Em fevereiro de 2009 (no primeiro dia do mês de Adar), fui convidado a proferir uma palestra na Universidade Atlântica da Florida sobre um tópico que eu estava pesquisando: “Um novo índice de tempo: “Calendários e o Holocausto”.
No esconderijo, em guetos, mesmo nos campos de concentração, tais calendários foram feitos para equipar os judeus com as informações necessárias para observar o Shabat e as Festas Judaicas, bem como yahrzeits e mesmo os idas de jejum, sob qualquer forma possível.
Sob condições opressivas, a produção de calendários desse tipo tomou um extraordinário ato de determinação. No entanto, existem cerca de 30 calendários desse tipo. Eu estava trabalhando em um livro sobre o tema, e minha palestra na FAU naquela quarta-feira à tarde foi uma das minhas primeiras tentativas em falar sobre estes preciosos esconderijos desses artefatos e compartilhar as histórias por trás deles.
Até onde lembro, a apresentação estava indo muito bem. Mas durante a sessão de perguntas e respostas que se seguiu, um cavalherio levantou-se, identificou-se como um sobrevivente de Auschwitz, e afirmou que fazer cakendários desse tipo em Auschwitz era impossível. Por que? Por que –continuou – um prisioneiro judeu desse infame campo de concentração tinha tempo e energia apenas para trabalhar, comer e dormir. As condições subumanas eram inacreditáveis, e era tudo o que alguém tinha capacidade de fazer para simplesmente sobreviver. Até mesmo somente pensar em fazer algo além do que era básico estava fora de questão. Ele falou com firmeza e determinação.
De alguma forma, eu não esperava esse desafio e me senti intimidado pela autoridade de sua experiência. Eu recuei na evidência que eu havia acumulado. Outros sobreviventes na audiência ponderaram, dizendo que, apesar da opressão, algumas pessoas poderiam fazer mais do que simplesmente sobreviver. Senti gratidão pela sua intervenção, mas, à medida que o programa da tarde chegava ao seu final, eu não tinha certeza de como dar sentido à afirmação do sobrevivente de Auschwitz.
Como tive a oportunidade de me encontrar com meu professor, Elie Wiesel, em seus estudos em nova York semanas mais tarde, descrevi a ele o que ocorreu durante a minha conferência na Faculdade de Miami e pedi seu conselho. Isso era típico. Em nossas conversas telefônicas e encontros regulares, eu pedia seu conselho sobre perguntas que surgiam em minha pesquisa e escritos, mas também sobre questões que tinham a ver com a vida: a observância as festas judacaicas, das rezas, crianças, a morte prematura de amigos queridos - e muito mais.1
O professor Wiesel me ouviu e respondeu: "O que ele disse é verdade. Mas a verdade dele não era minha verdade. Coloquei Tefillin em Auschwitz todas as manhãs. Eu provavelmente não deveria ter feito isso. Mas eu fiz."2
Os detalhes de como o professor Wiesel conseguiu colocar tefillin em circunstâncias tão perigosas foi revelada em seus escritos e entrevistas. Ele escreveu em um artigo de 1982:
Eu não sei como, mas alguém conseguiu contrabandear um par de tefillin subornando um kapo com dezenas de rações de pão e margarina. Só sei que todas as manhãs, muitos de nós nos levantávamos antes da chamada para realizar esta mitsvá. A lei judaica não teria exigido isso naquelas circunstâncias. Uma pessoa não é obrigada a sacrificar sua vida pela colocação de tefilin. E, no entanto, judeus que nem se conheciam, que talvez nem falassem a mesma língua, se encontravam todas as manhãs ao amanhecer, se expondo a incontáveis perigos arriscando suas próprias vidas a fim de não interromperem uma tradição milenar.
