27 de fevereiro de 2022
A Ucrânia está sob ataque desde o início da manhã de 24 de fevereiro, e toda a população do país está em perigo, incluindo os 350.000 judeus que o chamam de lar. Para muitos judeus ao redor do mundo, o nome Ucrânia evoca imagens do lugar onde seus avós ou ancestrais fugiram entre o final de 1800 ou início de 1900, ou como uma região onde milhões de judeus foram assassinados durante o Holocausto. Tudo isso são fatos históricos, mas o que também é verdadeiro é que a Ucrânia tem sido um lar cada vez mais hospitaleiro para centenas de milhares de judeus cujas famílias viveram em suas vilas e cidades por séculos e permaneceram lá mesmo após a queda da União Soviética em 1991.
Hoje, a Ucrânia possui uma próspera infra-estrutura judaica que inclui sinagogas, micvaot, uma fábrica de matsot, escolas judaicas e yeshivot além de organizações de serviços sociais. Os primeiros emissários permanentes pós-Perestroika Chabad-Lubavitch na Ucrânia chegaram em 1990 ao que ainda era a União Soviética e começaram a liderar as sinagogas em Kharkov e Dnipro (Dnepropetrovsk até 2014) que haviam acabado de ser devolvidas à comunidade judaica pelas autoridades. Seu trabalho teve como base as raízes profundas de Chabad na região, incluindo décadas de ativismo judaico clandestino ao longo da era soviética.
Hoje, 35 cidades de todos os tamanhos em toda a Ucrânia são atendidas por 200 famílias de emissários Chabad. Muitas vezes, os rabinos Chabad e suas esposas criam a única infraestrutura judaica na cidade. Esses emissários não apenas trabalham com as comunidades judaicas em suas próprias cidades, mas alcançam dezenas de cidades, vilas e vilarejos menores ao seu redor, promovendo atividades para as festas judaicas e outros programas ao longo do ano.
Chabad mantém orfanatos judeus em Zhitomir – as crianças foram evacuadas mais para o oeste esta semana – Odessa e Dnipro. Seu trabalho vai muito além de ser apenas um trabalho de ajuda. À medida que a qualidade de vida na Ucrânia aumentou, também aumentou a qualidade da vida judaica. Chabad mantém uma universidade judaica em Odessa e construiu o maior centro judaico do mundo em Dnipro. Os restaurantes casher também estão espalhados pelo país, sinalizando um nível de conforto material e espiritual que poucos poderiam ter previsto apenas algumas décadas atrás.
Enquanto o mundo continua a rezar pela segurança e pela vida de todos que se encontram em perigo, segue um vislumbre da vida judaica na Ucrânia.
Geografia Judaica
O Império Russo não era o lar para um grande número de judeus até a primeira partilha da Polônia em 1772, quando partes da Polônia foram anexadas por seus vizinhos, incluindo a Rússia. Em 1790, a imperatriz Catarina II estabeleceu o chamado Pale of Settlement, um território de 472.000 square-mile territory/milhas quadradas onde os judeus foram autorizados a viver. Isso incluiu grande parte da moderna Moldávia (Bessarábia), Bielorrússia (Rússia Branca) e Ucrânia. Os judeus não foram autorizados a viver a leste das regiões de Chernigov, Poltava e Yekaterinoslav sem autorização. Mesmo dentro do Pale, no entanto, havia certas cidades, como Kiev e Nikolayev, onde os judeus só podiam residir com uma autorização de residência.
Essas regras permaneceram em vigor até a Revolução Russa de 1917. Por exemplo, parte da razão pela qual Mendel Beilis foi escolhido para ser vítima do infame libelo de sangue de 1911-1913 em Kiev foi porque, como gerente de uma fábrica, ele era um dos únicos judeus na área autorizados a viver lá.
