Nós somos “a congregação de Yaacov”, “os filhos de Israel”. No entanto, foi Avraham quem começou a jornada judaica, Yitschac que estava disposto a ser sacrificado, Yossef que salvou sua família nos anos de fome, Moshê que liderou o povo do Egito e lhes ensinou as leis da Torá. Foi Yehoshua que levou o povo para a terra Prometida, foi David que se tornou seu maior rei, o Rei Shlomo que edificou o Templo, e os profetas, através dos séculos, que se tornaram a voz de D’us. O relato de Yaacov na Torá parece estar aquém dessas outras vidas, pelo menos se lermos o texto literalmente.

Ele teve relacionamentos tensos com seu irmão Essav, com suas esposas Rachel e Lea, com seu sogro Lavan e com seus três filhos mais velhos, Reuven, Shimon e Levi. Há momentos em que ele parece repleto de medo, outros em que ele age - ou pelo menos parece agir - com menos do que total honestidade. Em resposta ao Faraó diz de si mesmo: “Os dias da minha vida foram poucos e duros” (Bereshit 47:9). Isso é menos do que poderíamos esperar de um herói de fé. É por isso que muito da imagem que temos de Yaacov é filtrada através da lente do midrash, a tradição oral preservada pelos sábios.

Nessa tradição, Yaacov é tudo de bom, Essav tudo de ruim. Tinha que ser assim - argumentou Rabi Zvi Hirsch Chajes em seu ensaio sobre a natureza da interpretação midráshica, porque de outra forma acharíamos difícil extrair do texto bíblico um senso claro de certo e errado, bem e mal.

A Torá é uma obra excepcionalmente sutil, e as obras sutis tendem a ser mal compreendidas. Assim, a tradição oral tornou-se mais simples: preto e branco em vez de tons de cinza. No entanto, talvez, mesmo sem o midrash, possamos encontrar uma resposta – e a melhor maneira de fazê-lo é pensar na ideia de uma viagem.

O judaísmo trata da fé como uma jornada. Começa com a jornada de Avraham e Sara, deixando para trás “sua terra, seu lugar de nascimento e a casa de seu pai” e viajando para um destino desconhecido, “a terra que Eu te mostrarei”.

O povo judeu é definido por uma outra viagem em uma era diferente: a jornada de Moshê e os israelitas, do Egito através do deserto, para a Terra Prometida. Essa jornada é repetida monotonamente na parashá de Massê: “Eles deixaram X e acamparam em Y. Eles deixaram Y e acamparam em Z”. Ser judeu é se mover, viajar e raramente, ou nunca, estabelecer-se.

Moshê adverte o povo do perigo de se estabelecer e de considerar o status quo como garantido, mesmo em Israel: “Quando tiverem filhos e netos, e estiverem estabelecidos na terra há muito tempo, poderão tornar-se decadentes” (Devarim 4:25).

A vida como uma jornada significa esforçar-se cada dia para ser maior do que o dia anterior, individual e coletivamente.

Daí as regras de que Israel deve sempre lembrar de seu passado, nunca esquecer seus anos de escravidão no Egito, nunca esquecer que em Sucot nossos antepassados viveram em moradias temporárias, que a terra pertence a D’us e nós estamos simplesmente ali como guerim ve-toshavim de D’us, “estrangeiros e peregrinos” (Vayicrá 25:23).

Por quê? Porque ser judeu significa não estar plenamente em casa no mundo. Ser judeu significa viver dentro da tensão entre o céu e a terra, criação e revelação, o mundo que é e o mundo que somos chamados a fazer; entre o exílio e o lar, e entre a universalidade da condição humana e a particularidade da identidade judaica. Os judeus não ficam parados, exceto quando estão diante de D’us. O universo, das galáxias às partículas subatômicas, está em movimento constante, assim como a alma judaica.

Acreditamos que nós somos uma combinação instável de poeira da terra e de sopro de D’us, e isso nos obriga constantemente a tomar decisões, fazer escolhas, que nos farão crescer para sermos tão grandes quanto nossos ideais ou, se escolhermos erroneamente, nos fazer encolher como pequenas criaturas petulantes obcecadas por futilidades.

A vida como uma jornada significa esforçar-se cada dia para ser maior do que o dia anterior, individual e coletivamente. Se o conceito de uma viagem é uma metáfora central da vida judaica, qual é a diferença entre Avraham, Yitschac e Yaacov?

