Estamos agora no período mais triste do calendário judaico. Durante esses “nove dias” comemoramos a trágica destruição dos dois Templos Sagrados, o primeiro pelos babilônicos há 2440 anos, e o segundo pelos romanos 1950 anos atrás.

Os místicos explicam esses dias como um tempo de intensa “ocultação” da Presença Divina, com o objetivo de descobrir uma luz mais profunda dentro dessa escuridão.

Em termos pessoais esta ocultação se manifesta em formas diferentes de dissonância em nossas vidas. Quem dentre nós não teve um conflito entre lar e trabalho, vida profissional e pessoal, entre nossos ideais e padrões morais e a necessidade de se ajustar às exigências do mercado? Todos nós temos de enfrentar a tensão entre nosso coração e nossa mente, entre nossos desejos e nossas disciplinas, entre nosso corpo e nossa alma.

Todas essas dicotomias são uma expressão do ichismo que ocorre durante os “nove dias”, quando o Templo foi destruído, fechando as janelas entre céu e terra, entre o Divino e o mundano. Porém, numa forma misteriosa, essa dissonância pode nos levar a descobrir verdades mais profundas no meio das cinzas.

Quando desafiados por intensa escuridão, somos compelidos a cavar mais fundo. Esses “nove dias” são portanto um tempo apropriado para embarcar numa profunda busca do Divino oculto que está embebido em nossas vidas, mesmo quando parece adormecido. Nesse espírito, segue uma correspondência entre Rabi Jacobson em resposta a um agnóstico auto-proclamado.

Caro Sr. B.,

Deixe-me começar com meus sentimentos de apreciação pelas suas cartas. Estou comovido pelas suas palavras sobre o livro Rumo a Uma Vida Significativa, que tive o privilégio de adaptar das obras do meu grande mestre, o Rebe, de abençoada memória.. Sem querer entrar em discussão sobre as questões apresentadas, o mero fato de que este livro provocou suas gentis declarações e abriu uma comunicação entre nossos dois “mundos”, é por si mesmo uma conquista significativa.

Cheguei às minhas crenças de muitas formas. Pelo processo de eliminação, intuição e lógica. E acima de tudo – através do amor– sentimento abrangente que também não tem explicação lógica, e mesmo assim existe como a maior força na vida.

Agora quanto aos assuntos em pauta. Se o entendo corretamente, seu conflito está, em essência, num dilema abrangente ou paradoxo. Ou seja: como posso sugerir a reconciliação de um mundo determinista da natureza e a o inerente e indeterminado livre arbítrio do homem, ou em outras palavras: a reconciliação de razão e fé? Você as vê como mutuamente exclusivas, e mesmo se ambas forem perspectivas válidas, elas permanecem separadas por uma divisão absoluta.

Para permitir uma discussão significativa, eu gostaria de dissecar as questões em itens separados, que podem então ser revistos ponto a ponto. Todo discurso precisa assumir um ou mais axiomas. Em sua carta não ficou claro quais pontos você está preparado para aceitar (ou pelo menos concordar). Portanto, sem assumir nada, permita-me construir isso a partir do nada.

Pergunta Número Um:
Aceitamos que há dois reinos legítimos e válidos (embora, a essa altura, sejam mutuamente exclusivos) – razão e fé, determinação e indeterminação (permitindo o livre arbítrio)? Vou presumir que não aceitamos isso, portanto a necessidade de retroceder: Aceitamos a existência de D'us? E se a resposta for sim, que tipo de D'us?

Você “aceita a existência de D'us como uma possibilidade,” mas sua “própria fé é muito mais mundana, compilada da experiência finita e finalmente alojada no conceito de um universo unificado determinista; um universo que, para todos os objetivos práticos, opera sem intenção.” (Em sua versão corrigida você escreve: “Acredito que a existência de D'us e do caos são possíveis, minha própria fé, quando não posso mantê-la significa mais rumo a existência unificada deterministicamente… que opera como uma máquina”). Minha pergunta a você então é: que tipo de D'us criaria um universo mecânico operando sem intenção? Que necessidade há para D'us e em que um D'us contribui com um universo que funciona como um relógio de pulso? Você deve estar sugerindo um D'us engenheiro que basicamente acerta os ponteiros de um relógio de pulso em movimento, um D'us, segundo você, que é uma “questão semântica”.

