Cumprir a mitsvá de tefilin fala de aceitação apesar da falta de entendimento, e assim “fortaleceu corações partidos, para que não passássemos um momento sem fé perfeita, mesmo quando não tínhamos entendimento”.

Rabi Yehoshua Aronson considerava a importância dessa mitsvá diferentemente nos campos. As passagens da Torá dentro do tefilin referem-se a D'us tirando os filhos de Israel para fora da escravidão no antigo Egito. A partir daí, os tefilin foram o símbolo daquela liberdade.

As correias do tefilin também possuem vários nós ritualmente prescritos – nós que, nas devastadoras circunstâncias difíceis dos campos, serviam como lembretes, segundo Rabi Aronson, do eterno amor de D'us por Seu povo, com Ele estando conectado ou amarrado a eles.

Em muitas das suas obras, Professor Wiesel conecta tefilin tanto com manter a identidade judaica como a transformá-la. Em sua coleção de ensaios em 1970, Uma Geração Depois, por exemplo, ele fala sobre Shmukler, um pedinte de origem desconhecida que era considerado louco. O Professor Wiesel um dia com surpresa o viu numa sinagoga em Sighet usando tefilin; adornado em sua maneira tradicional, Shmukler pareceu “um homem diferente”.

A qualidade transformativa do tefilin surge novamente num lindo episódio relatado em Somewhere a Master, o segundo volume do Professor Wiesel relatando a história interior do movimento chassídico.

Reb Yechiel Michel de Zlotchov, um famoso mestre chassídico, tinha um filho, Wolfe, que quando jovem não era propenso a seguir os caminhos sagrados de seu pai. O comportamento do filho “deixava muito a desejar. Desperdiçava dias e noites com amigos impróprios fazendo coisas impróprias”. Parecia não haver um fim para este comportamento, até o dia do bar mitsvá de seu filho – o dia no qual um menino é pela primeira vez obrigado a cumprir o preceito do tefilin e, como neste caso, o recebe como um presente.

Antes que Reb Yechiel Michel desse ao filho os tefilin, ele os inspecionou com muito cuidado. Leu os dois pergaminhos e os recolocou em suas caixas. E de repente ele começou a chorar. As lágrimas rolavam de suas faces até as caixas com os tefilin. Este foi o momento de virada para Wolfe. As lágrimas do pai e a ocasião de receber tefilin se combinaram para transformar o garoto indisciplinado em uma pessoa correta.

O Professor Wiesel relata um segundo episódio comovente de tefilin envolvendo o mesmo mestre chassídico, Reb Yechiel Michel, que neste caso ajudou seu protegido, Naphtali de Ropshitz, “a colocar o tefilin pela primeira vez, declarando: ‘Acabo de atar a alma dele lá em cima; o nó será o último’”.

Com essas vinhetas Professor Wiesel mostra o significado por trás dos tefilin que foram tão importantes em sua própria vida.

Referências ao tefilin são feitas em todas as suas histórias. Algumas são rotina, mostrando personagens judeus religiosos ao vivo. Outras estão ligadas a crises. No The Forgotten, o protagonista, Elchanan, embora na corrida, encontra uma pausa na qual pode separar alguns minutos para colocar tefilin. No The Hostage, os tefilin têm um significado mais profundo para o protagonista, servindo como um claro sinal de sua identidade judaica. Mas é em O Testamento, um tributo aos poetas judeus russos assassinados por Stalin, que o Professor Wiesel torna o tefilin importante.

Quando o herói da história, Paltiel Kossover, um judeu religioso que após a Revolução tem planos para deixar a casa de sua família, sua mãe pergunta: “Onde estão seus tefilin?” Embora Paltiel ainda observasse mitsvot, o fato de que sua mãe continua exigindo dele “Você não vai esquecer de levá-los com você?” revela que ela tinha adivinhado sua “vida secreta” como comunista. A partir deste momento, a importância dos tefilin em manter o laço de Paltiel com a vida judaica navega através da história. Paltiel na verdade se lembra de levar consigo os tefilin.

Mas não demora muito antes que ele se esqueça de colocá-lo em um dia – e então, quando coloca, ele considerou que era tarde demais para “voltar aos meus hábitos”.
Mas os tefilin não desaparecem da sua vida. Quando um amigo pede a Paltiel para confiar os tefilin a ele – “Você não coloca mais. Vou devolver a você, prometo” – Paltiel não pode imaginar ficar sem eles. “Não, isso não. Meus filactérios e eu somos inseparáveis. Esta era a vontade de meu pai.”