Eu não entendo isso e jamais irei entender de onde se tirava tanta coragem e abnegação, mesmo enquanto o mundo nos abandonava nos entregando à morte.3
O Professor Wiesel estabeleceu uma descrição semelhante em sua autobiografia de 1995, “All Rivers Run to the Sea”, enfatizando o significado que a colocação de seu tefillin teria para o pai dele:
“Pela manhã meu pai e eu levantávamos antes do alerta geral e íamos a um bloco próximo onde alguém trocava uma dúzia de rações de pão por um par de filactérios (tefillin). Nós os amarrávamos em torno de nosso braço esquerdo e da cabeça, pronuncíavamos silenciosamente as bênçãos e passávamos para a próxima pessoa. Uma dúzia de prisioneiros sacrificavam o seu sono, e às vezes suas rações de pão ou café para realizar a mitsvá, o mandamento de colocar tefilin. Sim, praticávamos o judaísmo mesmo em um campo de extermínio. Eu recitava minhas preces todos os dias. No sábado cantava cançnoes de Shabat no trabalho, em parte sem dúvida, para agradar meu pai, para mostrar a ele que eu estava determinado a permancer judeu mesmo no reino maldito.4”
O compromisso do professor Wiesel em honrar este mandamento, mesmo em circunstâncias tão adversas, precedeu a provação dos campos. Nas primeiras páginas de suas memórias “Noite”, ele faz uma referência a colocação de tefillin enquanto conduzia suas orações habituais na manhã anterior ao início das deportações dos judeus de Sighet.
“Às oito horas da manhã, o cansaço se instalou em nossas veias, nossos membros, nossos cérebros, como chumbo derretido. Eu estava no meio das orações quando de repente houve gritos nas ruas. Eu desenrolei rapidamente meus tefilin e corri para a janela. A polícia húngara entrou no gueto e estava gritando na rua nas proximidades.5”
Essa é uma das várias cenas em que o agravamento da crise interrompia a atividade diária normal. No entanto, vemos como o Professor Wiesel continuou com rituais diários, incluindo a prática habitual de Tefillin durante as orações matinais, até os últimos momentos da vida comunitária regular. Além disso, o rompimento da comunidade não acabou com esses compromissos, pois, como o professor Wiesel observou em uma leitura de 1970, ele havia assegurado de levar seus tefillin com ele no momento da deportação:
“Nós judeus húngaros chegamos em Auschwitz em 1944. Eu era jovem e inocente. Em minha mala tinha meus tefilin, nem mesmo um talit… Eu só tinha tefillin, um sidur [livro de orações] e alguns outros seforim [livros sagrados].6 ”
Terminada a guerra, seu compromisso com o tefillin permanecia ocupando lugar central. De fato, o diário do professor Wiesel, iniciado em junho de 1945, enquanto se recuperava em um "esplêndido castelo em Écouis [França]", refere-se a colocação de tefillin logo nas primeiras linhas do diário: “Fui ver o diretor em seu escritório e tímidamente pedi uma caneta e um papel. Comecei um jornal privado: "Depois da guerra, pela graça de D’us, abençoado seja Seu Nome, aqui estou eu na França. Tão distante. Sozinho. Esta manhã, coloquei meu próprio Tefillin pela primeira vez em um longo tempo."7
O que são tefilin? (também conhecidos como filactérios)?8 Duas caixas de couro com tiras que os homens judeus tradicionalmente colocam nos dias da semana, conforme ordenado pela Torá e elaborado pelos sábios. As caixas contêm pergaminhos nos quais são escritos, por um escriba habilidoso e piedoso, as quatro passagens da Torá que se referem ao Tefillin.9 As tiras são usadas para afixar as caixas no antebraço (oposto ao coração) e na cabeça, acima do couro cabeludo (perto do cérebro). A proximidade com o coração e a mente é entendida como uma maneira de vincular as emoções com o intelecto, permitindo que elas atuem de forma harmoniosa. As tiras do braço se estendem à mão, que simboliza o domínio da ação, e que também deve estar sintonizada com o pensamento e a emoção.
Os tefillin possuem mais associações. As passagens incluídas no tefillin contêm o Shema ("Ouça, Ó Israel: D’us é o nosso Senhor, D’us é um"), a oração central do judaísmo invocando a crença na Unidade e nossa submissão a Sua vontade. Outras passagens no tefillin enfatizam o êxodo milagroso do Egito (e a escravidão a que os judeus foram submetidos), para se tornarem servos leais de D’us.
