A parashá dessa semana poderia ser chamada “O Nascimento de Um Líder”. Vemos Moshê, adotado pela filha do faraó, crescendo como um príncipe do Egito. Nós o vemos como um homem jovem, pela primeira vez entendendo as implicações de sua verdadeira identidade. Ele é, e sabe que é, um membro de um povo escravizado e sofredor: “Quando cresceu, ele saiu para onde seu próprio povo estava e os viu em seu trabalho duro. Ele viu um egípcio batendo num hebreu, um do seu próprio povo.” (Êxodus 2:10).
Ele intervém – ele age: a marca de um verdadeiro líder. Nós o vemos intervir três vezes, duas no Egito, uma vez em Midian, para resgatar vítimas da violência. Então testemunhamos a notável cena da Sarça Ardente onde D'us o nomeia para levar seu povo à liberdade. Moshê hesita quatro vezes até D'us se tornar furioso e Moshê sabe que não tem outra opção. Essa é uma narrativa clássica da gênese de um herói. Mas esta é apenas a superfície. A Torá é um livro profundo e sutil, e nem sempre revela sua mensagem na superfície. Por baixo está outra história muito mais notável, não sobre um herói mas sobre seis heroínas, seis mulheres corajosas sem as quais não teria havido um Moshê.
Yochevet
A primeira é Yocheved, esposa de Amram e mãe das três pessoas que iriam se tornar os grandes líderes dos israelitas: Miriam, Aharon e o próprio Moshê. Foi Yocheved que, no auge da perseguição egípcia, teve a coragem de ter um filho, escondê-lo durante três meses, e então criar um plano para dar-lhe a chance de ser resgatado. Sabemos muito pouco sobre Yocheved. Em sua primeira aparição na Torá ela não é nomeada. Porém, lendo a narrativa, não temos dúvida sobre sua coragem e habilidade. Não foi à toa que seus filhos todos se tornaram líderes.
Miriam
A segunda foi Miriam, filha de Yocheved e irmã mais velha de Moshê. Foi ela que vigiou a criança quando a pequena cesta flutuava pelo rio, e foi ela que abordou a filha do faraó com a sugestão de que ele fosse cuidado por alguém de seu próprio povo.
A Torá retrata a jovem Miriam como uma figura de coragem ímpar e presença de espírito. A tradição rabínica vai além. Num notável Midrash, lemos como, ao ouvir o decreto de que todo bebê israelita do sexo masculino deveria ser afogado no rio, Amram liderou os israelitas para se divorciarem de suas esposas para que não houvesse mais filhos. Ele raciocinou: seria correto trazer filhos ao mundo se havia cinquenta por cento de chance de que seriam mortos ao nascer?
Porém sua jovem filha Miriam, assim diz a tradição, argumentou com ele e o persuadiu a mudar de ideia. “Seu decreto,” ela disse, “é pior que o do faraó. O dele afeta apenas os meninos; o seu afeta todos. O dele priva as crianças da vida neste mundo; o seu vai privá-las da vida até no Mundo Vindouro.”
Amram cedeu, e como resultado, Moshê nasceu. A implicação é clara: Miriam tinha mais fé que seu pai.
Shifrá e Puá
Em terceiro e quarto estavam as duas parteiras, Sifrá e Puá, que frustraram a primeira tentativa do faraó para o genocídio. Ordenadas a matar as crianças israelitas do sexo masculino ao nascerem, elas “temiam a D'us e não fizeram o que o rei do Egito lhes tinha ordenado: elas deixaram os meninos viver.” (Shemot 1:17).
Acusadas de desobediência, elas superaram o faraó criando uma engenhosa história; as mulheres hebréias, elas disseram, são vigorosas e dão à luz antes de chegarmos.
Elas escaparam da punição e salvaram muitas vidas. O significado dessa história é que este é o primeiro exemplo registrado de uma das maiores contribuições do Judaísmo para a civilização: a ideia de que há limites morais ao poder.
Há instruções que não deveriam ser obedecidas. Há crimes contra a humanidade que não podem ser desculpados pela alegação de que “Eu estava apenas obedecendo ordens.” Este conceito, conhecido como “desobediência civil”, geralmente é atribuído ao escritor americano do Século Dezenove Henry David Toreau, e entrou na consciência internacional após o Holocausto e os julgamentos de Nuremberg. Sua verdadeira origem, porém, vem de milhares de anos antes nas ações de duas mulheres, Shifrá e Puá. Com a sua enorme coragem elas ganharam um lugar alto entre os heróis morais da história, nos ensinando a primazia da consciência acima da conformidade, a lei da justiça acima da lei da terra.
