Extraído da obra “Curar um Mundo Fraturado: A Ética da Responsabilidade” (To Heal a Fractured World: The Ethics of Responsibility).
Ao final de seu livro, o Rabino Chefe argumenta que criamos uma cultura da culpa, onde os cidadãos falham em assumir responsabilidade. As pessoas deveriam ser ajudadas a recuperar sua independência.
A cultura secular tende a sub-enfatizar a responsabilidade. Todo o impulso do pensamento moderno, de Marx a Freud, da neurociênccia à psicologia evolutiva, tem sido o de minar a ideia de que agimos porque assim escolhemos. O resultado é paradoxal. Por um lado nossa época proporciona aos seres humanos uma gama de escolhas sem precedentes. Ao mesmo tempo, a própria ideia de escolha se tornou opaca. Somos aquilo que somos por causa das forças econômicas, impulsos irracionais, determinismo genético, ou pela luta cega de nossos genes para se replicarem até a geração seguinte, com ou sem nosso conhecimento e permissão.
Quando as coisas dão errado, raramente é por nossa culpa. Algo ou alguém mais é o culpado: pobreza, discriminação, uma infância difícil, o sistema educacional, abuso psicológico, a mídia, o governo, pratos rápidos, ou qualquer outra forma que se encontre para se eximir da culpa. Um empregado, demitido por chegar atrasado repetidamente no trabalho, processa seus empregadores dizendo ser vítima da “síndrome do atraso crônico”.
Este tipo de cultura está baseado numa variedade de disciplinas científicas que tem nos dado uma compreensão mais profunda sobre os processos causais por trás da ação humana. Porém levado ao extremo, isso nos transforma em objetos, não em sujeitos. Tornamo-nos não “fazedores”, mas “recebedores”; passivos, não ativos. Localizando a causa de nossa condição fora de nós mesmos, nos tornamos cronicamente dependentes dos outros, sem capacidade de nos libertar da circunstância e nos tornarmos donos, não escravos, do nosso destino.
Isso não é um argumento contra a compaixão, que se coloca ao centro da visão bíblica de uma sociedade boa. O que sugere, no entanto, é que a própria compaixão deve ser guiada por um dever de ajudar a vítima a recuperar sua capacidade de ação independente.
Certa vez passei um dia na Sherborne House, um centro para jovens delinquentes em Londres. As pessoas que conheci –idade media 18 anos – tinham cometido um crime nos oito ou dez anos anteriores. Porém, de maneira alguma podiam ser chamados de maus. Tinham vindo de famílias desfeitas, com frequência abusivas. Sofreram violência, muitas vezes praticada por padrastos. Foram vítimas das circunstâncias. Seria fácil dizer que eles deveriam ter exercido o autocontrole, porém, conhecendo seus históricos familiares, era difícil ver como poderiam ter aprendido isso. Eles tinham um forte senso de moralidade; quando lhes perguntei que tipo de pai gostariam de ser quando tivessem filhos, as respostas eram comoventes e apaixonadas. Queriam dar aos filhos tudo aquilo que os pais não tinham dado a eles, especialmente tempo e cuidados. Quando perguntei à diretora do centro quais redes de apoio eles teriam quando saíssem dali, ela ficou perplexa. Não havia nenhuma.
O que é notável no Judaísmo não é apenas sua ênfase na responsabilidade, mas sua insistência em elaborar estruturas de apoio. Suas provisões de ajuda sustentam as pessoas que passam por tempos difíceis. Há um famoso provérbio africano: “É preciso uma aldeia para criar um filho.” Os jovens da Sherbone House jamais tiveram uma aldeia. Não tiveram sequer a atenção consistente dos próprios pais.
O que é notável no Judaísmo não é apenas sua ênfase na responsabilidade, mas sua insistência em elaborar estruturas de apoio. Suas provisões de ajuda sustentam as pessoas que passam por tempos difíceis. A ideia de que a forma mais elevada de caridade é encontrar um emprego para alguém fala muito sobre seu entendimento da dignidade humana – as pessoas não querem ser dependentes.
A ideia de que a forma mais elevada de caridade é encontrar um emprego para alguém fala muito sobre seu entendimento da dignidade humana – as pessoas não querem ser dependentes. Direitos são passivos, responsabilidades são ativas. Os direitos são exigências que fazemos aos outros, as responsabilidades são exigências que os outros fazem a nós. Uma cultura baseada em responsabilidade existe no modo ativo. Enfatiza dar, acima de receber; fazer, não reclamar. Direitos são resultado de responsabilidades; são secundários, não primários. Uma sociedade que não treina seus cidadãos a serem responsáveis será uma na qual, com muita frequência, os direitos de expressão serão mera retórica, honrada na falha e não na observância.
Direitos são passivos, responsabilidades são ativas. Os direitos são exigências que fazemos aos outros, as responsabilidades são exigências que os outros fazem a nós. David Baum foi um pediatra, um dos melhores da Grã-Bretanha. Ele desenvolveu novas técnicas de pediatria. Dentre elas estava “cueiros de prata”, que ele inventou para proteger bebês prematuros, e a técnica que desenvolveu para pasteurizar leite humano. Trabalhou incansavelmente para criar o Royal College de Pediatria e Saúde da Criança, tornando-se seu primeiro presidente.
