Terminamos de contar a história do Êxodo, vamos começar a cantar Dayenu, e iniciar a refeição – e aqui estão Rabi Eliezer e Rabi Akiva discutindo sobre estatísticas. Para ser preciso, sobre a contagem da praga no Egito:

Rabi Eliezer: 10 x 4 = 40
Rabi Akiva: 10 x 5 = 50

Conte as pragas à medida que ocorrem na história, e há dez delas. Mas afinal sobre o quê estes rabinos estão discutindo? A verdadeira questão é: que diferença isso faz?

A diferença é grande. Bem grande. Porque a discussão é profunda. A discussão é sobre o quanto o estado humano pode afetar nosso meio ambiente.

Não, não estou falando de atirar produtos químicos venenosos nos oceanos e encher a atmosfera com gás carbônico. Estou falando sobre agir injustamente, obedecendo aos nossos hormônios em vez de aos nossos cérebros, ao dinheiro e não à nossa alma, e em geral abandonar nosso propósito e papel como seres humanos. Isso, também, polui o ar que respiramos e o alimento que nos nutre – com maior toxicidade que qualquer outro veneno.

As paredes de uma casa onde existe raiva reverberam com palavras furiosas. Dinheiro ganho por meios ilícitos é manchado e prejudicial àquele que o tem. O ar de um escritório onde fofoca e maledicência se espalham se torna pútrido e sufocante.

O mundo é sua câmara de ressonância

Mas como isso funciona? Como seres humanos podem afetar a natureza dos objetos que nos rodeiam? O que meu mundo caloroso, pessoal, interior, tem a ver com o frio mundo exterior que me cerca?

Tudo. Porque o mundo inteiro fora de você foi projetado como palco para o mundo dentro de você. E o mundo dentro de você foi projetado para transformar o mundo fora de você. Os dois nasceram num só pensamento do Criador. E assim, os dois estão intimamente ligados.

O ser humano, escreveu Rabi Yehudah Moscato, um cabalista do Renascimento Italiano, é o solista de um grande concerto. Toca sua parte, e então a orquestra a toca de volta para ele – mais alta, maior, mais rica. Se ele errar e tocar com dissonância, aquela feia acrimônia volta ruidosamente para ele, amplificada por ordens de magnitude. Se ele tocar como um verdadeiro músico, trazendo à vida a beleza de cada nota, ele consegue que o cosmos inteiro toque em magnífica harmonia.

Os antigos egípcios que nos escravizaram tocavam mal e feio. Embora estivéssemos dominados pelos seus chicotes, muito mais estávamos aprisionados pelo ambiente pútrido que eles criaram. Não podíamos sair dali sem que aquele ambiente fosse limpo. É por isso que tinham de ser dez pragas. Dez ciclos de lavar e enxaguar, para limpar aquilo que a Torá chama de tumá – impureza – a atmosfera escura e terrível do Egito.

A água se transformou em sangue. A terra em piolhos. O céu se transformou em bolas de fogo e gelo. Como uma profunda lavagem purificadora, as pragas trouxeram os venenos malignos das entranhas do ambiente que eles tinham poluído, para a superfície, onde serviram a um objetivo – e então desapareceram.

Lave bem para libertação

Quão profunda aquela lavagem teve de ser?

Rabi Eliezer sabia que tinha de ser muito mais profunda que na superfície. Mais profunda que a água quando é água. Tinha de descer até a natureza fundamental da água. A natureza de cada coisa surge a partir de seu equilíbrio particular das quatro naturezas fundamentais. Os antigos chamavam de fogo, vento, água e terra. Poderíamos chamar de positivo, negativo, matéria e antimatéria. Palavras diferentes, mesma ideia.

Os egípcios, por exemplo, veneravam o Nilo. A água do Nilo tinha se tornado poluída pelos pensamentos, palavras e atos humanos. Não apenas a água, mas os elementos da natureza que davam origem à água. Uma praga teve de transformar aquilo, descer até a natureza fundamental daquela água e purgar a contaminação de sua fonte.

Rabi Akiva foi ainda mais fundo. No âmago de cada coisa existente há uma centelha de seu Criador, A quintessência, chamada – a “quinta essência” não tem substância ou forma, nem natureza, massa ou tamanho, nenhuma dimensão, portanto tudo que se pode dizer sobre ela é que não existe. A quintessência é onde o Criador sopra vida na criação.

Isso explica bastante. Explica por que, logo após nos dizer quantas centenas de pragas tinham se abatido sobre os egípcios (250, para ser exato), Rabi Akiva exclama: “Se é assim, então quantos níveis e mais níveis de favores Ele faz por nós!” e irrompeu numa canção, entoando: “Dai-dayenu, dai-dayenu!”

Se Ele queria nos fazer um favor, D'us poderia simplesmente ter nos tirado de lá e nos colocado na Terra Prometida. O que há de tão bonito e maravilhoso sobre pragas, que cantamos e agradecemos ao Criador por permitir que elas destruíssem Suas criações?

Mas agora entendemos: as pragas nos libertaram. Não apenas limparam o palco para que pudéssemos sair. Elas transformaram o mundo num lugar no qual a liberdade era possível, e a Torá agora podia entrar.

Hoje não precisamos de pragas para fazer isto. Hoje precisamos apenas de palavras faladas de Torá, e mitsvot lindas e brilhanes. Onde quer que vamos, quando pronunciamos palavras de Torá, as ondas de som que criamos limpam a atmosfera; e quando cumprimos mitsvot, transformamos a própria natureza das coisas ao nosso redor. Até, que em breve, tenhamos purificado e limpado o mundo inteiro.

Para tamanho poder de transformação, para tamanha ferramenta de libertação, precisamos cantar e dar graças toda noite e todo dia.