Ao nos aproximarmos de Pêssach e nos preparamos para celebrar o Êxodo judaico do Egito, somos lembrados novamente não apenas da vitória mas também da angústia. Não bebemos apenas vinho e comemos matsá – símbolos da liberdade – mas também provamos o maror (ervas amargas) para relembrar o amargo sofrimento, Além disso, também recordamos as pragas e a destruição que assolou os egípcios.
Tudo isso traz à mente uma das questões eternas – e mitos fundamentais – sobre a Torá: o ciclo aparentemente interminável de ira, violência, raiva, inveja e vingança – todos por parte do Divino. Que espécie de D'us é tão punitivo? E quem desejaria abraçar um D'us furioso e violento?!…
Portanto trazemos aqui para você uma pergunta recente de um leitor sobre o grotesco da história de Pêssach e a resposta de Rabino Jacobson.
Caro Rabino,
Com a aproximação de Pêssach, em breve você estará novamente lendo a Hagadá, que narra a história de um D'us amoroso que colocou seu povo escolhido na escravidão… Ele então permitiu que o faraó matasse todos os bebês judeus e salvasse Moshê para que ele pudesse libertar os escravos judeus. D'us então atingiu o povo egípcio (que também fora criado por Ele) com dez pragas. Finalmente, Ele enviou Seu anjo da morte para assassinar todos os primogênitos, porque Ele queria que o faraó libertasse os escravos judeus que Ele permitira sofrer por um longo tempo.
Você poderia responder que é livre arbítrio do homem fazer atos de maldade… Mas… Os anjos somente agem seguindo instruções de D'us… Por que você desejaria rezar e prestar homenagem a um matador invisível de bebês?
Aguardo ansiosamente uma resposta direta, sem subterfúgios para pôr panos quentes… Tudo de bom.
[assinado]
Resposta:
Querido Insensível,
Aceito a sua pergunta pela ingenuidade. As melhores questões de todas são as irreverentes que desrespeitam o protocolo e não se enquadram na mentalidade coletiva convencional. Sua pergunta capta o conflito que pessoas enfrentam na atualidade, quando confrontam a história do Êxodo ou outros eventos bíblicos.
No espírito de “pergunta e resposta” – que é o tema central da Hagadá – aplaudo sua iniciativa em perguntar de maneira direta. Tentarei fazer o mesmo com igual sinceridade. Quem ler a Torá literal com um olhar honesto não poderá deixar de ser levado pelo dilúvio de violência e guerra em nome de um D'us vingativo. Algumas das maldições declaradas nela são sangrentas demais para repetir.
Não admira que um dos mais fortes estereótipos do nosso tempo seja alguém brandindo fogo, o evangelista da Bíblia socando o ar com o punho cerrado e a voz trêmula, invocando o nome do Eterno que atingirá os pecadores do mundo com pestilência e doenças. Quem com mente sã e espírito sadio desejaria associar-se com esta abordagem de fogo e pedra?
Acrescente à equação milênios de abuso religioso autoritário, e teremos todos os ingredientes para a profunda alienação e rejeição tola de todas as coisas religiosas hoje. Quem afinal deseja um relacionamento com um D'us tão punitivo, vingativo e sangrento? Na verdade, por este exato motivo muitas pessoas encontram muito mais consolo no amor e gentileza dos textos religiosos que não sejam da Bíblia. Parece mais apropriado que um livro espiritual deveria fazer você se sentir aquecido e fortalecido, em vez de expô-lo a uma avalanche de guerras, traições e retribuições.
Ainda mais intrigante é o fato de que essa mesma Torá seja o alicerce da civilização. Os princípios morais dos Dez Mandamentos continuam sendo a maior declaração de virtude e ética. Em meio a toda a violência da história, os valores bíblicos se destacam até hoje como um exemplo reluzente dos mais nobres padrões que o homem pode jamais atingir. Como um livro tão violento produziu tanta beleza e na verdade fez nascer a benevolência, esperança, providência e todos os maiores ideais de que somos capazes?!
Na verdade, ao contrário de outras religiões, o Judaísmo jamais buscou uma cruzada religiosa para impor aos outros suas crenças – por meio de guerras, inquisições, jihads e outros métodos violentos. Bastante irônico para um sistema de crença baseado na agressiva Bíblia! Há sistemas de crença que são lindos no papel mas na realidade causaram estragos à raça humana; a Bíblia parece soar beligerante no papel, mas quando aplicada, produz o estilo de vida mais refinado.
