Ele tinha 137 anos de idade. Tinha passado por dois eventos traumáticos envolvendo as pessoas mais preciosas para ele. O primeiro envolveu o filho por quem tinha esperado a vida inteira, Yitschac. Ele e Sarah tinham desistido da esperança, porém D'us disse a eles que teriam um filho juntos, e seria ele quem continuaria o pacto. Os anos passaram. Sarah não concebeu. Ela tinha envelhecido, porém D'us ainda insistia que eles teriam um filho.
Por fim ele veio. Houve alegria. Sarah disse:”D'us trouxe-me o riso, e todos que souberem disso vão rir comigo.” Então veio o terrível momento quando D'us disse a Avraham: “Pegue seu filho o único, aquele que você ama,” e ofereça-o em sacrifício. Avraham não discordou, protestou nem adiou. Pai e filho viajaram juntos, e somente no último instante a ordem veio do céu, dizendo: “Pare.” Como pode um pai, menos ainda um filho, sobreviver a um trauma desses?
Então veio o luto. Sarah, a querida esposa de Avraham, faleceu. Ela tinha sido sua companheira constante, partilhando a jornada com ele quando deixaram para trás tudo que conheciam, seus pais, seu local de nascimento e suas famílias. Duas vezes ela salvou a vida de Avraham fingindo ser sua irmã.
O que faz um homem de 137 anos – a Torá o chama de “velho e avançado em anos” – após um trauma desses e tamanho luto? Não ficaríamos surpresos por saber que ele passou o resto de seus dias em tristeza e lembranças. Ele tinha feito aquilo que D'us lhe pedira. Porém mal podia dizer que as promessas de D'us tinham sido cumpridas. Sete vezes a terra de Canaan tinha sido prometida a ele, porém quando Sarah faleceu ele não tinha sequer um centímetro quadrado da terra, nem mesmo um local onde enterrar sua esposa.
D'us tinha prometido a ele muitos filhos, uma grande nação, muitas nações, tantas quanto os grãos de areia no mar e as estrelas no céu. Porém ele tinha apenas um filho do pacto, Yitschac, a quem ele tinha quase perdido, e que ainda estava solteiro aos trinta e sete anos. Avraham tinha toda razão para sentar e lamentar. Porém ele não o fez. Em uma das mais extraordinárias sequências de palavras na Torá, sua tristeza é descrita em meras cinco palavras em hebraico; traduzindo, “Avraham foi para prantear por Sarah e chorou por ela.”
Então imediatamente lemos “E Avraham levantou-se de seu luto.” A partir de então, ele engajou-se num frenesi de atividade com dois objetivos em mente: primeiro, comprar um lote de terra no qual enterrar Sarah, segundo encontrar uma esposa para o filho. Note que essas correspondem exatamente às duas bênçãos Divinas: da terra e descendentes. Avraham não esperou para D'us agir. Ele entendeu uma das mais profundas verdades do Judaísmo; que D'us está esperando para nós agirmos.
Como Avraham superou o trauma e a dor? Como você sobrevive quase perdendo seu filho e perdendo sua parceira de vida e ainda tem a energia para seguir em frente? O que deu a Avraham sua força, sua capacidade de sobreviver, seu espírito intacto?
Eu soube da resposta pelas pessoas que se tornaram meus mentores em coragem moral, ou seja, os sobreviventes do Holocausto que tive o privilégio de conhecer. Como, eu me pergunto, eles continuaram em frente, sabendo aquilo que sabiam, vendo o que viram? Sabemos que os soldados britânicos e americanos que liberaram os campos jamais se esqueceram daquilo que testemunharam.
Segundo a nova biografia de Henry Kissinger, escrita por Niall Fergusson, Henry entrou no campo como soldado americano, a visão que seus olhos tiveram transformou sua vida. Se isso foi verdadeiro para aqueles que meramente viram Bergen Belsen e os outros campos, muito mais então, aqueles que viveram lá e viram tantos morrerem ali. Porém os sobreviventes que conheci tinham o mais tenaz apego à vida. Eu queria entender como eles continuaram seguindo em frente.
Por fim descobri. A maior parte deles não falava sobre o passado, mesmo para seus cônjuges, nem os filhos. Em vez disso seguiram em frente para criar uma vida nova num pais novo. Aprenderam seu idioma e costumes.. Encontraram trabalho. Construíram carreiras. Casaram e tiveram filhos. Tendo perdido as próprias famílias, os sobreviventes se tornaram uma família expandida um com o outro. Olhavam para a frente, não para trás. Primeiro construíram um futuro. Somente então – cerca de quarenta ou cinquenta anos mais tarde – falaram sobre o passado. Foi quando eles contaram sua história, primeiro para suas famílias, depois para o mundo.
