Quando eu era Rabino Chefe, tinha maravilhosas amizades com outros líderes religiosos, nada menos que os dois Arcebispos de Canterbury durante a minha época. Isso fazia parte de um profundo benefício que tinha ocorrido entre judeus e cristãos na era pós-Holocausto, após muitos séculos de estranhamento e coisas piores. Respeitávamos nossas diferenças, mas trabalhamos juntos nas coisas que eram importantes para nós, desde a mudança do clima até o alívio da pobreza.
Em uma ocasião o então Arcebispo de Canterbury, George Carey, fez um pedido curioso. “Estamos embarcando num ano de Leitura da Bíblia. Você acha que poderia fazer algo semelhante dentro da comunidade judaica?”
Respondi: “É claro. Fazemos isso todo ano. Há somente uma palavra que poderíamos achar problemática.”
“Que palavra é essa?” ele perguntou.
“A palavra ‘leitura’,” eu disse. “Nunca simplesmente lemos a Bíblia. Nós a estudamos, a interpretamos, pesquisamos buscando outras interpretações em fontes confiáveis, argumentamos, questionamos, debatemos. O verbo ‘ler’ não leva justiça à maneira pela qual interagimos com a Torá. É geralmente muito mais ativo que apenas ler.”
Eu poderia ter acrescentado que até a frase keriat ha-Torá, que é geralmente usada significando ler a Torá, é um ato performativo. É uma recriação semanal da revelação do Monte Sinai. É uma cerimônia de ratificação como aquela que Moshê realizou no Monte Sinai: “Então ele pegou o livro do pacto e o leu em voz alta para o povo e eles disseram:” Tudo que o Eterno disse faremos fielmente!” (Shemot 24:7), e como a cerimônia de revelação do pacto celebrada por Ezra após o retorno da Babilônia, como é descrito em Nehemiah 8-9. Keriá nesse sentido não significa ler no sentido moderno de se sentar numa poltrona com um livro. Significa declarar, proclamar, estabelecer e tornar a lei conhecida. É como aquilo que aconteceu no Parlamento Britânico quando a carta chega à sua ‘leitura’ final, sua ratificação.
Portanto a Torá não é algo que meramente lemos. Envolve vínculo total. E o que tem tornado aquele vínculo possível é o conceito rabínico de Midrash. Midrash como entendo (obviamente, há outras maneiras)foi a resposta rabínica ao fim da profecia. Enquanto havia profetas – até a época de Hagai, Zecharia e Malachi – eles trouxeram a palavra de D'us à sua geração. Eles a ouviram; eles a declararam; a palavra Divina viveu dentro dos rios e marés da história.
Mas então veio uma época quando não havia mais profetas. Como os judeus puderam ligar o espaço entre a palavra então, e a situação histórica agora? Foi uma crise imensa, e grupos diferentes de judeus reagiram em maneiras diferentes. Os Saduceus, pelo que posso dizer, se confinaram ao texto literal. Para eles a Torá não se renovou geração após geração. Foi outorgada uma vez e isso foi o suficiente.
Outros grupos, incluindo aqueles que conhecemos pelos Rolos do Mar Morto, desenvolveram um tipo de exegese bíblica conhecida como Pesher. Há um significado superficial do texto mas há também um significado oculto, que tem a ver com eventos ou pessoas no presente, ou o final dos dias, que foram assumidos como vindo em breve.
Os rabinos, porém, desenvolveram a técnica de midrash que pela leitura poderia nos dar visões nos detalhes da lei judaica (midrash Agadá). Tão poderosa era essa forma de engajamento que a única maior instituição de judaísmo rabínico é nomeada por ela; o Bet Midrash, a “casa” ou “lar” do midrash.
Essencialmente, midrash é a ponte sobre o abismo do tempo entre o mundo do texto original, há trinta ou quarenta séculos, e nosso mundo no tempo e lugar atuais. O Midrash não pergunta “O que o texto significava então?”, mas sim, “O que o texto significa para mim agora?” Por trás do midrash há três princípios fundamentais de fé.
Primeiro, a Torá é a palavra de D'us, e assim como D'us transcende o tempo, também Sua palavra. Seria absurdo, por exemplo, supor que algum ser humano há mais de três mil anos poderia ter previsto smart phones, mídia social e estar online, 24 horas em 7 dias. Porém o Shabat fala exatamente daquele fenômeno e às nossas necessidades para um detox digital uma vez por semana. D'us fala conosco hoje nas inflexões insuspeitadas de palavras que Ele falou há três séculos.
Segundo, o pacto entre D'us e nossos ancestrais no Monte Sinai ainda existe hoje. Sobreviveu ao exílio da babilônia, à destruição romana, a séculos de dispersão, e ao Holocausto. A Torá é o texto daquele pacto, e nos mantém firmes.
Terceiro, os princípios da Torá mudaram muito pouco nos séculos passados. Com certeza, não temos mais um templo ou sacrifícios. Não mais praticamos pena capital. Mas os valores que estão na Torá são relevantes à sociedade contemporânea e à nossa vida individual na época que vivemos, Século 21. Portanto, não meramente lemos a Torá. Nós a trazemos ao nosso tempo, nossas vidas, nossa leitura mais atenta, e nossos compromissos existenciais mais profundos.
Minhas próprias crenças foram formadas naquela conversa continuada com o texto bíblico que é parte da mente judaica e da semana judaica. É por isso que, para enfatizar este envolvimento pessoal, decidi chamar as séries desse ano de Pacto e Conversação, de ‘Eu Acredito’, como uma maneira de dizer, que isso é como eu vejo o mundo, tendo ouvido o mais atentamente que posso à Torá e suas mensagens para mim agora.
A Torá não é um tratado sistemático sobre crenças mas é uma forma única de ver o mundo a reagir a ele. E numa era de escuridão moral, sua mensagem ainda brilha. Portanto, de qualquer forma, eu acredito. Que seja um ano de aprendizado e crescimento para todos nós.
Clique aqui para comentar este artigo