Por Rabino Eliyahu Touger
Alguns assuntos não são nada agradáveis de mencionar. Ao mesmo tempo, deixar de notá-los não os anula. Portanto, exige-se de uma pessoa intelectualmente honesta que os confronte. Por essas razões, ao pensar em termos de Redenção, embora nos sintamos tentados a evitar o assunto do Holocausto, a questão não pode ser ignorada.
Mais de cinqüenta anos se passaram para os judeus – e também para os não-judeus – e esta tragédia ainda provoca uma importante pergunta com relação à crença em D’us. É natural perguntar: onde estava Ele e por que Ele não fez nada para impedir que acontecesse? Mais particularmente, com relação à Redenção, surge a questão: se a Redenção não veio então, quando a humanidade mais precisava dela, quando virá? E outros vão mais além, dizendo que se Mashiach não veio naquela ocasião, nem querem mais que ele venha.
Para ajudar a entender porque Mashiach não veio então, voltemos na História. Os romanos, que antes dominavam a Terra de Israel, não tinham armas de fogo nem câmaras de gás, não podendo matar seis milhões de uma só vez, mas também oprimiam severamente os judeus, que ansiavam pela vinda de Mashiach. O Talmud relata que num certo ponto daquele período, Rabi Yehoshua ben Levi encontrou o Profeta Eliyáhu e lhe perguntou: "Quando virá Mashiach?"
Retrucou o Profeta: "Vai e pergunta a ele. Ele está às portas de Roma."
"Como o reconhecerei?"
"Ele está sentado entre os pobres cobertos de feridas. Enquanto os outros desenfaixam todas as feridas de uma vez e depois as enfaixam de novo, ele desenfaixa uma ferida de cada vez e imediatamente a enfaixa de novo. Pois ele diz: ‘Talvez eu seja chamado [para aparecer como Mashiach] e não posso me atrasar!’"
Assim Rabi Yehoshua ben Levi foi a ele e disse: "A paz esteja contigo, meu mestre e professor!" Ele respondeu: "A paz esteja contigo, filho de Levi."
Então ele lhe perguntou: "Mestre, quando virás?"
Ele respondeu: "Hoje!"
Rabi Yehoshua retornou a Elyáhu, que lhe perguntou: "O que disse ele?"
Ele retrucou: "Ele me enganou! Disse-me: ‘Virei hoje’, e não veio!"
Disse Elyáhu: "O que Mashiach tinha em mente era este versículo: ‘Hoje – se apenas ouvires Sua voz!’"
O Talmud conta que Mashiach quer vir, talvez ainda mais do que a humanidade quer que ele venha. Por que então ele não vem? Porque o mundo não está pronto para ele.
Não poderia D’us cuidar deste problema? Não poderia aperfeiçoar as máculas do mal, da contenda e da injustiça que desfiguram o mundo? Sim, D’us poderia, mas Ele quer que esta tarefa seja cumprida pelo homem, "ouvindo Sua voz". Explicando: D’us criou o mundo material porque desejava uma morada nos mundos inferiores. Neste desejo está implícito que a morada seja moldada pelo próprio homem. D’us criou um mundo apropriado para Sua morada, mas apenas apropriado. Deixou o mundo – e quanto a isto, o próprio homem inacabado, e confiou ao ser humano a tarefa de dar os toques finais à Criação.
Qual deve ser a contribuição humana? Um velho adágio chassídico diz: "D’us fez algo a partir de nada. E a tarefa do homem é transformar o algo em nada."
O mundo criado por D’us é material e, por sua própria natureza, encoraja a preocupação consigo mesmo – este é o "algo" que os chassidim queriam dizer. O que D’us deseja do homem é que infunda uma consciência espiritual no mundo, que difunda altruísmo e sacrifício pessoal – esta é a intenção dos chassidim ao afirmarem que o objetivo do homem é transformar o algo em nada.
Se D’us tivesse contribuído com estas qualidades logo de saída, i.e., se Ele tivesse feito do mundo um Jardim do Éden espiritual, a existência do homem teria tido pouco propósito. E se Ele, em qualquer ponto da História, tivesse infundido tais qualidades em nossas vidas, trazendo a Redenção independentemente dos esforços do homem, a existência humana teria sido um exercício de futilidade.
O propósito do ser humano é moldar a morada de D’us, criar um cenário para a Redenção. Para que o homem pudesse cumprir este propósito, D’us lhe confiou o potencial de criar, concedendo-lhe a capacidade de reestruturar seu ambiente – tanto o interior da mente como o exterior do mundo que o cerca. Não obstante, como a contribuição esperada do homem não está inteiramente definida e sua dimensão de abnegação vai contra sua própria natureza, ela lhe é difícil.
Por essas razões, existe também a possibilidade de que o homem faça mau uso deste potencial. Exatamente a mesma energia que poderia trazer a Redenção, se maldirigida, pode levar a holocaustos. Em vez de formar um ambiente de paz e prosperidade, o ser humano pode usar as singulares dádivas que lhe foram concedidas para criar o inferno na Terra.
E no entanto D’us confia no homem e lhe dá o livre arbítrio. Isto confiar à humanidade seu futuro – é o mais prodigioso exercício possível de Divina generosidade e paciência. Pois D’us sabe o que se espera do homem, observa-o enquanto tem sucesso ou fracassa e lhe permite continuar sem interferência. Deve haver limites para esta confiança? Conheço um psicólogo infantil. Ele me diz que se eu vir meu filho de três anos brincar com fósforos, não devo retirá-los. Em vez disso, devo permitir-lhe vivenciar as conseqüências de seu comportamento.