Duas pessoas na Torá perderam o entusiasmo, uma explicitamente, a outra por implicação. Noach, o homem mais justo da sua geração, terminou a vida fazendo vinho e ficando bêbado. A Torá não diz por que mas podemos adivinhar. Ele tinha perdido um mundo inteiro. Embora ele e sua família estivessem a salvo a bordo da arca, os outros – todos seus contemporâneos – se afogaram. Não é difícil imaginar que esse homem justo massacrado pelo sofrimento quando revivia na mente tudo que tinha acontecido, perguntava se poderia ter feito alguma coisa para salvar mais vidas ou evitar a catástrofe.
A esposa de Lot, contra a instrução dos anjos, na verdade olhou para trás à medida que as cidades da planície desapareciam sob o fogo e enxofre e a fúria de D'us. Imediatamente ela foi transformada numa estátua de sal, a descrição gráfica da Torá de uma mulher tão assolada pelo choque e tristeza que foi incapaz de se mover.
São essas duas histórias que nos ajudam a entender Avraham após a morte de Sarah. Ele estabeleceu o precedente: primeiro construa o futuro, e somente então você pode prantear o passado. Se você reverter a ordem, ficará cativo pelo passado. Será incapaz de seguir em frente. Vai se tornar como a esposa de Lot.
Alguma coisa nessa profunda verdade afetou a obra de um dos mais notáveis sobreviventes do Holocausto, o psicoterapeuta Viktor Frankl. Frankl viveu através de Auschwitz, dedicando-se a dar aos outros prisioneiros a vontade de viver. Ele conta a história em diversos livros, dos quais o mais famoso é A Busca do Homem Por Um Significado. Ele fez isso encontrando para cada um deles uma tarefa que lhes fosse adequada, algo que eles ainda não tinha feito mas que somente eles poderiam fazer. Na verdade, deu a eles um futuro. Isso permitiu que sobrevivessem ao presente e afastassem a mente do passado. Frankl viveu seus ensinamentos.
Após a liberação de Auschwitz ele construiu uma escola de psicoterapia chamada Logoterapia, baseada na busca humana por um significado. Foi quase uma inversão da obra de Freud. A psicanálise freudiana tinha encorajado as pessoas a pensarem sobre seu próprio passado. Frankl ensinou as pessoas a construírem um futuro, ou mais precisamente, a escutar o futuro chamando por elas. Como Avraham, Frankl teve uma vida longa e boa, ganhando reconhecimento mundial e falecendo aos 92 anos de idade.
Avraham ouvia o futuro chamando por ele. Sarah tinha morrido. Yitschac não estava casado. Avraham não tinha terras nem netos. Ele não clamou, em fúria ou angústia, a D'us. Em vez disso, ele ouviu a calma voz dizendo: O próximo passo depende de você. Você precisa criar um futuro que Eu preencherei com Meu espírito. Foi assim que Avraham sobreviveu ao choque e luto. D'us proibiu que passemos por qualquer um desses, mas se o fizermos, eis como sobreviver.
D'us entra em nossas vidas como um chamado vindo do futuro. É como se ouvíssemos a Ele nos convocando do distante horizonte do tempo, para iniciar uma jornada e assumir uma tarefa para a qual, em maneiras que não podemos entender plenamente, fomos criados. Este é o significado da palavra vocação, literalmente “um chamado”, uma missão, uma tarefa à qual fomos convocados.
Não estamos aqui por acaso. Estamos aqui porque D'us quis que estivéssemos, e porque há uma tarefa que devemos cumprir. Descobrir qual é não é fácil, e muitas vezes demora muitos anos e falsos inícios. Mas para cada um de nós há algo para o qual D'us está nos chamando, um futuro ainda não feito que espera por nós. É a orientação do futuro que define o Judaísmo como fé, como eu explico no ultimo capítulo de meu livro, Tempo Futuro.
Portanto grande parte da fúria, ódio e ressentimentos deste mundo são provocados por pessoas obcecadas pelo passado e que, como a esposa de Lot, são incapazes de seguir em frente. Não há um final feliz para este tipo de história, somente mais lágrimas e mais tragédia. O jeito de Avraham em Chayê Sarah é diferente. Primeiro construa o futuro. Somente então você pode prantear o passado.
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