Foleh Kahan estava cumprindo uma sentença de três anos pelo crime de “atos prejudiciais contra o Estado”. Isso, no entanto, era um libelo. A verdade era que ele era um judeu religioso que tinha cometido o”crime” de guardar seu Judaísmo de toda maneira possível, e encorajar outros judeus a praticá-lo.
Quando isso foi descoberto, ele foi enviado a um “Campo de Trabalho Correcional” na SIbéria, para ser reeducado na companhia de ofensores políticos. Mais tarde ele escreveu uma narrativa de suas experiências. Era Pêssach, no ano de 1943, o terceiro ano de sua sentença. Assim ele começou sua comovente narrativa:
“Poucas semanas antes de Pêssach, recebi uma carta de casa, dizendo que estavam me enviando um pacote com matsot e outros produtos para Pêssach, como nos anos anteriores. Essa carta tinha sido primeiro endereçada ao campo anterior onde eu estivera trabalhando, e então reenviada para meu novo campo. Escrevi imediatamente para casa para informá-los do meu novo endereço, e esperava que o pacote me chegasse a tempo. Entreguei minha carta a David, meu amigo, que era o gerente do Departamento de Comida do campo. Ele, por sua vez, passou-a a alguém de fora do campo que estava indo para Moscou.
Esperei ansioso o pacote de matsot e produtos de Pêssach que me permitiriam observar Pêssach adequadamente, bem como iriam me fortalecer, pois eu tinha me tornado um tanto fraco e sofria de problemas no estômago.
Certo dia, a mulher que era a chefe da “divisão política” do campo foi ver-me. Ela era também a censora das cartas e pacotes enviados aos prisioneiros. Ela era nova no emprego e perguntou-me se eu ainda me apegava às minhas crenças e práticas religiosas. Eu ainda estava me abstendo de trabalhar no Shabat e feriados e não comia as refeições servidas da cozinha do campo. Por fim, perguntou-me: “O que é matsá?” Expliquei tudo a ela, que então perguntou: “Quando é Pêssach?” Respondi “Daqui a dez dias.”
“O que você vai fazer se o seu esperado pacote de matsot não chegar em tempo?” perguntou ela.
“Eu comeria apenas batatas,” respondi.
“E se você não conseguir batatas?”
“Então minha única opção será passar fome.”
“Durante oito dias?” ela perguntou intrigada.
“O Todo Poderoso não vai me abandonar,” respondi.
A conversa terminou, e ela saiu.
Chegou a primeira noite do Seder. Nenhum pacote. Nenhuma matsá. Nada de provisões para Pêssach. Eu tinha convidado David e um judeu chamado Berkowitch para o meu “seder”. Tínhamos coberto a mesa com uma folha de papel limpa para servir de toalha. Tínhamos fervido uma chaleira d’água. Enchi alguns copos com chá, que iriam nos servir em lugar dos quatro copos de vinho que deveríamos ter. Então, perante os olhos incrédulos deles, apresentei três matsot inteiras! Recitei o máximo da Hagadá que conseguia lembrar.
Na noite seguinte não havia matsot. Mais uma vez tínhamos chá no lugar de vinho, e três pedaços de açúcar completaram nosso seder. Mais uma vez recitei a Hagadá de cabeça. Então contei aos meus convidados o segredo de como eu tinha obtido as matsot para o seder anterior.
“Desde que estou nos campos de trabalho sempre guardei algumas matsot de um Pêssach para o próximo, caso eu tenha dificuldade em conseguir matsot para o Pêssach seguinte. Este ano, felizmente, essas matsot foram uma bênção, e eu estava grato por ter tido tamanha prevenção.”
David ficou furioso comigo por não ter dito a ele que este ano eu não tinha recebido nenhuma matsá para Pêssach.
“Certamente não teríamos comido seu último pedaço de matsá na noite passada se soubéssemos disso,” declarou ele.
“Foi por este motivo que eu não lhe contei,” respondi. “É uma mitsvá para todo judeu comer um pedaço de matsá nas noites do seder. Durante o restante do seder devemos apenas nos abster de comer chametz (fermento). A pessoa pode dar um jeito comendo batatas, frutas, vegetais, etc.” eu disse.
“Pode se esquecer das frutas, e não é tão fácil obter batatas também,” retorquiu David. “Como você espera sobreviver durante um Pêssach inteiro?” ele perguntou, acalorado. “Recebi uma bênção de meu pai de que eu retornarei para casa em paz e, com a ajuda de D'us, conseguirei,” respondi calmamente.
David não se comoveu, e saiu num rompante. Eu o vi somente duas vezes durante todo o Pêssach. Ele então tentou persuadir-me a comer chametz ou, pelo menos, conseguir alguma coisa na cozinha do campo se não quisesse morrer de fome!
Quando ele não conseguiu convencer-me, passou a me evitar; aparentemente, não conseguia suportar ver-me passando fome.
No terceiro dia de Pêssach tive uma visita inesperada: a mulher da censura. Eu estava no trabalho e ela percebeu que minhas mãos tremiam. Entendeu que eu estava fraco pela falta de alimento.