Como as passagens não são apenas lidas, mas são usadas no corpo de alguém, elas oferecem uma forma única de memória tátil, uma disciplina diária de lembrança cinética de princípios fundamentais da fé e da experiência judaicas - uma lembrança que pode ocorrer mesmo, ou talvez especialmente, em Auschwitz.”
O professor Wiesel era um dos vários judeus cujo compromisso com o mandamento de tefillin nos campos era extraordinário. Os registros escritos e orais descrevem sobre como os homens realizaram a mitsvá do Tefillin em uma variedade de campos de trabalho, de concentração e até mesmo da morte: levantando-se bem antes do amanhecer e aguardando em longas filas; vestindo-os apenas brevemente, para que outros também pudessem ter a oportunidade; clandestinamente colocando-os enquanto marchavam em esquadrões de trabalho; pagando com rações de alimentos pela oportunidade de usar ou adquirir o tefillin; planejando estratégias e esconderijos para que o inimigo não descobrisse os objetos proibidos. Histórias são contadas sobre os milagres envolvidos na aquisição, preservação e uso do tefillin, e de atribuir a sua sobrevivência ao desempenho desta mitsvá específica.
Há também depoimentos sombrios dos torturados ou assassinados quando foram apanhados colocando tefilin. Outros contam com angústia sobre os montes de tefilin que foram confiscados, um sinal do assalto cruel e implacável do inimigo sobre a vida judaica e um memorial improvável para os judeus que, com a ameaça de morte, não podiam tocar nem mesmo se aproximar dos artigos sagrados.10
Apesar dos riscos e dificuldades de colocar tefilin durante o Holocausto, a demanda foi muitas vezes superior do que a oferta. Em um campo de trabalho, por exemplo, um único par de tefilin teve que atender a cerca de 500 homens, de modo que o tefilin da cabeça e da mão, geralmente colocados simultaneamente, foram divididos para que todos pudessem ter uma chance. Na verdade, por causa das circunstâncias cruéis, os rabinos em certos casos determinaram que a forma usual de realizar a mitsvá poderia ser modificada para tornar possível a sua realização.
E mesmo naqueles casos em que o tefilin não podia ser encontrado em nenhum lugar, os detentos às vezes inventavam maneiras de manter uma conexão com a prática diária. Filip Muller relata que um judeu polonês com o nome de Fischel, chefe de uma unidade Sonderkommando em Auschwitz, não possuía tefillin, mas "imitava o ritual" de colocá-los antes das orações. Eventualmente ele adquiriu um par e os usou diariamente. Sua dedicação à oração e ao ritual nesse mundo sórdido foi tal que ele inspirou outros membros de Sonderkommando a se juntarem a ele.11
Em certo sentido, o desempenho da mitsvá falou por si mesmo. Mas alguns rabinos, eles próprios sobreviventes do campo, tentaram explicar o significado de realizar essa mitsvá particular em condições tão atrozes. O rabino Tzvi Meisels, cuja prisão em Auschwitz-Birkenau se sobrepunha a do professor Wiesel, concluiu que não havia meio de compreender os acontecimentos em que alguém estava sendo obrigado a viver - nenhuma explicação do por quê ter sido imposto aos judeus sofrimento tão profundo – além do fortalecimento de sua fé.
