É bom, eles costumavam disser na propaganda, conversar. Segundo o Judaísmo, é mais que bom: é essencial. Sem fala não há relacionamento, e sem relacionamento não há paz. Vemos isto em três passagens bíblicas.
A primeira é uma linha na Torá que nunca é traduzida corretamente. Ocorre na história de Caim e Abel. Caim se ressente do fato de a oferenda de Abel ser aceita, enquanto a sua não é. D'us sente a raiva dele subindo e o adverte a controlá-la, mas Caim não está escutando. Então vem a fatídica sentença. Literalmente traduzida, diz: “Caim disse ao seu irmão Abel, e quando eles estavam no campo, Caim atacou o irmão Abel e o matou.”
Isso não faz sentido. Não está sintaticamente bem formada: Diz “Caim disse”, mas não nos informa o que ele disse. Portanto a maioria das traduções cristãs segue as versões Samaritana, Septuaginto, Vulgata e Ciríaca que acrescentam uma frase nos dizendo que Caim disse: “Vamos até o campo.”
Porém o original hebraico diz o que diz por uma razão. Está escrito “Caim disse ao seu irmão Abel”, e então há um lapso de silêncio antes de nos dizer que Caim atacou seu irmão. A sintaxe fracionada transmite mais poderosamente do que poderia qualquer sentença bem formada, que a conversa entre os dois irmãos se encerrou. Eles pararam de conversar. As palavras cessaram. Caim estava furioso demais para verbalizar seus sentimentos. A frase seguinte nos diz o resultado. Quando as palavras falham, começa a violência.
A segunda passagem ocorre perto do início da história de Yossef e seus irmãos. Os irmãos se ressentiam de Yossef. Ele era o favorito do pai, e isso magoa. A frase relevante é geralmente traduzida como “eles o odiavam e não podiam falar pacificamente com ele”. Na verdade, porém, o hebraico original usa uma construção pouco usual. Literalmente diz: “eles não podiam falar com ele em paz.”
O que isso significa, diz Rabi Jonathan Eybeshutz (Século 18, Praga), é que se os irmãos tivessem falado, poderiam ter dito a Yossef sobre os seus ressentimentos. Yossef teria sido informado dos sentimentos deles e poderia ter moderado seu comportamento de alguma forma. Quando a comunicação verdadeira ocorreu, os irmãos poderiam ter falado em paz. Como ocorreu, a incapacidade dos irmãos falarem permitiu que o ódio se instalasse até que eles tramassem matá-lo, por fim decidindo vendê-lo como escravo, fraturando a família e causando uma dor inconsolável ao pai. Mais uma vez, a falta de palavras levou à tragédia.
O terceiro, um exemplo clássico de silêncio levando à violência, é a história de Absalom, filho do Rei David. Num ato chocante, Amnon, filho de outro casamento de David, violenta a irmã de Absalom, Tamar. Tamar conta tudo ao irmão. Lemos então: “Absalom jamais disse uma palavra a Amnon, nem boa nem má; ele odiou Amnon porque ele tinha desgraçado sua irmã Tamar. Dois anos depois ele empreende uma terrível vingança. Mais uma vez, onde as palavras falharam, seguiu-se a violência.
O Judaísmo é uma religião de linguagem, uma meditação sustentada no poder das palavras para construir ou destruir, curar ou machucar. Em palavras, D'us criou o universo. Em palavras, Ele Se revelou a nós. A primeira coisa que Ele deu a Adam foi o dom de nomear os animais, usando palavras para classificar e assim começar a entender o mundo que nos cerca. Na tradição judaica o Homo sapiens é descrito como “o ser falante”.
A Lei Judaica vê a “fala maldosa”, “lashon Hará”, como equivalente ao assassinato. Há um traço disso na frase inglesa “assassinato do caráter”. As palavras podem ferir, ofender, afligir. Podem também levar a entendimento e reconciliação. Uma conversa sincera, franca, é a melhor maneira, às vezes a única maneira, de resolver um conflito.
A grande ironia do Século 21 é que, tendo criado tecnologias para comunicação global instantânea, nos vemos falando cada vez menos com aqueles de quem discordamos.
A Internet nos permite escolher as notícias que ouvimos e as vozes que escutamos. Aquelas que antes eram comunidades mistas que liam os mesmos jornais e assistiam aos mesmos noticiários na TV se tornaram seitas maciças dos que têm a mesma opinião. A cada estágio nossos preconceitos são reforçados e nossas opiniões se tornam mais extremas.
Há um perigo de que esteja emergindo uma geração incapaz de ouvir o outro lado com respeito. Quando isso acontece, adverte a Torá, a violência está esperando lá fora.
Há uma adorável expressão rabínica:
Conversa é uma forma de oração.
A abertura ao Outro Divino nos ajuda a abrir para o outro humano. Falar é bom – talvez até sagrado também.
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