Versículo 6:6-7
"E que estas palavras, que Eu te ordeno hoje, estejam em teu coração; ensina-as aos teus filhos, e diga-as quando te sentares em casa, quando viajares…"

"Não fique perto do sangue de teu próximo."
- Levítico

"A prioridade do homem sobre o animal é nada, pois tudo é vaidade… não fosse a pura alma."
Extraído das Preces Matinais


Quando contava onze anos, Rabi Yossef Yitschac de Lubavitch começou a escrever um diário, no qual escrevia fielmente durante toda sua vida, freqüentemente por várias horas ao dia. Registrou suas experiências pessoais, bem como a riqueza da sabedoria e doutrina chassídicas, que absorvera enquanto crescia na casa de seu pai, o Rebe, cercado pelos grandes chassidim da época.

O seguinte excerto foi escrito quando Rabi Yossef Yitschac tinha doze anos de idade, e relata um fato que acontecera um ano antes:

Seguindo as instruções e a direção de meu pai, despendi toda minha fortuna – que na época somava trinta rublos, recebidos como recompensa por saber as mishnayot de cor – para criar um fundo de empréstimos. Fornecia empréstimos de somas pequenas a pessoas carentes sem obtenção de lucros.

A conselho de meu professor, Rabi Nissan, eu mantinha uma contabilidade. Os dias antes e depois do dia de mercado eram meus dias de negócios, nos quais entregava e recebia meus empréstimos.

Entre os "fregueses" que usavam meu fundo regularmente, havia Reb Dovid o açougueiro, apelidado "aquele dos dentes". Reb Dovid é um homem de cinqüenta anos, chefe de uma família de oito almas, uma pobreza assustadora que ganhava a vida com muita labuta. Nenhum trabalho neste mundo era difícil para ele – no escaldante calor do verão, numa tempestade de neve no inverno, ou na estação chuvosa – desde que ganhasse alguns copeques por seu esforço. Nunca reclamava da pobreza ou de sua vida miserável. Era um homem simples, Reb Dovid; se estudara no chêder, escola onde é lecionada a alfabetização hebraica para meninos, durante a infância, já tinha esquecido as lições. Além de suas preces (incluindo aquelas dos dias festivos e os Grandes Dias Sagrados), os Salmos, a Hagadá de Pêssach, e Ética dos Pais, não sabia muito mais. Porém era um homem íntegro e honesto, e todos os dias – exceto aqueles em que trabalha na aldeia próxima – está entre os dez primeiros homens a formar o grupo para as preces.

Gosto de flagrar estes momentos numa tarde antes de Shabat ou de um festival, quando Reb Dovid volta ao lar, vindo do micvê, a face brilhante e a aba da camisa esvoaçante, os filhos rodeando-o e correndo atrás dele. Outra hora encontro-o cantando uma melodia, enquanto caminha com os filhos até a imensa sinagoga onde vai rezar.

Meus pais ausentaram-se por algum tempo. Fiquei na casa de minha avó, a Rebetsin Rivca. Meus estudos do chêder eram feitos na casa de Reb Yeshayahu Kamtier, na Rua Shileve. Naquela época, a força policial de Lubavitch consistia de um pristov, um uradnik e três diesatniks, com mais cinco diesatniks de reforço para ajudar a manter a paz em dias de mercado.

Eis aqui o que aconteceu:

Eram duas da tarde de agosto ou setembro de 1891, dia de mercado. Eu caminhava para casa vindo do chêder para almoçar com meu amigo Shimon, o filho de Reb Shmuel, o escritor. A praça do mercado estava apinhada; assim também a Rua Shileve, na qual eu passava, estava repleta de carroças, carros e camponeses.

Encontramos Reb Dovid, o açougueiro, carregando um bezerro nos ombros, um cordeirinho nos braços, e um cesto de galinhas balançando à sua frente. Ao perceber-me, sua face – escura como a de um negro – alumiou-se, e com os dentes brancos destacando-se, disse: "Confio em D’us que ganharei bastante".

Antes que terminasse de falar, o uradnik da polícia irrompeu a seu lado e bateu-lhe no rosto. O sangue escorreu de seu nariz. Ao presenciar isso, gritei ao uradnik: "Bêbado! Desprezível!" e empurrei-o com força. O uradnik caiu sobre mim, acusando-me de ter arrancado o distintivo de latão que levava no peito, instruindo um dos diesatniks a levar-me até a delegacia. Antes que tivesse a chance de proferir um som, um camponês meio bêbado agarrou-me pelo pescoço e pela roupa com mão rude e poderosa.

A comoção no mercado estava no apogeu, e com grande dificuldade prosseguimos, amontoados, através da multidão de pessoas, carroças, cavalos e outros animais. Devido aos sons ensurdecedores do mercado, ninguém prestava atenção a mim e à minha escolta. Passamos pela praça do mercado, passamos pela Rua Chachlukeh, chegando ao pátio da estação. O guarda abriu o portão e minha escolta entregou-me ao oficial de plantão, notificando-o que eu fora detido pelos crimes já mencionados.

O oficial recebeu-me com uma cara de ódio, olhou-me penetrantemente, premiou-me com um tapa no rosto, agarrou-me pelo lóbulo da orelha, e levou-me a uma das celas. Abriu as portas de um quarto escuro, empurrou-me para dentro, e trancou a porta. Além do medo terrível que se abatera sobre mim, sentia-me também faminto. Porém após um momento, um pensamento cruzou-me a mente: por que eu, também – da mesma forma que meus avós – estou sentado na prisão? Devo ocupar-me com palavras de Torá!