A quinta é Tzipora, esposa de Moshê. A filha de um sacerdote midianita, ela mesmo assim estava determinada a acompanhar Moshê em sua missão ao Egito, apesar do fato de que ela não tinha motivo para arriscar sua vida numa aventura tão perigosa. Numa passagem profundamente enigmática, vemos que foi ela quem salvou A vida de Moshê por realizar uma circuncisão em seu filho (Shemot 4:24-26).
A impressão que temos dela é uma figura de monumental determinação que, num momento crucial, teve um melhor senso que o próprio Moshê do que D'us requer.
Existe, obviamente, uma tradição midráshica de que Shifrá e Puá eram outros nomes para Yocheved e Miriam (Sota 11b). Ao vê-las como mulheres separadas, estou seguindo a interpretação dada por Abarbanel e Luzato.
Esperei até a mais intrigante delas todas: a filha do faraó. Foi ela quem teve a coragem de resgatar um bebê israelita e levá-lo como seu até o próprio palácio onde seu pai estava tramando a destruição do povo israelita. Poderíamos imaginar uma filha de Hitler, ou Eichmann, ou Stalin, fazendo a mesma coisa? Há algo heróico e gracioso sobre essa figura levemente desenhada, a mulher que deu a Moshê o seu nome. Quem era ela? A Torá não menciona seu nome. Porém o Primeiro Livro de Crônicas (4:18) faz referência a uma filha do faraó, chamada Bitya, e foi ela que os sábios identificaram como a mulher que salvou Moshê.
O nome Bitya (às vezes escrito como Batya) significa “a filha de D'us”. A partir disso, os sábios tiraram uma das suas lições mais marcantes: O Eterno, bendito seja Ele, disse a ela: “Moshê não era seu filho, porém você o chamava de seu filho. Você não é Minha filha, mas chamarei você de Minha filha.” Tey acrescentou que ela foi uma das poucas pessoas (a tradição enumera nove) que eram tão justas que entraram no paraíso durante sua vida. Assim, na superfície, a parashá de Shemot é sobre a iniciação na liderança de um homem notável, mas apenas abaixo da superfície está uma contra-narrativa de suas mulheres extraordinárias sem as quais não teria havido um Moshê. Elas pertencem a uma longa tradição de mulheres fortes no decorrer da história judaica, de Deborah, Hannah, Ruth e Esther na Torá, até figuras religiosas mais modernas como Anne Frank, Hannah Senesh e Golda Meir.
Como então, se as mulheres surgem tão poderosamente como líderes, foram excluídas da lei judaica de certos papéis de liderança? Se olharmos cuidadosamente veremos que aquelas mulheres foram historicamente excluídas de duas áreas. Uma foi a “coroa do sacerdócio”, que foi para Aharon e seus filhos. A outra foi a “coroa do reinado”, que foi para David e seus filhos. Esses foram dois papéis construídos sobre o princípio da sucessão dinástica. A partir da terceira coroa – a “coroa da Torá” – porém, as mulheres não foram excluídas. Elas foram Profetisas.
Os Sábios enumeraram sete delas ( Meguilá 14 a). Sempre têm havido mulheres notáveis eruditas de Torá, desde o período Mishnaico (Beruriá, Ima Shalom) até hoje. Em discussão está uma distinção mais geral. Rabi Eliyahu Bakshi-Doron em sua Responsa, Binyan Av, diferencia entre autoridade formal ou oficial e verdadeira liderança.
Eles podem ter o poder de forçar pessoas a fazer o que eles dizem, mas não têm seguidores. Elas não provocam admiração. Eles não inspiram imitação. E pode haver líderes que não têm posição oficial mas que são procurados para conselho e são considerados como notáveis modelos. Eles não têm poder mas grande influência. Os Profetas de Israel pertenciam a essa categoria.
Assim, com frequência, faziam os guedolei Yisrael, os sábios de cada geração. Nem Rashi nem Rambam tinham qualquer cargo oficial (alguns eruditos dizem que Rambam era rabino chefe do Egito mas a maioria afirma que ele não era, embora seus descendentes fossem). Onde a liderança depende de qualidades pessoais – que Maz Weber chamava de “autoridade carismática” – e não em ofício ou título, não há distinção entre homens e mulheres.
Yocheved, Miriam, Shifra, Puah, Tzipora e Batya foram líderes não por causa de uma posição oficial que tiveram (no caso de Batya ela era uma líder apesar de seu título oficial como princesa do Egito). Elas foram líderes porque tinham coragem e consciência. Elas se recusaram a ser intimidadas pelo poder ou derrotadas pelas circunstâncias. Foram as verdadeiras heroínas. Sua coragem até hoje continua sendo uma fonte de inspiração.
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