Posso oferecer outra definição de D'us e existência. Nossa existência não tem de ser. Passou a existir – criada por D'us. D'us implica desígnio e propósito. Nenhum engenheiro criaria uma máquina – não importa quão organizada – sem nenhum objetivo. A organização não é um fim em si mesma. O desenho implica não apenas uma máquina sistemática, mas propósito: uma razão de ser. Precisamos entender por que o engenheiro cósmico criou esse universo organizado, determinístico. Não basta dizer que Ele o criou apenas para demonstrar Seu grande poder de criação. D'us criou este universo determinístico para cumprir algum objetivo. Um universo sem propósito pode muito bem não ter um D'us; D'us então é apenas semântica.

Creio que você pode ter um problema com a noção de existência sendo criada por um D'us. Você preferiria definir a existência (o universo) como algo sem princípio nem fim, e D'us sendo o projetista que gira este relógio de pulso. No entanto, minha definição de D'us inclui a possibilidade de que nossa existência tem um princípio – é como uma “ponta do iceberg” da realidade, uma parte de um todo muito maior, e esse “todo” informa a ‘parte de seu desígnio e objetivo únicos, sua razão para existir.

O “alimento” que nutre a fé são as mitsvot, vivendo nossa vida diária e nos comportando de acordo com as leis divinas da Torá. Colocar tefilin, guardar o Shabat, comer casher, estudo, prece e caridade

Qual é o propósito de D'us na criação? Que nós seres humanos contribuímos – como parceiros com D'us – para transformar nossas vidas e o universo inteiro reunindo seu lado material com seu lado espiritual, criando um universo integrado – como um lugar Divino. D'us criou sementes em grãos; os seres humanos plantam as sementes, colhem o trigo, misturam a farinha com água e assam o pão. Usamos os recursos infinitos que D'us instilou nesse universo e realizamos seu grande potencial civilizando e refinando o mundo no qual vivemos.

Para que nossas vidas tenham um objetivo e significado, devemos ter a capacidade de escolher (com livre arbítrio) se utilizamos ou não nossos recursos construtivamente.

Você sugere que talvez o significado da vida seja adquirir prazer. Porém, isso nos leva de volta ao nosso entendimento sobre D'us. Se D'us fosse pelo menos metade tão sofisticado como um famoso escritor, Ele teria maiores intenções em criar um universo que apenas por prazer.

Porém agora devemos abordar sua pergunta. Você escreve “uma análise referencial da experiência comum sugere que a existência é Uma (um universo sob D'us…). Se isso é verdadeiro, então o livre arbítrio é uma ilusão, pois embora possamos obviamente fazer o que queremos, não podemos existir à parte das leis do universo e não somente devemos ser guiados, mas forçados por elas. Dizer que somente o homem pode receber a suspensão da lei física requerida por uma doutrina de livre arbítrio verdadeiro parece apropriado somente para um povo supersticioso e primitivo.” Portanto, como reconciliamos o desígnio divino do universo e o livre arbítrio?

A resposta volta a como interpretamos D'us. O Próprio D'us é guiado pelas leis deterministas do universo que Ele criou? A resposta é não. D'us transcende essas leis, ou melhor colocado, D'us poderia ter criado leis inteiramente diferentes ou nenhuma lei. Suas perguntas são válidas somente num mundo de nossa lógica determinista onde tudo é governado por leis deterministas e não temos motivo para dizer que o homem é diferente. Porém, isso é apenas sob uma perspectiva humana que em si mesma é dirigida por leis. Sob a perspectiva de D'us, que não é dirigida por nenhuma dessas leis, sempre permanece um elemento de indeterminismo, e Ele escolheu infundir um toque desse indeterminismo em nossa existência concedendo o livre arbítrio ao homem que D'us criou à Sua própria “imagem”. Em outras palavras, um D'us indeterminado (indefinido até pela palavra “indeterminado” e “indefinido”) escolheu criar um sistema determinista, e dotar o homem com livre arbítrio para transcender o determinismo da natureza e escolher elevar o universo a um local mais elevado que jamais poderia atingir por si mesmo.

Isso apresenta um paradoxo interessante: como D'us não é dirigido por quaisquer leis e imposições, portanto quando Ele escolhe criar um universo determinista, torna-se absolutamente determinista; porque D'us não teve de fazê-lo, quando Ele escolhe fazê-lo, o determinismo é muito mais irrefutável do que se o próprio D'us fosse determinista e simplesmente agindo segundo Sua própria “natureza”. Por outro lado, sempre permanece um elemento de indeterminismo, porque mesmo depois que D'us criou o universo, D'us ainda continua D'us. E este indeterminismo é refletido no universo, na inerente incerteza que existe num nível quantum, que também está começando a ser entendido pelos cientistas como tendo efeitos sobre nosso universo macroscópico.