A Mitsvá do Tefilin
Cumprir a mitsvá do tefilin fala de aceitação apesar dessa falta de entendimento, e assim “fortaleceu corações partidos, para que não passássemos um momento sem fé perfeita, mesmo quando não tínhamos entendimento.12
Rabi Yehoshua Aronson considerava a importância dessa mitsvá diferentemente nos campos. As passagens da Torá no tefilin referem-se a D'us tirando os filhos de Israel para fora da escravidão no antigo Egito. A partir daí, os tefilin foram o símbolo daquela liberdade. As correias do tefilin também possuem vários nós ritualmente prescritos – nós que, nas devastadoras circunstâncias difíceis dos campos, serviam como lembretes, segundo Rabi Aronson, do eterno amor de D'us por Seu povo, com Ele estando conectado ou amarrado a eles.13
Em muitas das suas obras, Professor Wiesel conecta tefilin tanto com manter a identidade judaica como a transformá-la. Em sua coleção de ensaios em 1970, Uma Geração Depois, por exemplo, ele fala sobre Shmukler, um pedinte de origem desconhecida que era considerado louco. O Professor Wiesel um dia o surprendeu em uma sinagoga de Sighet usando tefilin; adornado em sua maneira tradicional, Shmukler pareceu “um homem diferente”.14 A qualidade transformativa do tefilin surge novamente num lindo episódio relatado em Somewhere a Master, o segundo volume do Professor Wiesel relatando a história interior do movimento chassídico. Reb Yechiel Michel de Zlotchov, um famoso mestre chassídico, tinha um filho, Wolfe, que quando jovem não era propenso a seguir os caminhos sagrados de seu pai. O comportamento do filho “deixava muito a desejar. Desperdiçava dias e noites com amigos impróprios fazendo coisas impróprias.” Parecia não haver um fim para este comportamento aberrante, até o dia do bar mitsvá de seu filho – o dia no qual um menino é pela primeira vez obrigado a cumprir o preceito do tefilin e, neste caso, o recebe como um presente.
Antes que Reb Yechiel Michel desse ao filho os tefilin, ele os inspecionou com muito cuidado. Leu os dois pergaminhos e os recolocou em suas caixas quadradas. E de repente ele começou a chorar. As lágrimas rolavam de suas faces até as caixas com os tefilin. Este foi o momento da virada para Wolfe.15 As lágrimas do pai e a ocasião de receber tefilin se combinaram para transformar o garoto indisciplinado numa pessoa correta. O Professor Wiesel relata um segundo episódio comovente de tefilin envolvendo o mesmo mestre chassídico, Reb Yechiel Michel, que neste caso ajudou seu protegido, Naphtali de Ropshitz, “a colocar tefilin pela primeira vez, declarando: ‘Acabo de atar a alma dele lá em cima; o nó será duradouro.’”16
Com essas vinhetas o Professor Wiesel mostra o significado por trás dos tefilin que foram um acessório permanente em sua própria vida.
Referências aos tefilin estão espalhados em todos seus romances. Algumas são rotina, mostrando personagens judeus religiosos ao vivo. Outras estão ligadas a crises. No The Forgotten, o protagonista, Elchanan, embora na corrida, encontra uma pausa na qual pode separar alguns minutos para colocar tefilin. No The Hostage, os tefilin têm um significado mais profundo para o protagonista, servindo como um claro sinal de sua identidade judaica. Mas é em O Testamento, um tributo aos poetas judeus russos assassinados por Stalin, que o Professor Wiesel torna o tefilin central.17 Quando o herói da história, Paltiel Kossover, um judeu religioso que após a Revolução tem planos para deixar a casa de sua família, sua mãe pergunta: “Onde estão seus tefilin?” Embora Paltiel ainda observasse mitsvot, o fato de que sua mãe continuasse exigindo dele “Você não vai esquecer de levá-los com você?” revela que ela tinha adivinhado sua “vida secreta” como comunista.18 A partir deste momento, a importância dos tefilin em manter o laço de Paltiel com a vida judaica navega através da história. Paltiel na verdade se lembra de levar consigo os tefilin.
