Duas perspectivas

Sherlock Holmes e Dr. Watson vão acampar juntos. Montam a tenda e entram para desfrutar uma noite tranquila perto da fogueira. No meio da noite, Sherlock volta-se para o Dr. Watson e diz: “E aí, no que está pensando agora?”

Watson responde: “Sherlock! Isto é um espetáculo. Estou contemplando as estrelas no céu, pairando acima de nós. Estou encantado pelo esplendor romântico da noite, e mergulhado na vista magnífica do céu estrelado. E você, no que está pensando?”

“Que alguém roubou a nossa tenda,” responde Sherlock.

Tributo, Prece e Guerra

Após 34 anos separado de seus pais, Yaacov e sua família retornam da Mesopotâmia para a Terra em Israel. No caminho, ele fica sabendo que seu irmão Essav está indo ao seu encontro com um exército, determinado a matá-lo.

Nossos Sábios derivam da narrativa bíblica na porção de Vayishlach que Yaacov preparou-se para o confronto com Essav através de uma estratégia tripla de “tributo, prece e guerra1.” Primeiramente Yaacov enviou presentes suntuosos para Essav na esperança de aplacar sua ira. Esses presentes incluíam cabras, ovelhas, camelos, vacas, touros e jumentos. Em seguida, Yaacov fez uma oração sincera, entregando seu destino e ele próprio à compaixão de D'us. Finalmente, Yaacov preparou-se, junto com sua família, para uma guerra total contra Essav.

A Batalha Diária

As histórias na Torá não são apenas eventos que ocorreram a certa altura na história, envolvendo personagens específicos. São também reflexos de episódios espirituais e emocionais que ocorrem continuamente no coração de todo ser humano.

O homem é uma dualidade: é uma montanha de pó e uma visão de D'us. Os gêmeos Essav e Yaacov incorporam, respectivamente, essas forças polares dentro da raça humana2. Essav representa nossa identidade autocentrada, egoísta e animalesca, ao passo que Yaacov personifica nossa alma transcendente, espiritual e idealista.

A inimizade e a rivalidade entre os irmãos refletem a tensão interminável e o conflito entre as duas forças em nossa vida: entre o nosso ego e a nossa humildade, entre nosssos anseios egoístas e aspirações nobres, entre nossos desejos impulsivos e nossos anseios altruístas.

Nenhum de nós está isento desse confronto diário com “Essav”. Somos constantemente assoberbados com fardos materialistas, ataques de egoísmo e apetites imorais. As incessantes exigências de nossa consciência egoísta e bestial apresenta a ameaça de matar o “Yaacov” dentro de nós.

Como se pode lidar com essas forças potentes que, aparentemente, são muito mais poderosas que as forças sagradas dentro de nós? Devemos empregar o programa de três passos de Yaacov, tributo, prece e guerra.

Honrando seu Animal

Antes de mais nada, devemos creditar a Essav algumas das nossas conquistas. Temos de reconhecer a consciência animal vivendo dentro de nós e honrar sua presença concedendo suas necessidades. Devemos comer, dormir, nos exercitar, ganhar o sustento e ter um relacionamento contínuo com o mundo físico ao nosso redor. A alma animalesca merece receber um pródigo tributo diário vindo de nós, o que inclui nosso tempo, energia e recursos.

Porém, como asseguramos que não haja exageros? Como garantimos que nossos tributos diários à identidade animal dentro de nós não a colocarão no centro de nossa vida, suplantando a alma espiritual como o verdadeiro âmago de nossa identidade?

Para isto, Yaacov deve engajar-se em prece. “Resgata-me”, reza Yaacov quando Essav se aproxima, “da mão de meu irmão, da mão de Essav. Tenho medo dele, pois ele pode chegar e destruir-me3.” Por que a redundância “da mão de meu irmão, da mão de Essav”?

Não haveria necessidade de temer a influência de Essav se estivéssemos desapegados da realidade de Essav, se vivêssemos como ascetas espirituais. Porém, o Judaísmo exige que Essav se torne nosso “irmão”; que engajemos nossas necessidades corporais e animalescas, e que lidemos com o mundo físico ao nosso redor. Sob essas condições, a única maneira pela qual podemos ter certeza de que Essav não domina e controla nossa vida é através da prece.

O Presente da Prece

O que é a prece? Assim como há um tempo para engajar a alma animalesca e pagar tributo a suas necessidades e desejos, há um tempo todos os dias em que nos afastamos da nossa identidade física e entramos no oásis transcendental de nossa alma. É quando deixamos o ego de lado e descobrimos nosso amor e espiritualidade interiores. Todo o dia, pensamos sobre nossas tendas; durante a prece nos concentramos nas estrelas, no esplendor e significado da vida.

Você já sentiu o poder da prece?

Infelizmente, pode-se presenciar certa falta de respeito na maioria das sinagogas, que deveriam ser ilhas espirituais onde a pessoa pode se concentrar na alma. Isso é lamentável, porque ao perder a experiência diária da genuína prece nos tornamos vulneráveis ao ataque do Essav interior4.

Por exemplo, quando você não reza, não medita nem conecta-se com sua alma pela manhã, muitas vezes perde a coragem e a visão de controlar o impulso de Essav por comida e faz um desjejum não saudável. Quando vai para o escritório, pode perder a força para conduzir seus negócios de maneira honesta. A prece assegura que o tributo que prestamos à nossa alma animal não nos exaure completamente até que nada reste para chamar de nosso.

Sob a Faca

Porém, tudo o que dissemos acima não basta. Yaacov deve preparar-se também para a guerra. Alguns dos anseios e paixões da nossa alma animalesca não podem ser resolvidas somente através da prece. Devemos declarar guerra contra eles.

Às vezes, durante o dia ou à noite, somos dominados por um anseio poderoso, animalesco, semelhante a Essav, que arde em nosso coração como uma fornalha. Nesses momentos há somente uma coisa a fazer: você deve fechar o punho, dar um soco na face do impulso e prosseguir com a sua vida. A guerra é uma coisa feia, mas às vezes é a única esperança de sobreviver ao ataque de um inimigo que está determinado a nos matar5.

Uma história

Um dos maiores mestres chassídicos, Reb Simcah Bunam de Pshescah, declarou certa vez que a verdadeira definição de um homem espiritual é aquele que sempre imagina sua cabeça deitada numa guilhotina, seu yetser hará (má inclinação) pairando sobre ela, pronta a cortar sua cabeça a qualquer instante.

“Mas Rebe,” perguntou um dos chassidim, “e se alguém não tem aquela sensação?”

“Neste caso,” respondeu o Rebe, “sua cabeça já foi cortada.”6