Como já estava fluente em dois volumes de Mishnayot, Zera’im e Moed, comecei a revisá-los de cabeça. De repente, ouvi o som de grunhidos; minha imaginação aterrorizava-me e tremi de medo. Fiz força para focalizar meus pensamentos nas palavras que estava recitando mecanicamente, afastando-me do canto de onde vinham os sons e grunhidos. Concentrei-me em recordar minhas mishnayot. Até o dia de hoje lembro-me dos pensamentos que passaram pela minha cabeça na hora da prece de minchá.

Como estava sentado no escuro e não sabia a hora, apressei-me em rezar. Após a prece, ao revisar as mishnayot, ouvi o som de grunhidos e estalar de membros, acompanhados por uma demorada luta. Meus joelhos tremiam de pavor, mas lembrei-me que meu amigo Shimon tinha estado me exibindo a caixa de fósforos que comprara para seu irmão Leib, e que na confusão dos acontecimentos, tinha ficado em meu poder. Acendi um fósforo e enxerguei um bezerro amarrado com uma mordaça na boca caído a um canto; meu medo atenuou-se.

Terminei recordando a ordem de Zera’im, e continuei com a ordem de Moed. Antes que pudesse terminar Moed, ouvi o som de passos aproximando-se da minha cela. Logo a porta se abriu e vi o oficial de plantão. "Perdoe-me, por favor," implorou o oficial. "Não sabia que você era o sobrinho de Razoh." (Todo o povo da cidade, até mesmo os não-judeus, chamavam Razoh a meu tio, diminutivo de Rabi Zalman Aharon.)

"Agora o pristov chegou e ordenou-me que libertasse você… Por favor, tenha pena de mim – não lhes diga que bati em você e o puxei pela orelha, não fiz por mal, apenas por força do hábito; veja, nem saiu sangue de seu nariz, nenhum de seus dentes caiu, então, qual é o problema?"

Quando entramos na sala do pristov, Reb Dovid, o açougueiro – surrado e ferido – já estava lá de pé, junto ao policial que o espancara e as testemunhas – Reb Yoel, o latoeiro, e Shaul, o cocheiro. O policial argumentou que o bezerro que Reb Dovid tinha carregado era o bezerro que Reb Meir, o açougueiro, tinha comprado dele, o irmão do policial, e que foi roubado de Reb Meir por Reb Dovid. Esta era a razão das suas mãos terem golpeado a face do ladrão. "E este jovem," ele disse apontando-me, "insultou-me e arrancou meu distintivo."

As testemunhas afirmaram que Reb Dovid, o açougueiro, tinha comprado o bezerro que estava carregando. Enquanto eles falavam, Sr. Mordechai Silverbeard – o criado de meu tio Razoh – entrou e passou um bilhete ao pristov. Ao ler a mensagem, o chefe de polícia disse a Silverbeard: "Você pode levá-lo, está livre de qualquer punição."

Meus amigos estavam me esperando fora da delegacia. Caminhamos juntos (eu não queria ir no coche que fora enviado de casa) e contei-lhes tudo que me havia acontecido. Quando o Sr. Silverbeard ouviu minha história sobre o bezerro na cela da prisão, correu para encontrar Meir, o açougueiro. Este correu até a delegacia, onde encontrou o pristov ainda resolvendo sobre o caso do policial contra Reb Dovid, e disse ao pristov: "Contaram-me que um bezerro amarrado e amordaçado está no chão da cela da delegacia."

O pristov, que estava de mau-humor – tinha sido forçado a deixar seus amigos e um jogo de cartas – levantou-se furioso e foi investigar, seguido pelo chefe da delegacia e o funcionário da prefeitura. Meir, Dovid e as testemunhas foram atrás deles, para ver se era verdade a história do bezerro na cela. Quão surpresos ficaram ao descobrir que era verdade o que Meir dissera, que de fato o bezerro era o que Meir tinha comprado do irmão do policial abusivo.

Através de uma investigação, foi descoberto que o policial e seu irmão tinham conspirado para primeiro vender o bezerro a Meir e depois roubá-lo dele.

O policial esteve na cela por uma semana, após a qual foi levado a julgamento. Outra desonestidade sua tinha sido descoberta, e foi demitido de seu posto. Mais tarde, meus amigos contaram-me que cinco horas haviam se passado, enquanto eu estive na cela, até que o pristov fosse encontrado na companhia do Sr. Azmidov e do Dr. Yermakov, entretidos num jogo de cartas na casa do doutor.

Quando papai voltou de sua viagem, meu tio Razoh contou-lhe todo o incidente e louvou minha fortaleza de ânimo. Graças a mim, disse ele, a inocência de Dovid e a culpa do policial tinham sido provadas, e o bezerro tinha sido entregue de volta para Meir.

Papai disse-me: "Você fez bem ao proteger a dignidade de um judeu honesto. Se precisou sofrer por algumas horas, o que tem isso?

"Agora ficou provado a você como é bom que saiba as mishnayot de cor. Não fosse pelo seu conhecimento, de que maneira você seria melhor que o bezerro de Meir, que também estava preso? Mas como você sabia as mishnayot e as recordou lá, as horas de prisão passaram com palavras de Torá e preces – eis a vantagem do homem sobre o animal."

As palavras de papai estão gravadas no meu coração e na minha mente; ame e estime todo judeu honesto, seja ele rico ou pobre em Torá. Proteja a dignidade de cada judeu, mesmo se estiver em perigo. E prepare sempre "provisões para a viagem" – aprendendo de cor – no caso de qualquer problema. Assim nenhum tempo será desperdiçado sem o estudo de Torá. Papai deu-me dez rublos para meu fundo, para que pudesse incrementar minhas atividades de empréstimos.