Revelar o mistério – e paradoxo – da Bíblia – exige um retorno às suas raízes. Qualquer tradução da Bíblia dificilmente reflete e faz justiça ao original hebraico e seus significados ricos e metafóricos. (Por esse motivo a tradução da Bíblia foi vista como um momento triste). Primeiramente o hebraico, em sua forma literal, é uma linguagem simbólica ao contrário da maioria das outras linguagens, que são literais, descritivas. Palavras como “fúria” e “vingança” têm significados e implicações completamente diferentes em hebraico e nas suas traduções.
Ainda mais importante é o fato de que a Torá “fala na linguagem do homem” (Talmud, Berachot 31b). Devemos eliminar quaisquer noções antropomórficas que possam ser deduzidas das expressões, conceitos e analogias bíblicas. Devem ser entendidas em termos não-espaciais e não-corpóreos. A Torá fala em linguagem humana para que possamos ter alguma concepção dessas ideias. Porém esses termos precisam ser despidos de quaisquer conotações temporais, espaciais e corpóreas, pois são todos não-atribuíveis ao Divino.
A Torá não pode ser avaliada somente através de uma leitura literal. Até sua dimensão literal é infundida com camadas de significados – especificamente quatro camadas (literal, alegórica, homilética e mística) – embebidas uma dentro da outra.
Nossos sábios na verdade descrevem a Torá como um documento espiritual. Ela “fala sobre as coisas acima [espirituais] e alude a coisas abaixo [físicas].” Às vezes a Torá é comparada a um projeto arquitetônico, que o Arquiteto Cósmico usou para construir este universo. Portanto, em vez de impor nossos significados mortais, estreitos e superficiais nas palavras “ira” e “maldição”, a Torá nos desafia a nos abrirmos aos significados Divinos desses termos e experiências. Na verdade, esses mesmos conceitos se originam de suas raízes espirituais.
Fúria em sua raiz é essencialmente desconexão. Quando você está furioso com alguém (por um bom motivo) está sentindo “distância”, afastando-se do objeto de sua ira.
Duas distinções importantes devem ser feitas para diferenciar nossa experiência das emoções “agressivas” de suas contrapartidas Divinas (espirituais). A primeira é que nossa emoções são um emaranhado de forças saudáveis e doentias, muitas vezes impulsionadas pelos nossos próprios temores humanos, inseguranças e mesquinharias. (Em nosso mundo “não há bem sem o mal e nem mal sem o bem”). Até quando uma emoção agressiva é basicamente saudável, seus efeitos secundários podem com frequência aumentar até formas inadequadas de violência. Na dimensão Divina, por outro lado, todas as reações são formas saudáveis de expressão o tempo todo.
Em segundo lugar, no mundo do Divino toda “reação” é na verdade um reflexo de “causa e efeito”. De fato, nossos Sábios explicam que recompensa e castigo são na verdade causa e efeito. Você consideraria uma mão carbonizada sendo castigada pelo fogo? Quando alguém coloca a mão no fogo, o efeito natural é uma queimadura. Todas as reações aparentemente “sangrentas” na Torá são na essência o efeito coletivo “natural” de um mundo distorcido; um desalinhamento entre a existência e seu verdadeiro propósito.
A declaração da Torá “D'us estava furioso” significa que quando os seres humanos através do comportamento se distanciam de sua Divina imagem e chamado, eles têm o poder de causar o efeito de D'us de Se distanciar de nós.
Devemos resistir continuamente à tentação de projetar nossas reações humanas quando somos magodos por outros sobre D'us. D'us não é humano, D'us não é como um pai furioso autoritário que se enfurece pelo nosso comportamento. D'us é a essência da realidade, e a realidade reage a cada um de seus componenes. Assim como o corpo tem uma reação violenta quando um de seus órgãos (ou até uma única célula) está comprometido – não como retribuição, mas como causa e efeito – assim também no macrocosmo, com o macro-organismo chamado existência: reage ao nosso comportamento comprometedor.
Ódio ao mal não deve ser confundido com o ódio que sentimos. O desprezo Divino ao mal é como as células brancas do sangue reconhecendo uma infecção como o inimigo, e atacando incessantemente para proteger a saúde do corpo.
O exílio egípcio – que foi previsto por Avraham 400 anos antes – foi parte do misterioso ciclo de vida e morte, alegria e sofrimento, que reflete a realidade da descida da alma a este mundo difícil.