Mas não demora muito antes que ele se esqueça de colocá-lo em um dia – e então, quando coloca, ele considerou que era tarde demais para “voltar aos meus hábitos.”19 Mas os tefilin não desaparecem da sua vida. Quando um amigo pede a Paltiel para confiar os tefilin a ele – “Você não colocar mais. Vou devolver a você, prometo” – Paltiel não pode imaginar ficar sem eles. “Não, isso não. Meus filactérios e eu somos inseparáveis. Esta era a vontade de meu pai.”20
Anos depois, de volta à Rússia com uma esposa e um filho pequeno, ele encontra os tefilin há muito sem uso no fundo de uma gaveta, e “tocando-os eu tremi.” Ele os tira da sacola, beija-os e os coloca como costumava fazer na “Casa de Estudo,” dizendo “todos os rituais tinham voltado para mim” – os tefilin redescobertos sendo o símbolo deles “todos”.21
O gesto que pode mostrar o quanto Paltiel voltou é o beijo – uma maneira de demonstrar afeição pelos tefilin que, embora não listados nos guias para cumprir a mitsvá, mesmo assim é costumeiro para praticante sérios. Um sinal de retorno aos caminhos tradicionais, os tefilin têm uma linhagem especial para aqueles que, como Paltiel, foram considerados inimigos do estado e destinados ao encarceramento nas prisões russas. Sabendo o papel especial que os tefilin desempenham na vida daqueles injustamente presos, Paltiel perguntou à sua mulher: “Você conhece a história do Rebe Shneur Zalman de Liadi?”
A história da prisão do Rebe Shneur Zalman é contada inúmeras vezes pelo Professor Wiesel, incluindo uma palestra em 1981 devotada à vida deste mestre chassídico, bem como nos parágrafos de abertura do segundo volume da autobiografia do Professor Wiesel, e o Mar Nunca Está Cheio. Nesses contos, a ênfase está num famoso episódio no qual o guarda da prisão procura ajuda do Rebe para entender uma passagem bíblica enigmática: “Como”, pergunta o guarda ao sábio, “D’us pode perguntar a Adam e Eva ‘onde vocês estão?’ Como pode Aquele que é onisciente não saber por trás de qual arbusto Adam está escondido?” Como relata o Professor Wiesel: “Então o rabino sorriu e respondeu: ‘O Eterno, bendito seja Seu nome, sabia; era Adam que não sabia… o real significado da pergunta que D'us fez a Adam… Onde você fica neste mundo? Qual é o seu lugar na história? O que você tem feito com sua vida, Adam?’” Primeiro perguntada a Adam, a questão é endereçada a todos; ninguém pode se esconder de ser responsável perante D'us por aquilo que tem feito com os seus dias.
Mas em O Testamento, a prisão de Rabi Shneur Zalman tem a ver com enfrentar o sofrimento de uma sentença de prisão por um crime capital. Como relata Paltiel: Na prisão [o Rebe] foi visitado pelo acusador, alguns dizem que pelo próprio Czar, e ele lhes inspirou tamanho respeito, reverência, que decidiram libertá-lo. E a tradição chassídica diz especificamente que quando ele recebeu seus importantes visitantes estava usando seus filactérios.22
Além de ser o arquétipo do retorno à tradição judaica, aqui os tefilin atuam para manter a fé em face da opressão incansável. Não importa a prisão, nenhum tirano pode impedir um judeus de ser judeu. A devoção de Rebe Shneur Zalman aos tefilin mesmo em circunstâncias tão graves carregam um eco da devoção do próprio Professor Wiesel aos tefilin em Auschwitz – ou seja, numa prisão de um tirano muito mais cruel e impiedoso.
Como a maioria dos judeus observantes, o dia a dia do Professor Wiesel depois da guerra incluía um ritual matinal de colocar tefilin. Porém era uma vida cada vez mais sujeita a exigências e obrigações mundo afora. Para aqueles de nós que passam a maior parte do tempo baseados num único lugar, a disciplina diária de colocar tefilin não é terrivelmente difícil. Mas como o Professor Wiesel viajava incessantemente no decorrer de cinco décadas, e sua fama cada vez maior complicava a logística de ir de um lugar para outro, a disciplina diária de colocar tefilin apresentava um grande desafio. Seu colega Yoel Rappel relata que, numa viagem apressada ao Muro Ocidental em Jerusalém, 10 minutos se transformaram em meia hora. A visita ao Muro era para ser “uma visita pessoal e privada. Mas durante os últimos 30 anos o Professor Wiesel não era mais um indivíduo privado. [Apesar disso], todos que naquela manhã o viram rezar e colocar tefilin perto do Muro Ocidental vão se lembrar disso como uma expressão da supremacia do espírito judaico.”
