Alguns céticos perguntam: Onde na Torá – na Torá escrita – é feita referência ao espiritual, ao místico?

Um rabino muito devoto na verdade criticou-me certa vez por usar a palavra “espiritual” em minha palestras e escritos. “Espiritual”, sugeriu ele, é um conceito alheio ao Judaísmo. Por que você está permitindo que os ensinamentos de Torá sejam contaminados por ideias New Age, por essa… por esssssa coisa espiritual?!” gaguejou ele, mal conseguindo pronunciar a palavra ‘espiritual’, como se fosse um anátema.

Outros já sugeriram que professores demais atualmente foram fisgados pelo “psicologicável”, e estão substituindo pensamentos clássicos de Torá por frases modernas ou pelo menos acrescentando-as ao nosso vocabulário, em vez de confiar na linguagem que sempre foi usada pelos rabinos e eruditos.

Certa vez um jovem, obviamente um sujeito educado em yeshivá, estava incomodado pelo fato de eu estar ensinando “Cabalá”, como ele dizia, a pessoas com menos de quarenta anos de idade. “Não há uma clara proibição de estudar Torá antes dos quarenta anos de idade?” contestou ele.

Respondi perguntando se ele recita Modê Ani com seus filhos pequenos. Uma prece matinal recitada ao acordar. Nela você agradece a D'us por devolver sua alma após uma noite de sono. “É claro,” disse ele, que ensino essa prece a meus filhos.” Continuei: “E o que você diz aos seu filho quando ele pergunta o que é “nishmosi” (minha alma), onde minha alma foi durante o sono, e o que significa que minha alma está agora sendo devolvida a mim – como você explica isso ao seu filho?’

Eu estava esperando que ele não me dissesse que seus filhos não fazem essas perguntas. Porque as crianças fazem essas perguntas, e se não perguntarem há um problema. Qualquer pessoa que pense sobre essas palavras tem de perguntar o que significa alma? Aonde ela vai, e como retorna.

“Você diz ao seu filho,” perguntei, “você terá de esperar até ter quarenta anos antes para eu poder explicar a você o significado de uma alma (neshama)?…”

“E o que você diz ao seu filho quando ele recita a próxima prece, ‘Meu D'us, a alma que me deste é pura, Tua a criaste, Tu a formaste, Tu a sopraste em mim, e Tu a preservas dentro de mim.”?

Alguém sugere que não devemos entender o significado de nossas preces até completarmos 40 anos? E “diga-me, meu amigo, se não entendermos o que rezamos durante 40 anos, conseguiremos, ou estaremos interessados, em entender o significado quando chegarmos aos 40?!”

Expliquei a ele e à classe que a proibição de estudar Cabalá (mesmo que se aplique atualmente – o que exige uma discussão por si mesma) certamente não se aplica a explicar o significado de uma alma aos nossos filhos e a nós mesmos!

O alicerce básico de toda a Torá é que D'us criou o universo (o primeiro versículo em Bereshit) e deu à raça humana leis pelas quais viver. A Torá é baseada no fato de que temos um relacionamento com D'us e temos de cultivar esse relacionamento; ‘conhecer D'us, amar a D'us e ficar em reverência perante D'us” – são todas mitsvot da Torá, obrigações que todo homem, mulher e criança têm de cumprir (não com a idade… de 40, mas) a partir do bar/bat mitsvá, e a educação para esse relacionamento começa desde a mais tenra idade, a partir do nascimento e até mesmo antes.

Não, a espiritualidade não é um conceito alheio ao Judaísmo; é a essência de toda a Torá. Estabelecer um relacionamento entre o mundano e o Divino é construir uma ponte entre céu e terra – o material e o espiritual – infundindo nossa vida física com a energia Divina. “Ruchnius” é a palavra em hebraico para espiritualidade; a Torá inteira e as mitsvot foram dadas para trazer paz ao mundo – paz entre matéria e espírito, para atingir o domínio do espírito sobre a matéria (hagborot há’tzurah al há’chomer, nafsho ikker, v’gufo tofel – veja cap. 32 do Tanya).

Há duas dimensões neste processo, correspondendo às duas dimensões na Torá: O “corpo” da Torá – Talmud, Halachá (lei) – ensina os trâmites Divinos sobre como levar nossa vida, os “ques” e os “quandos”. A “alma” da Torá – o esotérico e o místico – nos ensina o espírito interior de todas as mitsvot. Como são necessários um corpo e uma alma, a fusão dos dois cria uma unidade completa.