Na verdade, a narrativa inteira da Torá reflete as realidades da vida na terra, em toda a sua glória e sua feiúra, sem palavras enfeitadas e sem “embalagem” e “marketing” humanos. É a verdadeira história da vida – exposta. Em nossa lida diária não vemos as verdadeiras causas e efeitos de nosso comportamento. Podemos magoar uns aos outros e jamais sentir a destruição que trazemos à nossa vida e ao mundo. A Torá – como um presente para nós – nos revela os mecanismos internos da vida, e todos os efeitos do comportamento humano.
Quando as pessoas magoam umas às outras, estão machucando a si mesmas. Pois somos todos partes de um mesmo organismo, de uma realidade – uma realidade protegida e vigiada por D'us, a essência de toda Realidade.
Talvez jamais venhamos a entender por que crianças inocentes foram massacradas no Egito e no decorrer da história. Temos o direito, não a obrigação, de desafiar D'us por toda experiência sofrida que passamos. Mas ao mesmo tempo, devemos lembrar que se não houvesse vida não haveria morte. Se não houvesse júbilo não haveria sofrimento. Ficamos profundamente perturbados (em nossa mente) por qualquer morte sem sentido; e isso é correto. Porém nossa perturbação deveria servir como um lembrete de que nossa vida consciente – e o universo como um todo – se sente desconectada da nossa fonte e temos o poder de reparar o vazio.
As consequências dessa desconexão não são o problema, mas parte da solução. Quando sentimos dor reclamamos sobre o desconforto, mas a dor é um lembrete e um reflexo de que algo precisa de reparo. Mesmo que preferíssemos não sofrer as consequências, uma vida honesta sentiria os efeitos para que pudessem servir para trazer a cura.
De maneira alguma isso sugere que toda experiência de sofrimento intelectual é um resultado direto dos pecados da pessoa. Numa rede infinitamente complexa, estamos todos ligados uns aos outros e a toda a história – como membros de um organismo. Dor e sofrimento, tanto pessoais quanto coletivos, são parte dos efeitos coletivos gerais de um mundo desconectado. Uma desconexão que começou há milhares de anos quando Adam e Eva comeram da Árvore do Conhecimento, e foram banidos (um efeito causado pelo afastamento espiritual deles).
Desde então, todo ser humano e cada um de nós tem duas escolhas: ou perpetuar aquela desconexão, ou realinhar nossas vidas com nosso Divino chamado.
Por mais doloroso que tenha sido o exílio egípcio, ele forjou uma nação eterna, imbuída para sempre com a compulsão natural para a liberdade. Pode-se dizer que o exílio e a redenção do Egito deram origem à liberdade – uma liberdade que começaria uma marcha contínua que levou às liberdades e direitos que hoje aceitamos como certos. (Essa é uma razão muito boa para celebrar o Seder de Pêssach!)
A retribuição Divina aos egípcios também é uma história de causa e efeito. Aqui não é o local para elaborar, mas as Dez Pragas são na verdade um fascinante projeto dos dez efeitos psicológicos de crimes contra a humanidade. Os egípcios foram os primeiros a escravizar uma nação inteira baseados puramente em sua raça. Este não foi um pecado pequeno. Teve profundas consequências que ecoaram na história, A descrição detalhada na Torá sobre o confronto de Moshê com o faraó, as dez pragas e todos os outros elementos da história nos oferecem um olhar íntimo na anatomia do mal, no sofrimento humano, suas consequências, e acima de tudo – nossa capacidade de nos curar e redimir do abismo mais profundo.
O poder da história do Êxodo está precisamente em sua manifestação em nosso plano humano, feio. As formas mais profundas de espiritualidade devem ser encontradas não apenas quando escapamos das armadilhas deste mundo cruel, mas dentro de seu sofrimento. Na verdade, a história do Êxodo começa com D'us aparecendo a Moshê numa sarça ardente. Por que não aparecer numa linda árvore frutífera? Porque D'us queria demonstrar a Moshê que Eu estou com você não apenas na alegria mas também no sofrimento; não somente na beleza, mas também no espinho.
Portanto, quando nos sentarmos ao Seder neste ano choramos pelo sofrimento e perdas como reflexos da dissonância do mundo; mas acima de tudo celebramos nossa capacidade, então e agora, de sermos emancipados de nossas restrições. Até em nossa distância e exílio espiritual temos o poder de nos realinhar com nosso propósito em uma gloriosa expressão de unidade.
Obrigado por escrever. Que a força das suas perguntas sempre sirva como catalisador para atingir mais profundamente os mistérios intimos da existência e para descobrir respostas profundas. E lembre-se sempre das palavras do Baal Shem Tov: para cada pergunta há uma resposta. E para cada resposta há outra pergunta.
Que você seja abençoado com um Pêssach significativo e transcendente.
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