Ela é um dos heróis mais inesperados da Torá. Sem ela, Moshê poderia não ter vivido. A história inteira do êxodo teria sido diferente. Ela não era uma israelita. Nada tinha a ganhar, e tudo a perde, pela sua coragem. Porém teve dúvidas, não cometeu erros, nem hesitou. Se o faraó por um lado afligiu os filhos de Israel, ela, por outro, um membro da sua própria família resgatou o vestígio de esperança ao povo judeu: a filha do faraó.
Relembre o contexto. O faraó tinha decretado a morte para toda criança judia do sexo masculino. Yocheved, esposa de Amram, tinha um menino bebê. Durante três meses ela conseguiu ocultar sua existência, porém não por mais tempo. Temendo sua morte certa se ela o mantivesse, jogou-o ao Rio Nilo numa cesta, esperando que alguém pudesse vê-lo e tivesse compaixão por ele.
Eis o que aconteceu: a filha do faraó foi banhar-se no Nilo, enquanto suas servas caminhavam à margem do rio. Ela viu o cesto e enviou sua escrava para apanhá-la. Abrindo-a, e viu o menino. A criança começou a chorar, e ela sentiu pena. “Este é um dos meninos hebreus,” disse ela (Shemot 2:6). Note a sequência. Primeiro ela vê que é uma criança e sente pena. Uma reação natural, humana, compassiva. Somente então ela pensou quem deveria ser a criança. Quem mais iria abandonar uma criança? Ela lembrou-se do decreto de seu pai contra os judeus. A situação muda no mesmo instante.
Salvar o bebê significaria desobedecer a ordem real. Aquilo seria sério o suficiente para uma egípcia comum; muito mais então para um membro da família real. Ela nem estava sozinha quando o evento ocorreu. Suas empregadas estavam com ela; sua escrava está de pé ao seu lado. Ela deve enfrentar o risco de que nenhuma delas, num ataque de fúria, ou até mera fofoca, conte a alguém sobre aquilo. Os rumores florescem na corte real. Porém ela não muda de ideia. Não ordena a nenhuma de suas servas para pegar o bebê e escondê-lo no lar de alguma família distante. Ela tem a coragem levada por sua compaixão. Não hesita.
Agora algo extraordinário acontece: a irmã [da criança] disse à filha do faraó: “Devo ir e chamar uma mulher judia [ara amamentar a criança para você?” A filha do faraó respondeu: “Vá!” A menina foi e trouxe a própria mãe do bebê. “Pegue essa criança e a amamente”, disse a filha do faraó. “Vou pagar-lhe um salário”.
A mulher pegou a criança e a amamentou. (Shemot 2:7-9). A simplicidade com a qual isso é narrado oculta a surpreendente natureza desse encontro. Primeiro, como uma criança – não apenas uma criança, mas um membro de um povo perseguido – tem a audácia de abordar uma princesa? Não há um preâmbulo elaborado, nenhum “Sua alteza real” ou qualquer outra formalidade do tipo que conhecemos na narrativa bíblica. Elas parecem falar como iguais. Também o são as palavras não ditas. “Você sabe e eu sei”, sugere Miriam, a irmã de Moshê, “quem é essa criança; é meu irmão bebê.”
Ela propõe um plano brilhante em sua simplicidade. Se a mãe verdadeira pode manter a criança em sua casa para amamentá-la, podemos ambos minimizar o perigo. Você não terá de explicar à corte como essa criança apareceu de repente. Vamos poupar o risco de criá-lo: podemos dizer que o menino não é hebreu, e que a mãe não é a mãe, mas apenas uma babá. A engenhosidade de Miriam é igualada com a concordância instantânea da filha do faraó. Ela sabe: ela entende; ela dá seu consentimento. Então vem a surpresa final: “Vendo que ela [a filha do faraó] queria salvar Moshê, elas [suas criadas] dizem a ela: “Madame, é costume que quando um rei de carne e sangue emite um decreto, mesmo se o mundo inteiro não cumprir, pelo menos seus filhos e os membros da sua família o cumprirão. Porém você transgrediu o decreto de seu pai!” (Sotá 12 b). Mas sua determinação e coragem eram dominantes.