Disposto a rudo para cumprir a mitsvá do tefilin da melhor maneira, o Professor Wiesel deu os passos para tornar a disciplina diária mais fácil, adquirindo muitos pares de tefilin para ter à mão nas várias cidades que visitava regularmente: Boston, Paris e Jerusalém (além claro, em sua casa em Nova York).
Rabi Ariel Burger estava encontrando Professor Wiesel no seu escritório em Boston quando chegou um pacote, e Rabi Burger lembra da alegria especial que o Professor Wiel demonstrou enquanto desembrulhava o novo par de tefilin que estava designado para ser colocado no escritório.
E ainda, desafios imprevistos estavam para chegar. Este foi o caso quando, em 14 de outubro, 1986 (o dia após Yom Kipur), o Professor Wiesel recebeu a notícia de que havia sido escolhido para receber o Prêmio Nobel da Paz daquele ano. Com a diferença de horário entre Oslo (onde estava baseado o comitê do Nobel da Paz) e Nova York (onde Wiesel residia), a chamada do Comitê Nobel chegou às 4h30 da manhã. A partir daquela hora, telefonemas, visitantes e pedidos para entrevistas se multiplicaram. Mas algumas prioridades foram mantidas em mente. O próprio Professor Wiesel descreve a cena: Cerca de 6 da manhã o porteiro chama novamente: “ O que devo fazer com a NBC?” Então: “E a ABC? E a CBS?”... O apartamento agora parece m campo de batalha. Ao meu redor estão técnicos, engenheiros de som, iluminadores, repórteres, e produtores que parecem estar caminhando uns sobre os outros. O telefone não para de tocar… Às onze horas ainda há repórteres esperando no corredor de entrada. De repente me lembrei: Ainda não recitei minhas preces matinais. Tranco-me num quarto vazio e coloco meus tefilin. (All Rivers Run to the Sea, pág. 258).
Atirado ao meio da tempestade no mundo, o Professor Wiesel continuou, em meio à comoção, a apegar-se à disciplina diária de tefilin. Viagens e celebridade trouxeram enormes desafios, mas a idade trouxe um ainda maior. O livro final do Professor Wiesel, suas memórias Open Heart, narra a cirurgia de coração aberto a qual teve que se submeter em junho de 2011, bem como reflexões sobre sua vida e carreira que foram inspiradas por tamanho confronto com a mortalidade. O Capítulo 22 começa: “E D'us em tudo aquilo?” desafiando novamente o enigmático papel de D'us em relação ao Holocausto.
Logo após, o Professor Wiesel escreve: “No terceiro dia [após a cirurgia no coração], senti necessidade de recitar minhas preces diárias. Pedi [a minha esposa] Marion para levar meu talit e tefilin.”23 O fluxo interminável de dizer “D'us está em toda parte” para honrar o mandamento do tefilin, apesar das dificuldades trazidas pela cirurgia, mostra o compromisso do Professor Wiesel acima de tudo. Na verdade, durante sua recuperação, o Professor Wiesel pediu que a incisão que conectava o tubo que estava levando medicação ao seu corpo em processo de cura fosse mudada de seu braço esquerdo para o direito, apesar do desconforto que isso iria causar, para que ele pudesse colocar tefilin sobre seu braço esquerdo como sempre fizera.24
Sua preocupação por cumprir este mandamento diário, mesmo quando circunstâncias o tornavam inconveniente, iam além dele mesmo. Testemunhei isso quando visitei o Professor Wiesel para falar com ele sobre minha dissertação em meados de 1980. A certa altura da nossa reunião, o Professor Wiesel desculpou-se para atender um telefonema, que era de seu filho adolescente, Elisha, que estava sofrendo de um grave caso de catapora. O telefonema consistiu no Professor Wiesel dizer gentilmente a Elisha para colocar tefilin, apesar do desconforto momentâneo. “Apenas coloque-o por um minuto… Sim, eu sei que dói. Mas você não precisa ficar com ele por mais de um minuto… Sim, sei que a pele ali está sensível. Portanto encontre um local que esteja menos sensível.”