Não satisfeito em confinar seu trabalho à Grã-Bretanha, ele foi ao Brasil, Etiópia e Tailândia, ajudando médicos a melhorar os níveis dos cuidados à criança. Fez o mesmo em Moscou, e como resultado se tornou amigo do Presidente Mikhail Gorbachev. Ficou bastante preocupado com o destino das crianças refugiadas durante a guerra de 1999 em Kosovo, e foi durante uma corrida de bicicleta para levantar dinheiro para construir um centro de saúde que ele sofreu o ataque cardíaco que o matou tragicamente com apenas 59 anos.
Ele costumava contar uma história que resumia sua atitude para com a vida.
Um homem idoso estava caminhando pela praia ao amanhecer quando notou um jovem apanhando estrelas-do-mar que tinham sido trazidas pela maré, e atirando-as de volta ao mar, uma por uma. Foi até ele e perguntou por que o rapaz estava fazendo aquilo. O jovem responder que a estrela-do-mar morreria se ficasse exposta ao sol da manhã.
“Mas a praia tem quilômetros de comprimento, e há milhares de estrelas-do-mar. Você não conseguirá salvar todas. Como seu esforço pode fazer alguma diferença?”
O jovem olhou para a estrela que tinha na mão e então atirou-a à segurança das ondas. “Para esta aqui,” disse, “faz uma grande diferença.”
David adorou essa história porque sabia que não temos de redimir o mundo todo de uma só vez. Fazemos isso um dia por vez, uma pessoa por vez, uma ação por vez. Uma única vida, dizem os sábios, é como um universo. Salve uma vida e você salvará o mundo. Mude uma vida e começa a mudar o mundo. D'us é todo poderoso e todo bom. Porém há injustiça neste mundo, Uma ou outra dessas declarações deve, aparentemente, ser falsa. Ou D'us não pode impedir a injustiça ou Ele pode, mas preferiu não fazê-lo. Se Ele não pode, não é Todo Poderoso. Se Ele escolheu não fazê-lo, Ele não é todo bom.
A alternativa é que não há injustiça, e aquilo que parece estar errado, segundo a nossa limitada perspectiva, na verdade está certo se olharmos a partir de um ponto de vista mais amplo ou mais a longo prazo. Estas – ou assim parece – são as únicas alternativas: negar o poder ou a bondade de D'us, ou negar a existência do mal injustificado.
A primeira opinião, de Karl Marx, diz simplesmente que não há D'us. Portanto não há motivo para esperar que a história seja outra que não a tirania do forte sobre o fraco. Este é um mundo da seleção natural de Darwin. O forte sobrevive. O fraco perece. Tudo o mais é ilusão, raciocínio otimista. Não há justiça porque não há juiz.
Contra isso, a segunda voz diz Não. D'us existe. Há um juiz, portanto há justiça, e aquilo que para nós parece injustiça não é. Aqueles que sofrem é porque estão sendo punidos pelos seus pecados. Ou talvez o sofrimento não seja um castigo pelo passado mas sim preparação para a futura virtude. Cura o nosso orgulho. Ensina a força e a coragem. Dá-nos simpatia para com aqueles que sofrem, uma simpatia que poderíamos não ter se nós próprios não sofrêssemos.
Estas são as alternativas convencionais e parece não haver outra. A primeira pertence às modernas culturas seculares. A segunda está mais associada com os dois grandes monoteísmos que se separaram do Judaísmo e foram para uma órbita independente: Cristianismo e Islamismo. O Judaísmo rejeita a ambos. Sua resposta não é difícil, mas é revolucionária.
D'us existe, portanto existe justiça. Porém é justiça divina – justiça sob a perspectiva de alguém que sabe tudo, vê tudo, e considera tudo; o universo como um todo, o tempo como um todo, o que quer dizer eternidade. Porém nós que vivemos no espaço e no tempo não podemos ver sob essa perspectiva, e se pudéssemos, isso não faria de nós seres humanos melhores, mas piores. Ser pai é se comover pelo grito de um filho. Porém se a criança está doente e precisa de remédio, nós o administramos, ficando temporariamente surdos aos seus gritos de protesto.
Um cirurgião, para fazer seu trabalho bem e com competência, deve até certo ponto se dessensibilizar aos temores e dor do paciente e considerá-lo, mesmo que por pouco tempo, como um corpo e não como uma pessoa.
Um estadista, para fazer o melhor pelo seu país, deve pesar as consequências a longo prazo e tomar decisões duras, até brutais; até mesmo enviar soldados para morrerem na guerra se necessário; pessoas serem dispensadas de empregos se a severidade econômica for necessária.
Pais, cirurgiões e políticos têm sentimentos humanos, mas os próprios papeis que ocupam significam que às vezes eles têm de deixá-los de lado se querem fazer o melhor para aqueles por quem são responsáveis. Fazer o melhor para os outros exige um certo grau de isenção, um silenciamento da simpatia, anestesia da compaixão, pois a estrada para a felicidade, saúde ou paz muitas vezes passa pela paisagem da dor, sofrimento e morte.
Se pudéssemos ver hoje como o mal leva ao bem amanhã – se pudéssemos ver sob o ponto de vista de D'us, criador de tudo – entenderíamos a justiça, mas ao custo de deixar de sermos humanos. Aceitaríamos tudo, vingaríamos tudo e ficaríamos surdos aos gritos daqueles que sofrem. D'us não deseja que deixemos de ser humanos, pois se Ele quisesse, não teria nos criado.
Nós não somos D'us. Jamais veremos as coisas sob a Sua perspectiva. A tentativa de fazê-lo significa abdicar de nossa condição humana.
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