Anos depois, de volta à Rússia com uma esposa e um filho pequeno, ele encontra os tefilin há muito sem uso no fundo de uma gaveta, e “tocando-os eu tremi.” Ele os tira da sacola, beija-os e os coloca como costumava fazer na sinagoga dizendo “todos os rituais tinham voltado para mim” – os tefilin redescobertos sendo o símbolo deles “todos”.

O gesto que pode mostrar o quanto Paltiel voltou é o beijo – uma maneira de demonstrar afeição pelos tefilin que, embora não listados nos guias para cumprir a mitsvá, mesmo assim é um costume para praticante sérios. Um sinal de retorno aos caminhos tradicionais, os tefilin têm uma linhagem especial para aqueles que, como Paltiel, foram considerados inimigos do estado e destinados ao aprisionamento nas cadeias russas. Sabendo o papel especial que os tefilin desempenham na vida daqueles injustamente presos, Paltiel perguntou à sua mulher: “Você conhece a história do Rebe Shneur Zalman de Liadi?”

Aqui os tefilin atuam para manter a fé em face da opressão incansável. Não importa a prisão, nenhum tirano pode impedir um judeu de ser judeu.

A história da prisão do Rebe Shneur Zalman é contada inúmeras vezes pelo Professor Wiesel, incluindo uma palestra em 1981 devotada à vida deste mestre chassídico, bem como nos parágrafos de abertura do segundo volume da autobiografia do Professor Wiesel, e O Mar Nunca Está Cheio. Nesses contos, a ênfase está num famoso episódio no qual o guarda da prisão procura ajuda do Rebe para entender uma passagem bíblica enigmática: “Como”, o guarda pergunta ao sábio, “D’us pode perguntar a Adam e Eva ‘onde estão vocês?’ Como pode Aquele que é onisciente não saber por trás de qual arbusto Adam está escondido?”

O Professor Wiesel continua a descrever a cena: “Então o rabino sorriu e respondeu: ‘O Eterno, bendito seja Seu nome, sabia; era Adam que não sabia… o real significado da pergunta que D'us fez a Adam… Onde você fica neste mundo? Qual é o seu lugar na história? O que você tem feito com sua vida, Adam?’”

Primeiro perguntada a Adam, o questionamento é endereçado a todos; ninguém pode se esconder de ser responsável perante D'us por aquilo que tem feito com os seus dias.

Mas em O Testamento, a prisão de Rabi Shneur Zalman tem a ver com enfrentar o sofrimento de uma sentença de prisão por um crime capital. Como relata Paltiel: Na prisão [o Rebe] foi visitado pelo acusador, alguns dizem que pelo próprio Czar, e ele lhes inspirou tamanho respeito, reverência, que decidiram libertá-lo. E a tradição chassídica diz especificamente que quando ele recebeu seus importantes visitantes estava usando seus filactérios.

Além de ser o arquétipo do retorno à tradição judaica, aqui os tefilin atuam para manter a fé em face da opressão incansável. Não importa a prisão, nenhum tirano pode impedir um judeu de ser judeu. A devoção de Rebe Shneur Zalman aos tefilin mesmo em circunstâncias tão graves carregam um eco da devoção do próprio Professor Wiesel aos tefilin em Auschwitz – ou seja, numa prisão de um tirano muito mais cruel e impiedoso.

Como a maioria dos judeus observantes, o dia a dia do Professor Wiesel depois da guerra incluía um ritual matinal de usar tefilin. Porém era uma vida cada vez mais sujeita a exigências e obrigações mundo afora.

Para aqueles de nós que passam a maior parte do tempo baseados num único lugar, a disciplina diária de colocar tefilin não é terrivelmente difícil. Mas como o Professor Wiesel viajou incessantemente no decorrer de cinco décadas, e sua fama cada vez maior complicava a logística de ir de um lugar para outro, a disciplina diária de colocar tefilin apresentava um grande desafio.

Seu colega Yoel Rappel relata que, numa viagem apressada ao Muro Ocidental em Jerusalém, 10 minutos se transformaram em meia hora. A visita ao Muro era para ser uma visita pessoal e privada. Mas durante os últimos 30 anos o Professor Wiesel não era mais um indivíduo privado. [Apesar disso], todos que naquela manhã o viram rezar e colcocar tefilin no Cotel irão se lembrar da cena como uma expressão da supremacia do espírito judaico”.