A sensatez desta abordagem é discutível. Se se concorda ou não, o motivo por que ele fez tal sugestão é óbvio: os riscos são pequenos. Ninguém sugeriria deixar uma criança aprender as mesmas lições brincando com uma arma de fogo; um revólver pode matar. E assim também os holocaustos. No entanto, D’us deixa o homem perpetrá-los e observa sem interferir. Por quê? Como pode?
A questão é dupla: a) a humanidade pode sofrer danos e, se D’us é bom e deseja o bem, como pode permitir que este dano seja infligido? b) como pode Ele suportar assistir?
Como humanos ficamos revoltados com a crueldade e a brutalidade. Ele não fica?
Analisando a primeira questão: num de seus confrontos com as autoridades comunistas, o Lubavitcher Rebe Anterior, Rabi Yossef Yitschac Schneersohn, certa vez foi ameaçado com uma arma por um dos guardas, que se gabava de seu poder de influenciar pessoas. O Rebe retrucou que a arma poderia influenciar apenas "quem tinha um mundo e muitos deuses. "Eu" – continuou ele – "tenho um D’us e dois mundos".
O Rebe Anterior queria dizer que temos de ter uma visão mais global. Quando concebemos a vida como algo limitado ao aqui e agora imediatos da existência corporal, então a morte é aterradora. Quando temos consciência da realidade espiritual e vivemos com fé no pós-vida, na reencarnação e na ressurreição, a morte física torna-se apenas mais um marco de vida.
Rabino Aryê Levine costumava dizer que quando nasce um bebê todos riem, mas o bebê chora. Em contraste, quando uma pessoa morre todos choram, mas talvez a alma esteja rindo.
Numa perspectiva global, fica claro que a perda não é sentida pelos que morrem, somente pelos que ficam. E o sofrimento sentido neste plano – por mais aterrador e extremo que seja – é efêmero por natureza. O importante na vida são as contribuições duradouras que fazemos. E nesse contexto o legado do martírio e a santificação tanto da vida como da morte que as vítimas do Holocausto deixaram assoma, colossal, nos horizontes espirituais.
Com relação à segunda questão, como pode D’us suportar a dor sofrida por Seus filhos?, a resposta é simples. Ele não pode. Portanto, citemos a expressão bíblica, Ele "oculta Sua face".
Mas Ele permite que o sofrimento continue. Por quê? Porque, por difícil que Lhe seja suportar o sofrimento do homem, é ainda mais difícil para Ele retirar a dádiva do livre arbítrio que Ele nos deu. Ele Se recusa a condenar o homem ao status de mero robô. D’us quer que o homem seja um criador e que use este potencial para moldar uma morada Divina no mundo material.
Não podemos explicar o Holocausto. De fato, qualquer explicação ou justificativa que possam ser oferecidos parecem vulgares e crassos. Entretanto, podem ser feitas observações. E uma coisa é clara. Holocaustos não acontecem todos os dias, ou a cada século. O horror da tragédia e seu efeito – o total colapso da vida judaica que nutriu o povo judeu por séculos – indica uma transição prodigiosa.
Através de toda a História do povo judeu, milagres ocorreram, como o Êxodo do Egito ou a derrota dos gregos pelos macabeus, que inauguraram processos de mudança. O Holocausto foi, em contraste, um antimilagre; mas foi também sintoma de uma transição monumental.
Todos os maiores sábios daquela era a descreveram como o tempo em que os passos de Mashiach já podiam ser ouvidos. Mas como afirmamos acima, D’us condicionou a vinda de Mashiach ao ser humano. Para que Mashiach venha é necessário que haja mudanças no mundo todo. Foi concedida ao homem a capacidade de provocar esta mudança e fazer com que seja positiva. Mas quando um potencial existe, também é possível que o pêndulo oscile na direção oposta. Nossos sábios conheciam estes perigos. Um deles disse: "Que ele [Mashiach] venha, mas que eu não veja sua chegada". Ele queria que ocorresse a Redenção, mas desejava ser poupado da angústia que precederia sua vinda.
Os Profetas falam da Redenção antecedida por dores de parto. Perguntem a qualquer mulher que já tenha dado à luz e ela dirá que, por maior que seja a dor, o início de uma nova vida permanece a mais poderosa dimensão desta experiência. E certamente, a mais duradoura.
A Cabalá explica que todo o processo básico de transição tem três fases: yesh – ayin – yesh, uma entidade, um estado de vazio e uma nova entidade. Pois quando se quer dar um passo radical a frente, deve-se primeiro negar completamente o antigo sistema de referências. Então como um vácuo, este estado de não-ser "suga" um novo e mais elevado nível de existência. A metamorfose do velho mundo do shtetl (em termos judaicos) e dos anos formadores da Revolução Industrial (em termos seculares) para a Era da Redenção precisa de um estado vazio.
Quando a humanidade tateava à procura de uma fórmula para a mudança, Hitler ofereceu sua definição de ayin – aniquilação total. No meio-século que se seguiu, a humanidade começou a procurar definições mais positivas que levassem adiante o propósito de D’us na Criação. E isto nos capacitará, não somente a ouvir os passos de Mashiach, mas a presenciar sua vinda e compartilhar a Era de realização que ele iniciará.
Este artigo nasceu de um compromisso com a honestidade intelectual, uma abertura para confrontar as questões teóricas que surgem ao se pensar na Redenção. Infelizmente, de tempos em tempos, se entrelaçaram com fatos atuais, pois o neonazismo continua a se erguer na Alemanha e em toda a Europa, espalhando-se no mundo, inclusive na América Latina.
Tornou-se clichê dizer que se não nos recordarmos da História seremos forçados a revivê-la. Mas lembremo-nos ou não, nosso ambiente lembra que o Holocausto é uma possibilidade que não horroriza a humanidade.
ב"ה
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