Fomos treinados e ensinados a não ensinar cabala por si mesma, mas para ensinar os fundamentos do Judaísmo, o ABC que sempre foi conhecido pelos eruditos e líderes de Torá: ensinar sobre a alma e sua conexão com D'us. Ensinar que a Torá não é apenas um corpo de leis, um conglomerado de tradição e história, um documento de inspiração. A Torá é um rico texto espiritual que aborda os verdadeiros temas da vida. A Torá é instrução (forma da palavra “horaá”), uma luz que ilumina os caminhos da vida, falando sobre todos os nossos desafios – nosso sofrimento e júbilo, nossa infância e crescimento, nosso lar e nossa riqueza, vida e morte e tudo que está no meio, acima ou abaixo.

O Judaísmo não é apenas uma cultura e uma religião; é um projeto abrangente – e sim, um projeto espiritual – para a vida.

É por isso que a Torá ainda está conosco hoje. Não por ser mais uma constituição de lei, mas porque encerra a eternidade do Divino, o espiritual e sublime, que trancende as vicissitudes de tempo e espaço. Eterna, porém sempre profundamente relevante e atemporal.

Na verdade, este é um dos maiores desafios que enfrentamos hoje: como sentir a Torá relevante em nossa vida. Como aplicar os ensinamentos de Torá numa maneira que ressoe e seja indispensável para nós.

Mas afinal, após tantas discussões sobre as aplicações psico-espirituais do pensamento de Torá, onde há referência na Torá a estas dimensões místicas e psicológicas?

Um dos locais proeminentes na porção dessa semana Vayerá ´´que ela inicia com as palavras de D'us a Moshê:
“Eu sou D'us (Y-H-V-H). Eu Me revelei a Avraham, Yitschac e Yaacov, pelo nome de El Sha-dai, mas Meu nome, Y-H-V-H, não tornei conhecido a eles.”

Qual é a diferenca entre “El Sha-dai” e “Y-H-V-H”? E o nome Y-H-V-H não é mencionado antes quando D'us aparece aos Patriarcas?

Esses níveis diferentes de revelação Divina são obviamente místicos e espirituais por definição. e somente podem ser corretamente entendidos naquele contexto.

Até mesmo Rashi, o clássico comentarista de Torá, que explica o versículo segundo pshat (a interpretação literal), comenta aqui que D'us está dizendo a Moshê: “Eu não revelei Minha verdade quintessencial”, representada pelo nome Divino Y-H-V-H, aos Patriarcas.

O que temos aqui são claramente diferentes expressões espirituais do Divino. A verdade quintessencial de D'us expressa em Y-H-V-H em contraste com o nome El Shadai representa uma manifestação mais limitada da expressão de D'us.

O notável erudito de Torá e cabalista Rabi Menachem Emnuel Ezariah de Pano (1548-1620) e o Shaloh (1565-1630) explicam que a Torá essencialmente “fala sobre aquilo que está acima [o espiritual] e alude ao que está baixo [o físico].” Em outras palavras, a Torá é um documento espiritual que “fala em linguagem humana”. Isso não significa que o versículo não deva ser tomado literalmente (temos o axioma que “ayn mikra yotsei mi’dei pehsuto”), mas que o radical e fonte do literal está no sublime. Ou como escreve Nachmânides (o Ramban): “A Torá inteira são nomes de D'us.”

Portanto não deveria ser surpresa que haja muitas referências diretas na Torá ao espiritual, começando com a primeira descrição do ser humano, “criado à imagem de D'us”.Singular na porção dessa semana da Torá é o fato de que temos um vislumbre direto dos nomes Divinos, as diferentes manifestações da energia Divina, que geralmente está oculta em outras partes da Torá (embora toda a Torá sejam ‘nomes de D'us”).

Em resumo:
Hoje mais do que nunca estamos em desesperada necessidade da aplicação psico-espiritual da Torá a fim de demonstrar sua relevância pessoal. O comprometimento religioso deve ser vivenciado não de cor, mas com renovada vitalidade a cada dia. Isso somente é possível se permitirmos que nossas almas experimentem a tradição com uma profunda espiritualidade, e não apenas presas ao ritual mecânico de nossos corpos.

E essa espiritualidade não é apenas o domínio do buscador espiritual. Cada um de nós tem a obrigação de infundir nossos rituais com vida, paixão e vitalidade.

Que possamos todos fazer jus à interpretação do Maguid de Mezeritch de “v’chai bohem”, “e vocês viverão por elas [pelas mitsvot] – vocês tornarão as mitsvot vivas…”