Disposto a tudo para cumprir a mitsvá do tefilin na melhor maneira, o Professor Wiesel deu os passos para tornar a disciplina diária mais fácil, adquirindo muitos pares de tefilin para ter à mão nas várias cidades que visitava regularmente: Boston, Paris e Jerusalém (além de claro, na sua casa em Nova York).

Rabi Ariel Burger estava encontrando Professor Wiesel no seu escritório em Boston quando chegou um pacote, e Rabi Burger lembra da alegria especial que o Professor Wiesel demonstrou enquanto desembrulhava o novo par de tefilin que estava designado para ser colocado no escritório. E ainda, desafios imprevistos estavam para chegar. Este foi o caso quando, em 14 de outubro, 1986 (o dia após Yom Kipur).

O Professor Wiesel recebeu a notícia de que havia sido escolhido para receber o Prémio Nobel da Paz daquele ano. Como a diferença de tempo entre Oslo (onde estava baseado o comitê do Nobel da Paz) e Nova York (onde Wiesel residia), a chamada do Comitê Nobel chegou às 4h30 da manhã. A partir daquela hora, telefonemas, visitantes e pedidos para entrevistas se multiplicaram. Mas algumas prioridades eram mantidas em mente. O próprio Professor Wiesel descreve a cena:

“Cerca de 6 da manhã o porteiro chama novamente: ‘O que devo fazer com a NBC?’ Então: ‘E a ABC? E a CBS?’ O apartamento agora parece m campo de batalha. Ao meu redor estão técnicos, engenheiros de som, iluminadores, repórteres, e produtores que parecem estar caminhando uns sobre os outros. O telefone não para de tocar… Às onze horas ainda há repórteres caminhando pela entrada. De repente me lembro: Ainda não recitei minhas preces matinais. Tranco-me num quarto vazio e coloco meus tefilin. (All Rivers Run to the Sea, pág. 258).

Atirado ao meio da tempestade no mundo, o Professor Wiesel continuou, em meio à comoção, a apegar-se à disciplina diária de tefilin.

Viagens e celebridade trouxeram enormes desafios, mas a idade trouxe um ainda maior. O livro final do Professor Wiesel, suas memórias Open Heart, fala sobre a cirurgia no coração que ele enfrentou em junho de 2011, bem como reflexões sobre sua vida e carreira que foram inspiradas por tamanho confronto com a mortalidade. O Capítulo começa: “E D'us em tudo aquilo?” desafiando novamente o enigmático papel de D'us em relação ao Holocausto.

Logo após, o Professor Wiesel escreve: “No terceiro dia [após a cirurgia no coração], senti necessidade de recitar minhas preces diárias. Pedi a minha esposa Marion para levar meu talit e tefilin”. O fluxo interminável de dizer “D'us está em toda parte” para honrar o mandamento do tefilin, apesar das dificuldades trazidas pela cirurgia, mostra o compromisso do Professor Wiesel acima de tudo. Na verdade, durante sua recuperação, o Professor Wiesel pediu que a conexão que estava levando medicação ao seu corpo em processo de cura fosse mudado do seu braço esquerdo para o direito, apesar do desconforto que isso iria ocasionar, para que ele pudesse colocar tefilin sobre seu braço esquerdo como sempre fizera.

Sua preocupação por cumprir este mandamento diário, mesmo quando circunstâncias o tornavam inconveniente, iam além dele mesmo. Testemunhei isso quando visitei o Professor Wiesel para falar com ele sobre minha dissertação nos anos de 1980. A certa altura da nossa reunião, o Professor Wiesel desculpou-se para atender um telefonema que era de seu filho adolescente, Elisha, que estava sofrendo de um grave caso de catapora. O telefonema consistiu no Professor Wiesel gentilmente dizendo a Elisha para colocar tefilin, apesar do desconforto momentâneo. “Apenas coloque-o por um minuto… Sim, eu sei que dói. Mas você não precisa ficar com ele por mais de um minuto…  Sim, sei que a pele ali está sensível. Portanto encontre um local que esteja menos sensível”.