A vida de Avraham é enquadrada por duas jornadas que usam a frase Lech lechá, “empreender uma jornada”, uma vez em Bereshit 12, quando lhe foi dito para deixar sua terra e sua casa, e o outro em Bereshit 22:2 no sacrifício de Yitschac, quando lhe foi dito: “Toma teu filho, o único que amas - Yitschac - e vai [lech lechá] para a região de Moriá”.

O que é tão comovente sobre Avraham é que ele vai, imediatamente e sem questionar, apesar do fato de que ambas as viagens são dolorosas em termos humanos. Na primeira, ele tem que deixar seu pai. Na segunda, ele tem que deixar seu filho ir. Ele tem que dizer adeus ao passado e correr o risco de dizer adeus ao futuro. Avraham é fé pura. Ele ama a D’us e confia nele absolutamente. Nem todos conseguem esse tipo de fé. É quase sobre-humano.

Yaacov é alguém que entendemos. Podemos sentir seu medo, compreender sua dor pelas tensões em sua família e simpatizar com seu profundo anseio por uma vida de quietude e paz.

Yitschac é o oposto. É como se Avraham, sabendo dos sacrifícios emocionais que teve que fazer, sabendo também o trauma que Yitschac deve ter sentido no episódio do sacrifício, procura proteger seu filho como se estivesse sob seu controle. Ele faz com que Yistchac não saia da Terra Santa (Bereshit 24:6) - é por isso que Avraham não o deixa viajar para encontrar uma esposa. A jornada de Yitschac (para a terra dos filisteus em Bereshit 26) é limitada e local. A vida de Yitschac é um breve refúgio da existência nômade que Avraham e Yaacov experimentaram.

Novamente Yaacov é diferente. O que o torna único é que ele tem seus encontros mais intensos com D’us, eles são os mais dramáticos em todo o livro de Bereshit, no meio da jornada, sozinho, à noite, longe de casa, fugindo de um perigo para o próximo, de Essav a Lavan na viagem de ida, de Lavan a Essav, em seu regresso para casa.

No meio do primeiro encontro, ele tem a ardente revelação da escada que se estende da terra ao céu, com anjos subindo e descendo, levando-o a dizer ao acordar: “D’us está verdadeiramente neste lugar, mas eu não sabia... Esta deve ser a casa de D’us e esta é a porta para o céu” (28:16-17). Nenhum dos outros patriarcas, nem mesmo Moshê, teve uma visão como essa.

No segundo, em nossa parashá, ele tem a assombrosa e enigmática luta com o homem / anjo / D’us, o que o deixa mancando, mas permanentemente transformado - a única pessoa na Torá a receber de D’us um nome inteiramente novo, Israel, que pode significar “alguém que lutou com D’us e com o homem” ou “aquele que se tornou um príncipe [sar] diante de D’us”.

Por que Yaacov é o pai do nosso povo, o herói da nossa fé?

O que é fascinante é que os encontros de Yaacov com os anjos são descritos pelo mesmo verbo (Bereshit 28:11 e 32:2), que significa “um encontro fortuito”, como se tivessem pego Yaacov de surpresa, o que claramente aconteceu. Os momentos mais espirituais de Yaacov foram aqueles que ele não planejou. Ele estava pensando em outras coisas, sobre o que ele estava deixando para trás e o que estava à sua frente. Ele foi, por assim dizer, “surpreendido por D’us”.

Yaacov é alguém com quem podemos nos identificar. Nem todos podem aspirar à fé amorosa e à confiança total de um Avraham, ou à reclusão de um Yitschac. Mas Yaacov é alguém que entendemos. Podemos sentir seu medo, compreender sua dor pelas tensões em sua família e simpatizar com seu profundo anseio por uma vida de quietude e paz (os sábios dizem sobre as palavras iniciais da parashá da próxima semana que “Yaacov desejava viver em paz, mas foi imediatamente empurrado para os problemas de Yossef”).

A questão não é apenas que Yaacov é o mais humano dos patriarcas, mas sim que nas profundezas do seu desespero ele é elevado às maiores alturas da espiritualidade. Ele é o homem que encontra anjos. Ele é a pessoa surpreendida por D’us. Ele é aquele que, nos momentos em que se sente mais sozinho, descobre que não está só, que D’us está com ele, que ele é acompanhado por anjos.

A mensagem de Yaacov define a existência judaica. É nosso destino viajar. Nós somos pessoas inquietas. Raros e breves foram os nossos intervalos de paz. Mas na escuridão da noite nos encontramos elevados por uma força de fé que não imaginávamos ter, cercados por anjos que não sabíamos que estavam lá. Se andarmos no caminho de Yaacov, também nós poderemos ser surpreendidos por D’us.


Texto original: “THE JEWISH JOURNEY”
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra - Ipanema