Creio que à medida que os cientistas descobrem mais sobre a unidade subjacente no universo, eles podem também começar a descobrir que a suprema unidade (assim chamada “teoria do campo unificado”) somente pode ser entendida incluindo o “observador” – a espécie humana – na equação, e reconhecendo que este “observador” não é de maneira alguma “observador objetivo, mas o comportamento moral do homem ao exercer seu livre arbítrio indeterminista tem um impacto no universo.

Agora você vê que as questões que abordou estão todas relacionadas com nossa definição de D'us. Para mais discussão sobre minha descrição de D'us (não sendo determinista ou indeterminista) em oposição às outras descrições, leia por favor os capítulos “D'us” e “Unidade” em Rumo a Uma Vida Significativa.

Finalmente você me pergunta como cheguei às minhas crenças? Antes de responder eu gostaria de mencionar a linha final de sua última carta descrevendo-me como “Ortodoxo” e a si mesmo como “Agnóstico”. Na verdade, como entendo e sinto isso, não é alguma saída ou muleta. A fé não impede dúvidas, perguntas e agnosticismo. Também não nega os paradoxos da vida, de reconciliar um D'us bom com o sofrimento de pessoas boas e a prosperidade dos perversos, e outras dessas contradições. A fé é uma experiência abrangente que inclui fé na lógica, e respeita todas as realidades de nossas experiências comuns e empíricas. Mas não para aqui: também inclui a percepção de nossas experiências sublimes, nossos sentimentos e intuições, até subconscientes e além (ou: dentro), independentemente se estamos confortáveis ou não com as consequências.

Se você quiser, eu, também, posso apresentar um argumento forte para o agnosticismo. Afinal, D'us criou um universo agnóstico (como discuto no capítulo sobre “D'us”). Porém minha honestidade e integridade mandam que eu não me permita ser engaiolado em minha mente. Sim, minha mente, como todas as mentes, pode explicar a impossibilidade de provar se D'us existe, se temos livre arbítrio, ou, ainda, se temos alguma importância.

Mas se eu quiser viver a vida com plenitude, não apenas relegada à minha mente, e não apenas travada pela minha lógica, mas uma que inclui meus sentimentos, todos os meus recursos internos, uma vida plena de amor e intimidade – devo incluir a fé em minha equação, não alguma fé cega no desconhecido, mas um profundo senso de uma presença maior, de “Algo” mais elevado. Somente lógica e fé nos permitem ser mais completos – experimentar tudo, e não apenas uma parte.

Cheguei às minhas crenças de muitas formas. Pelo processo de eliminação. Por intuição. Através da lógica. E talvez mais do que tudo – através do amor, que todo sentimento abrangente que também não tem explicação lógica, e mesmo assim existe como a maior força na vida. Todos esses processos ajudaram a eliminar alguns dos obstáculos que ofuscavam minha voz interior e permitiram que o conhecimento natural da minha alma emergisse. Após levar em conta tudo que sei e sinto, acredito firmemente que somos todos pessoas de fé (leia: pessoas que têm um relacionamento íntimo com D'us), o que se torna mais obscurecido à medida que crescemos como “adultos” com mentes que nos ajudam a ofuscar nossa voz interior e nos torna mais confortável com o “aqui e agora”.

Dr. B., deixe-me acrescentar uma nota pessoal. A fé, como qualquer de nossos recursos, precisa ser continuamente nutrida. De fato, se nosso corpo precisa continuamente de comida para o sustento, muito mais então a nossa fé – que pode ser tão elusiva – precisa de “alimento”. O “alimento” que nutre a fé são as mitsvot, vivendo nossa vida diária e nos comportando de acordo com as leis divinas da Torá. Colocar tefilin, guardar o Shabat, comer casher, estudo, prece e caridade. Embora não possamos entender plenamente a dinâmica, esses atos são todos “vitaminas” e “minerais” diferentes que alimentam e nutrem nossa alma, nossa fé. Eles instilam confiança em nossa voz interior, e permitem que seja canalizada na nossa vida consciente, material, “sem fé”.

A fé é uma luta contínua, igualando e refletindo o conflito da própria vida. Com que frequência nossa fé é testada, com que frequência ela vacila?

Porém este conflito é nosso maior desafio e presente: vou chegar à ocasião e permitir que minha fé me encha com paixão, me eleve às maiores alturas para impactar este mundo numa maneira Divina, ou me resignar, como muitos fazem, à mediocridade de uma existência sem sentido, onde minha maior paixão está no temporário e no mercurial?

A pergunta de D'us a Adam, “Onde está você?” – o que está fazendo com sua vida? Onde fica? É reconhecível como um ser criado à Divina imagem?

Como você sugere, talvez nossa discussão possa servir também para ajudar outros. Fique à vontade para partilhar esses pensamentos com quem você quiser.
Desejo tudo de bom,

Simon Jacobson