Ouvindo apenas metade da conversa, não pude deixar de admirar a paciente insistência do Professor Wiesel, tentando convencer o filho que passava por um compreensível aborrecimento, ao combinar compaixão e firme perseverança. Na hora eu estava simplesmente ali, ocupando-me com minha dissertação sobre como mostrar que, sob meu ponto de vista, a conversa ao telefone poderia durar o quanto fosse necessário. Em outro nível, eu estava honrado – e envergonhado – por meu mestre fazer uma conversa tão pessoal na minha presença, embora não fosse nem a primeira nem a última dessas ocasiões.
Mas eu não tinha contexto no qual avaliar a determinação do Professor Wiesel sobre tefilin: o regime diário, os múltiplos conjuntos de tefilin à mão em cidades do mundo inteiro – e, em Auschwitz, o despertar antes do amanhecer e arriscar sua vida para observar este mandamento. Com certeza, a conversa que eu pude ouvir pela metade ocorreu entre um pai amoroso e um filho adolescente. Centenas de outras como essa sem dúvida ocorreram durante estes anos, sobre assuntos muito variados e outros objetivos. Mas esta conversa focada em tefilin, ouvida há cerca de 30 anos, agora é iluminada pelo meu conhecimento do notável compromisso do Professor Wiesel através dos anos, em Auschwitz e em toda parte.
“O que ele disse é verdade. Mas sua verdade não é a minha verdade.” A reação extraordinária do Professor Wiesel ao desafio de um sobrevivente de Auschwitz à minha pesquisa sobre calendários da época da guerra colocam minha pergunta em movimento. Eu queria fazer justiça na maneira que o Professor Wiesel transmitiu sua verdade para mim: sua narrativa dele colocando tefilin em Auschwitz.
Embora eu tentasse seguir aquela linha e elaborar sobre as maneiras nas quais tefilin era ricamente ligado à vida e obra do professor Wiesel, a natureza de sua resposta à minha dúvida é notável em diversos aspectos. Primeiro, face ao formidável desafio à premissa do meu projeto de calendário, o Professor Wiesel validou minhas conclusões. Vendo que eu estava abalado pelas palavras de um sobrevivente que parecia contradizer a própria base da minha pesquisa, o Professor Wiesel partilhou comigo a experiência que confirmou minhas descobertas. Se alguém pudesse encontrar tempo, coragem e auto-negação – “mesmo enquanto o mundo estava abandonando-os e [tinha] entregado à morte” – para colocar tefilin em Auschwitz, alguém podia encontrar uma solução semelhante para compor um calendário judaico a partir do nada.
Mas suas palavras eram exatas. O Professor Wiesel não me deu seu apoio dizendo que aquilo que o sobrevivente de Auschwitz disse era falso ou incorreto. Na verdade, ele começou afirmando o testemunho do outro sobrevivente: “Aquilo que ele disse é verdadeiro.” O Professor Wiesel podia dizer isso porque sabia que a experiência daqueles obrigados a suportar Auschwitz variava muito, moldada por fatores no campo bem como por fatores – como origem, caráter e temperamento – que tinham precedido o aprisionamento. Portanto aquilo que o sobrevivente disse era verdade, era um reflexo exato de sua experiência. Tinha de ser levado em conta.
Aquilo dizia: “sua verdade não era a minha verdade”. Sua verdade não podia, como o Professor Wiesel deixou claro, representar todos os sobreviventes judeus no campo. Porque alguns prisioneiros não podiam aceitar, sob nenhuma circunstância, “interromper uma tradição de milênios” de colocar tefilin. Portanto a verdade do Professor Wiesel – tefilin em Auschwitz – deixou sua marca em seu braço delgado muito depois que as barracas do campo foram esvaziadas.
Agradeço ao Professor Alan Berger, que mais cedo neste ano participou do simpósio memorial a Elie Wiesel na AtlanticUniversit,y na Flórida, quando fui convidado a apresentar essas declarações.
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