De acordo com o censo soviético de 1926, cerca de 50% dos 2,7 milhões de judeus da União Soviética viviam na Ucrânia e 87% deles viviam em pequenas cidades ou vilarejos. Isso começou a mudar lentamente no início do período soviético e acelerou durante o início da década de 1930, a fome resultante da coletivização forçada, quando os judeus começaram a ir para as cidades em busca de trabalho e comida.

De acordo com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, antes da invasão da União Soviética por Hitler em 1941, “a Ucrânia era o lar da maior população judaica da Europa… e meio milhão de judeus foram mortos lá”. Os nazistas, com a ajuda de colaboradores locais, reuniram os judeus da Ucrânia em guetos locais, mas, em sua maioria, em vez de deportá-los para campos, atiraram neles em florestas e campos próximos de casa. Esses campos de extermínio pontilham toda a Ucrânia, com lugares como Babi Yar fora de Kiev – onde cerca de 40.000 judeus foram assassinados – entre os mais conhecidos.
Muitos judeus sobreviventes voltaram para casa após a guerra, e vestígios do antigo Pale of Settlement eram facilmente visíveis até os anos 1980 e início dos anos 90. Naquela época, pequenas cidades historicamente judaicas no oeste da Ucrânia ainda tinham sinagogas e um número significativo de habitantes que falavam iídiche, sua concentração diminuindo à medida que se avançava para o leste. Quando Chabad de Zhitomir foi estabelecido no início dos anos 1990 pelo rabino Shlomo e Esther Wilhelm, uma de suas responsabilidades era chegar às dezenas de cidades judaicas menores onde ainda viviam multidões de judeus mais velhos.
Ainda hoje, embora essa geração tenha praticamente desaparecido, o legado do Pale permanece. Na região de Sumy, por onde passou a fronteira do Pale, você pode ter uma cidade com centenas de anos de história judaica e uma comunidade ativa, mas depois, ao dirigir por cerca de trinta minutos para o leste se encontrar em uma cidade com uma história judaica muito escassa e uma população judaica que veio principalmente durante a era soviética. Isso não impediu os emissários de Chabad Rabino Yechiel Shlomo e Rochi Levitansky, diretores de Chabad de Sumy, uma pequena cidade perto da fronteira com a Rússia que tem visto intensos combates nos últimos dias, de estabelecer uma presença judaica permanente na cidade em 2004 e trabalhar com seus cerca de 3.000 judeus, muitos dos quais nem ao menos sabem que são judeus.

Berço do Movimento Chassídico
As regiões históricas de Volhynia e Podolia, a oeste de Kiev, foram o berço do movimento chassídico. Pogroms violentos há muito impactavam os judeus do que é a Ucrânia, nada pior do que a violenta revolta camponesa liderada por Bogdan Chmielnicki em 1648-49, na qual dezenas de milhares de judeus foram massacrados, deixando os judeus da região desesperados. Foi como resultado direto desses ataques que o rabino Yisrael Baal Shem Tov, o fundador do movimento chassídico, nascido na região em 1698, começou a revelar seus ensinamentos, para elevar os espíritos de uma nação quebrada.
Os ensinamentos e o movimento do Baal Shem Tov se espalharam na região, tornando-se rapidamente a corrente dominante da vida judaica. Ele faleceu em 1760 e está enterrado na cidade de Mezibush (Medzhybizh), cerca de 320 quilômetros a oeste de Kiev. O Baal Shem Tov foi sucedido pelo rabino Dovber de Mezritch (?-1772), cujos alunos se espalharam por toda a Europa Oriental e Central para levar a mensagem de um judaísmo vibrante e um D'us amoroso a todos. O impacto espiritual do Maguid pode ser observado em todo o mundo, mas sua vida física pode ser encontrada na Ucrânia moderna: ele foi enterrado na vila de Anipoli (Hanopil), também no oeste da Ucrânia. Não muito tempo atrás, o rabino Chabad de Rovna (Rivne), Rabi Schneor Schneersohn, descobriu que a estrutura da sinagoga da qual ele e sua esposa levam a vida judaica em Rovna era de fato a sinagoga do próprio Maguid.