Ouvindo apenas metade da conversa, não pude deixar de admirar a paciente insistência do Professor Wiesel, tentando convencer o filho que passava por um compreensível aborrecimento, na combinação de simpatia e firme perseverança. Na hora eu estava simplesmente ali, ocupando-me com minha dissertação sobre como mostrar que, sob meu ponto de vista, a conversa ao telefone podia durar até quando fosse necessário. Por outro lado, senti-me honrado – ao mesmo tempo humilhado – por meu mestre fazer uma conversa tão pessoal na minha presença, embora não fosse nem a primeira nem a última ocasião dessas.

Mas eu não tinha contexto no qual avaliar a determinação do Professor Wiesel sobre tefilin: o regime diário, os múltiplos conjuntos de tefilin à mão em cidades do mundo inteiro – e, em Auschwitz, o despertar antes do amanhecer e arriscar sua vida para observar este mandamento. Certamente, a conversa que eu podia ouvir pela metade ocorreu entre um pai amoroso e um filho adolescente. Centenas de outras como essa sem dúvida ocorreram durante estes anos, sobre assuntos muito variados e outros objetivos. Mas esta conversa focada em tefilin, ouvida há cerca de 30 anos, agora é iluminada pelo meu conhecimento do notável compromisso do Professor Wiesel através dos anos, em Auschwitz e em toda parte.

“O que ele disse é verdade. Mas sua verdade não é minha verdade”. A reação extraordinária do Professor Wiesel ao desafio de um sobrevivente de Auschwitz à minha pesquisa sobre calendários da época da guerra colocam minha pergunta em ação. Eu queria fazer justiça na maneira que o Professor Wiesel transmitiu sua verdade para mim: sua narrativa dele colocando tefilin em Auschwitz.

Embora eu tentasse seguir aquela linha e elaborar sobre as maneiras nas quais tefilin era ricamente ligado à vida e obra do professor Wiesel, na natureza de sua resposta à minha dúvida é notável em vários aspectos. Primeiro, face ao formidável desafio à premissa do meu projeto de calendário, o Professor Wiesel validou minhas conclusões. Vendo que eu estava abalado pelas palavras de um sobrevivente que parecia contradizer a própria base da minha pesquisa, o Professor Wiesel partilhou comigo a experiência que confirmou minhas descobertas. Se alguém pudesse encontrar tempo, coragem e auto-negação – “mesmo enquanto o mundo estava abandonando-os e [tinha] entregado à morte” – para colocar tefilin em Auschwitz, alguém podia encontrar uma solução semelhante para compor um calendário judaico a partir do nada.

Mas suas palavras eram exatas. O Professor Wiesel não me deu seu apoio dizendo que aquilo que o sobrevivente de Auschwitz disse era falso ou incorreto. Na verdade, ele começou afirmando o testemunho do outro sobrevivente: “Aquilo que ele disse é verdadeiro.”

O Professor Wiesel podia dizer isso porque sabia que a experiência daqueles obrigados a suportar Auschwitz variava muito, moldada por fatores no campo bem por fatores – como origem, caráter e temperamento – que tinham precedido o aprisionamento. Portanto aquilo que o sobrevivente disse era verdade, era um reflexo exato de sua experiência. Tinha de ser levado em conta. Aquilo dizia: “sua verdade não era minha verdade”. Sua verdade, verdadeira como era, não podia, como o Professor Wiesel deixou claro, representar todos os sobreviventes judeus no campo. Porque alguns prisioneiros não podiam aceitar, sob nenhumas circunstâncias, “interromper uma tradição de milênios” de colocar tefilin. Portanto a verdade do Professor Wiesel, tefilin em Auschwitz  deixou sua marca em seu braço muito depois que as barracas do campo foram esvaziadas.

Sou agradecido ao Professor Alan Berger, que mais cedo neste ano participou do simpósio memorial de Elie Wiesel na Universidade Atlantic da Flórida, quando fui convidado a apresentar essas declarações. Levando em consideração o fato de que geralmente a pessoa não coloca tefilin no Shabat, Rosh Hashanah, Yom Kipur e Sucot, aquilo ainda teria acrescentado 150 dias. Pode ser que Rabi Lau lembrou “40 dias” porque na Torá, 40 dias têm fortes conotações. E é este tipo de conotação que Rabi Lau, que quando criança foi prisioneiro em Auschwitz e Buchenwald, associa com o ato de colocar tefilin em Auschwitz.