Quando a criança cresceu, [sua mãe] o levou à filha do faraó. Ela o adotou como seu próprio filho, e lhe deu o nome de Moshê. “Eu o tirei da água”, ela disse. (Shemot 2:10).
À filha do faraó não teve simplesmente um momento de compaixão. Ela não esqueceu da criança. Nem a passagem do tempo diminuiu seu senso de responsabilidade. Não somente ela permanece comprometida com seu bem estar; ela adotou a mais arriscada das estratégias. Adotá-lo e criá-lo como seu próprio filho. Isso é coragem no nível mais alto. Porém o detalhe mais surpreendente vem na última sentença: Na Torá, são os pais que dão o nome ao filho, e no caso de um indivíduo especial, o próprio D'us. D'us quem deu o nome a Yitschac, à primeira criança judia; o anjo de D'us que deu a Yaacov o nome Israel; D'us que muda os nomes de Avram e Sarai para Avraham e Sara. Já encontramos um nome adotivo – Tzafenat Pa’neá – o nome pelo qual Yossef era conhecido no Egito; porém Yossef permaneceu Yossef.
É surpreendente que o herói do êxodo, o maior de todos os profetas e líder do povo judeu, e que deveria ser nomeado por seus pais, Amram e Yocheved, foi nomeado por sua mãe adotiva, uma princesa egípcia.
Um Midrash atrai nossa atenção para o fato: esta é a recompensa para aqueles que agem com genuína bondade. Embora Moshê tivesse muitos nomes, o único pelo qual ele é conhecido em toda a Torá é aquele dado a ele pela filha do faraó. Até o Eterno, bendito seja Ele, não o chamava por qualquer outro nome. Na verdade Moshê – Meses – é um nome egípcio, significando “criança”, como em Ramsés (que significa filho de Ra; Ra era o maior dos deuses egípcios.) Quem era então a filha do faraó? Em nenhum lugar ela é nomeada explicitamente. Porém o Primeiro Livro das Crônicas (4:18) menciona uma filha do faraó, chamada Bitya, e foi ela que os sábios identificaram como a mulher que salvou Moshê. O nome Bitya (às vezes Batya) significa “a filha de D'us.” A partir disso os sábios tiraram uma das suas lições mais impressionantes: “E o Eterno, bendito seja Ele, disse a ela: ‘Moshê não era seu filho, porém você o chamava de filho. Você não é Minha filha, mas Eu chamarei a adoção de uma criança enjeitada no mundo antigo, como Minha filha.’”
Eles acrescentaram que ela foi uma das poucas pessoas (a tradição enumera nove) que foram tão justas que entraram no Gan Eden, paraíso, viva.
A tirania não pode destruir a humanidade. A coragem moral às vezes pode ser encontrada no coração das trevas. O fato de que a própria Torá conta a história da maneira que o faz tem enormes implicações. Significa que quando se trata de pessoas nunca devemos generalizar, nunca estereotipar. Os egípcios não eram todos maus: até do próprio faraó nasceu uma heroína.
Nada poderia mostrar mais poderosamente que a Torá não é um texto etnocêntrico; que devemos reconhecer a virtude onde quer que a encontremos, mesmo entre nossos inimigos; e que a base dos valores humanos – humanidade, compaixão, coragem – é realmente universal. A santidade pode não ser; a bondade é.
Do lado de fora de Yad Vashem, o Memorial do Holocausto em Jerusalém, há uma avenida dedicada aos gentios justos. A filha do faraó é um símbolo supremo do que eles fizeram e do que eram. E, por exemplo, sou profundamente comovido por aquele encontro nas águas do Nilo entre uma princesa egípcia e uma pequena criança judia, Miriam, a irmã de Moshê. O contraste entre elas – em termos de idade, cultura, status e poder – não poderia ser maior. Porém sua profunda humanidade venceu todas as diferenças, toda a distância. Duas heroínas.
Que elas nos inspirem!
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