O aluno do Maguid e “neto” espiritual do Báal Shem Tov foi o Rabino Schneur Zalman de Liadi, fundador do movimento Chabad, que expôs os ensinamentos de seus mestres desenvolvendo uma estrutura intelectual abrangente para explorar a unidade de D'us como manifesta no mundo e no homem. Embora Rabino Schneur Zalman (conhecido também como o Alter Rebe) tenha vivido e ensinado nas cidades de Liozna e Liadi na Rússia Branca, ele passou um ano em Mogilov-Podolsk, Ucrânia, e foi enterrado na cidade ucraniana de Haditch, no que é hoje a região de Poltava a leste de Kiev.
Seu filho e sucessor, o rabino Dovber Schneuri (o Mitteler Rebe) fundou uma série de colônias agrícolas judaicas na região de Kherson, na Ucrânia, o que permitiu aos judeus deixar a pobreza das cidades e ganhar a vida com o fruto de suas mãos. O rabino Dovber faleceu em Niezhin, nordeste de Kiev, em 1827, e lá encontra-se enterrado.
Os túmulos dele e de seu pai, juntamente com os do Baal Shem Tov, o Maguid e dezenas de outros mestres chassídicos (notavelmente o local de descanso do rabino Nachman de Breslov na cidade de Uman, e do rabino Levi Yitzchak de Berdichev em Berdichev), atraem milhares de peregrinos à Ucrânia anualmente.

O Rebe
O Rebe, Rabino Menachem M. Schneerson, de abençoada memória, sucessor da sétima geração a partir do Rabino Shneur Zalman, nasceu em 1902 em Nikolayev, Ucrânia (o Império Russo na época), onde seu avô serviu como rabino. Em 1908, o pai do Rebe, Rabino Levi Yitzchak Schneerson, foi nomeado rabino de Yekaterinoslav (hoje Dnipro), onde liderou a comunidade judaica por mais de três décadas.
Na época da eleição do rabino Levi Yitzchak, Yekaterinoslav tinha muitos judeus religiosos, mas também abrigava um grande contingente de judeus sionistas e seculares, alguns dos quais inicialmente se opuseram à sua nomeação, supondo que ele seria intolerante com eles. Mas rapidamente descobriram que estavam enganados, e Rabino Levi Yitzchak e sua esposa, a mãe do Rebe, Rebetsin Chana, tornaram-se líderes amados pela comunidade, sua casa aberta a todos, independentemente de sua política ou nível de observância. Notavelmente, quando os judeus foram forçados pelo governo czarista a fugir de regiões próximas às linhas de frente durante a Primeira Guerra Mundial, o rabino Levi Yitzcak e a Rebetsin Chana lideraram um esforço maciço de ajuda para os milhares de refugiados judeus que inundavam a região.
“A casa do Rav Yekaterinoslaver, Rabino Levi Yitzchak Schneerson, era o local de alívio para os judeus que sofriam vindos da Polônia, Lituânia e Estados Bálticos…” o jornalista Aharon Friedenthal escreveria mais tarde. “Durante aqueles dias tempestuosos, a residência do rabino dava a impressão de uma colméia. Judeus estavam continuamente entrando e saindo. Alguns buscavam ajuda e sustento, pão e roupas para suas famílias, enquanto outros procuravam remédios e ajuda para refugiados doentes e exaustos... O rabino e a rebetsin, naqueles dias horríveis, nada sabiam nada sobre suas vidas. Seu compromisso foi todo dedicado ao esforço de resgate.”
Após a detenção em 1927, prisão e eventual expulsão da União Soviética do Sexto Rebe, Rabino Yosef Yitzchak Schneersohn, de abençoada memória, Rabino Levi Yitzchak tornou-se a principal figura rabínica na Ucrânia e em toda a União Soviética. Em abril de 1939, depois de liderar com sucesso os esforços de de fabricaçnao de matsá casher para Pêssach para sua comunidade e toda a região, o rabino Levi Yitzchak foi preso pelas autoridades soviéticas e condenado a cinco anos de exílio no Cazaquistão.