“Eu trouxe alguma coisa para você comer,” disse ela, e me deu um pão fresquinho. O aroma apetitoso fez minha cabeça girar! Disse a ela que os judeus não têm permissão de comer aquilo em Pêssach. Agradeci e recusei. Ela saiu sem dizer mais nada.
No dia seguinte ela me visitou novamente, e eu estava me sentindo muito mais fraco. Dessa vez ela levou alguns biscoitos feitos com farinha branca (um luxo). “Eu mesma assei esses,” disse ela, “com açúcar e óleo. Você deve comê-los, caso contrário vai morrer de fome!” Agradeci, mas recusei novamente.
“Você provavelmente está se perguntando por que estou tão preocupada com você,” disse ela. “Provavelmente tem esposa e filhos que estão esperando pelo dia em que estará livre e voltará para eles. Não tenho um marido me esperando. Ele era um funcionário neste campo e foi enviado ao campo de batalha. Foi morto em ação, lutando contra os hitleristas. Agora, por favor, pegue um biscoito! Vai lhe fazer bem,” implorou ela.
“Obrigado, mas não. Sinto muito por saber da sua perda, mas por favor, me deixe em paz.”
Ela saiu, obviamente aborrecida por não ter conseguido me persuadir a comer qualquer coisa que tinha levado para mim. Eu me sentia tão fraco. Tive de deitar-me na cama, e não tinha mais força para levantar.
Berkowitch foi ver-me algumas vezes e levou-me um pouco de água morna, adoçada, para beber. A cada vez, saía triste por ver meu sofrimento. Na manhã do último dia de Pêssach ele veio e encontrou-me semi-consciente. Pedi a ele que derramasse um pouco de água sobre minhas mãos e me desse meu sidur. Isso ele fez, mas as palavras boiavam na frente de meus olhos e minha cabeça girava. Então desmaiei por completo.
Quando recuperei a consciência, a enfermeira chefe do hospital estava ao meu lado. Aparentemente, ela tinha me dado uma injeção que fez eu me sentir muito quente.
“Não sei onde esses judeus obstinados conseguem tamanha força e resistência,” eu a ouvi dizendo para David, que também estava presente. Ela então saiu do quarto. David ficou comigo até escurecer.
“Agora Pêssach terminou,” disse ele. Tentei, mas estava fraco demais para recitar as preces noturnas. Ele levou-me algumas migalhas e um pouco de açúcar. Mergulhou os pedaços secos no chá doce, e alimentou-me como uma criança.
Após a refeição adormeci e só acordei na manhã seguinte. Ainda estava tão fraco que David teve de me ajudar a colocar meus tefilin.
Dois dias após Pêssach Berkowitch chegou para contar-me que tinha sido libertado, e logo teria permissão de voltar para casa. Ao mesmo tempo contou-me que, enquanto estava no correio, ouvira dizer que um pouco antes de Pêssach, tinha chegado um pacote para mim vindo da minha casa, mas fora enviado de volta pela censora.
Agora estava claro para mim por que ela tinha ficado tão ofendida quando me recusei a comer sua comida em Pêssach. Ela estava com medo de que eu morresse de fome, e minha morte lhe pesaria na consciência.
Após ter sido libertado, Berkovitch permaneceu na cidade por mais duas semanas antes de ir para casa. Todo dia ele me levava leite, batatas, pão, açúcar e uma vez, algo especial - cebolinha verde! Aos poucos recuperei minhas forças.
Então fui chamado ao gabinete do superintendente do campo. Berkowitch estava presente. E também a censora. O superintendente disse que tinha sabido que a mulher censora enviara meu pacote de volta antes de Pêssach e, na verdade, ela admitira tê-lo feito.
Uma investigação mais detalhada revelou que ela também tinha escondido e destruído duas cartas vindas de casa, para que eu não soubesse do pacote que tinham me enviado. O superintendente pediu-me para assinar uma reclamação contra a censora, dizendo: “Vou pessoalmente garantir que ela seja castigada.”
A censora irrompeu em lágrimas e implorou ao superintendente. “Tenha pena de mim e dos meus filhos órfãos,” disse ela. “O pai deles deu a vida pela Mãe Terra,” soluçou. “Não me peça para ter pena de você. Deve pedir perdão a este homem com quem errou tão cruelmente,” disse ele.
Falei ao superintendente que a censora obviamente se arrependera de seu comportamento desumano e tentara, de alguma forma, corrigir seus erros. Além disso, considerando que o marido dela tinha morrido lutando contra os nazistas e a deixara com a responsabilidade de cuidar dos órfãos, eu estava pronto para perdoá-la.
Isso, sob a condição de que ela prometesse não causar mais problemas aos prisioneiros do campo.
O superintendente ficou visivelmente impressionado com a minha declaração de perdão. Prometeu não relatar o assunto às autoridades. No entanto, ele transferiu a censora a um cargo onde ela teria menos autoridade.
Assim terminou a questão. Mas aquele “Pêssach sem comida” ficará em minha mente durante toda a minha vida. Graças a D'us estou vivo para contar a história…
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