Sua estatura era tal que em 1943, quando os comunistas procuravam preencher a vaga de rabino-chefe de Moscou para apaziguar seus aliados ocidentais - o rabino-chefe anterior, Rabino Shmarya Leib Medalia, foi preso e fuzilado por Stalin em 1938 - eles cogitaram nomear o rabino Levi Yitzchak antes de rejeitar a ideia pois não podiam entregá-la a um Schneerson. O rabino Levi Yitzchak faleceu no exílio no Cazaquistão em 1944.
Hoje, Dnipro abriga o MenoráCenter, 500.000 metros quadrados, o maior centro judaico do mundo. O Chabad de Dnipro foi fundado em 1990 pelo rabino Shmuel e Chani Kaminezki, que serviram os 50.000 judeus da cidade desde então. O Menorah Center, que fica ao lado da sinagoga Golden Rose, abriga restaurantes e um supermercado casher, loja Judaica, floricultura e outras lojas.
Um lance de escadas de granito preto leva os visitantes a um museu do Holocausto de dois andares. O complexo inclui dois hotéis, uma sala de concertos, duas salas de convenções e escritórios – um deles abriga o consulado israelense da cidade. Embora o Centro Menorá seja enorme e reluzente, é apenas uma das dezenas de endereços de infraestrutura judaica em Dnipro, que também inclui o asilo de idosos Beit Baruch e um campus educacional.
Cerca de 700 crianças frequentam a Escola Judaica Ohr Avner Levi Yitzchak Schneerson de Chabad, e sua yeshivá afiliada além de uma escola para meninas. A antiga sinagoga do rabino Levi Yitzchak na rua Mironova agora serve como orfanato para meninos judeus.

O Presente e o Futuro
A Ucrânia tem um passado antissemita sombrio, que também não terminou com os pogroms, mas se estendeu até o Holocausto, quando milhões de judeus foram mortos por nazistas auxiliados por colaboradores locais. Embora a Ucrânia compartilhe esse legado negro de uma forma ou de outra com todos os países da Europa Oriental (e a maior parte da Europa Ocidental, aliás), continua sendo verdade que a terra da Ucrânia está saturada com o sangue de judeus inocentes.
Embora seja vital lembrar o passado e aprender com ele, também é importante olhar para o futuro. A Ucrânia evoluiu muito ao longo dos anos. Nos últimos 30 anos, tornou-se cada vez mais moderna e tolerante. Ambos Nikolayev e Dnipro nomearam ruas da cidade em homenagem ao Rebe. O presidente da Ucrânia, o comediante Volodymr Zelensky, é judeu, e uma de suas primeiras ações após vencer as eleições em 2019 foi se encontrar com uma delegação formada por seis principais rabinos do país.
Hoje a Ucrânia é um lar acolhedor para os judeus que escolheram não apenas permanecer lá, mas aprofundar as suas raízes e construir uma vida judaica ativa. Enquanto as bombas continuam a cair e os morteiros atacam aleatoriamente em todo o país, forçando homens, mulheres e crianças a se esconderem em porões, estações de metrô e sinagogas (Chabad de Kharkov's Choral Synagogue está servindo como abrigo para pelo menos udeus locais), rezemos para que a paz e a tranquilidade retornem a esta região que já foi palco de tanta tristeza.
Reserve um momento para recitar alguns Salmos, fazer uma mitsvá e doar alguma caridade em apoio aos judeus da Ucrânia e no mérito de cada pessoa que se encontra em perigo.
O Fundo de Ajuda Judaica da Ucrânia foi estabelecido para ajudar a fornecer assistência às comunidades judaicas na Ucrânia afetadas pela guerra.
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