Escrita em 12 de Shevat, 5744 - 16 de janeiro de 1984
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Não tenho tido notícias de você desde sua carta de 25 de maio de 1983. Espero que seja um caso de "falta de notícias, boas notícias", e que o problema sobre o qual me escreveu, ou seja, enfrentar uma crise de fé devido a certas dúvidas e incertezas, tenha sido superado, ou pelo menos substancialmente aliviado, como freqüentemente acontece nestes casos.

Esta é uma das razões - sendo a principal a pressão do excesso de obrigações - o por quê da inusitada demora de minha resposta à sua carta. E também porque é difícil discutir tal assunto numa carta.

Na verdade, não há necessidade disso, pois não é um problema inusitado, e há uma vasta literatura (também em Inglês) que trata das perguntas levantadas em sua carta. Certamente é possível discuti-las pessoalmente com uma pessoa instruída, como um rabino estudioso e praticante.

Como você já me havia escrito, tentarei esclarecer (dentro dos limites de uma carta), algumas das incertezas mencionadas em sua missiva, tais como uma maneira de entender a diversidade de religiões no mundo, por que os judeus têm o compromisso de cumprir todas as 613 mitsvot da Torá, ao passo que o restante da humanidade, apenas sete, as chamadas Sete Leis de Nôach (naturalmente, com todas suas ramificações - o que também constitui um código moral Divinamente ordenado bastante substancial); como pode um judeu ter certeza de que a Religião Judaica e seu modo de vida é o verdadeiro e é superior a qualquer outro, etc.

Quando se trata de contemplar a existência de D'us, a pessoa deve antes de mais nada perceber que seres humanos finitos não conseguem apreender a 'mente' e 'pensamentos' do Criador"

A pessoa que observar sua própria mão, a princípio, pensará nela como parte de sua anatomia, algo que é capaz de realizar uma variedade de trabalhos manuais. Se pensar melhor, verá que a mão é constituída de muitas partes, como dedos e músculos que têm sua função específica, bem como funções que são realizadas em conjunto com outras partes, possibilitando que a mão realize tarefas mais delicadas, como escrever, por exemplo.

Em um nível mais profundo, há nervos e vasos que conectam a mão e os dedos ao cérebro e ao coração, que influenciam a qualidade da escrita, na medida em que expressa as idéias e sentimentos da pessoa que escreve, revelando até mesmo aspectos ocultos de seu caráter, como bem sabem os peritos em grafologia.

Poder-se-ia estender ainda mais esta análise, até o nível dos átomos e elétrons, etc. Dessa maneira, pode-se falar da mão humana e suas funções em níveis diferentes, desde o mais simples ao mais complexo, que não são mutualmente incompatíveis, desde que cada parte realize suas funções de maneira adequada e integral.

Se há tais complexidades, gradações e níveis no mundo físico, ainda que com um fator subjacente unificador, eles certamente estão presentes no mundo do metafísico e do espiritual.

Quando se trata de contemplar a existência de D'us, a pessoa deve antes de mais nada perceber que seres humanos finitos (mesmo o mais sábio dos homens) não conseguem apreender a "mente" e "pensamentos" do Criador, cujos atributos são essencialmente tão incompreensíveis quanto Ele Mesmo - exceto naquilo que Ele desejou revelar na Torá. Porém aquilo que é revelado na Torá é tão claro como a luz, que é uma das razões pelas quais a Torá é chamada Torá Or [Torá de luz]; de fato grande parte disso tem se tornado senso comum.

Ora, no que concerne ao ser humano, a Torá nos diz que ela tem evoluído pelo projeto do Criador em uma variedade de componentes, em vez daquele uniforme bloco massivo - assim como o corpo humano consiste de uma variedade de órgãos e partes, cada um com seu próprio objetivo e função, nada sendo inútil ou supérfluo. Pois, como dizem nossos Sábios, "O Criador não criou nada que fosse inútil neste mundo."

É claro, a pessoa poderia ficar imaginando por que D'us escolheu uma nação, de toda a humanidade, para dar-lhe Sua Torá e mitsvot, designando-a como "Um reino de cohanim (servos de D'us) e uma nação sagrada"? ou ainda, por que Ele permite tal variedade de crenças e práticas religiosas, algumas das quais em direto conflito com Sua ordem manifesta? Mas isso seria como perguntar: por que o corpo humano consiste de uma variedade de diferentes partes, desde o cérebro e coração até a sola dos pés? Ou ainda, por que D'us permite defeitos em um organismo que de outra forma seria perfeito?

Quanto a questão, tendo em vista as várias religiões e credos do mundo, cada qual reivindicando ser a verdade e superior a todos os outros, como um judeu pode ter certeza de que sua religião é a verdadeira?

Esta e outras questões relacionadas já foram tratadas extensamente pelo famoso clássico do século XII, o Livro de Kuzari, pelo grande filósofo Rabi Yehudá Halevi, que pode ser encontrado em inglês. Está bem documentado e baseado em provas capazes de enfrentar o escrutínio do método científico e senso comum.

Um princípio científico básico é que a primeira coisa a se fazer é ter certeza dos fatos, independentemente se parecem lógicos ou não, e então tentar encontrar a explicação correta. Isso foi expresso na máxima que conhecimento é derivado da realidade, e não vice-versa. Se de acordo com o raciocínio da pessoa a realidade fosse diferente, o erro estaria com o raciocínio, não com a realidade.

Um princípio básico mais desenvolvido do método científico é que a veracidade do testemunho é obrigatória quando ele é baseado na mais vasta gama de testemunhas e observações, substanciadas, além disso, pela experiência sob as mais amplas condições.

Nós judeus estamos certos de que 'Moshê é verdadeiro e sua Torá é verdadeira', pelas premissas dos eventos históricos do Êxodo e da Revelação no Sinai, que foram testemunhados e vividos por 600.000 homens adultos"

Como foi enfatizado no Kuzari, e em outras fontes através dos tempos, nós judeus estamos certos de que "Moshê é verdadeiro e sua Torá é verdadeira", pelas premissas dos eventos históricos do Êxodo e da Revelação no Sinai, que foram testemunhados e vividos por 600.000 homens adultos (sem contar as mulheres e crianças).

Aquilo que nossos ancestrais testemunharam e viveram, transmitiram a seus filhos e aos filhos de seus filhos, de geração em geração até os dias de hoje, pois nunca houve uma brecha ou interrupção em nossa história e tradição, desde o tempo de nosso primeiro Patriarca Avraham.

Assim, idêntica tradição nos foi transmitida por milhões de judeus de todas as esferas da vida, e corroborada pelo próprio modo de vida e comprometimento com as mesmas mitsvot da mesma Torá (o mesmo Shabat, o mesmo Tefilin, Mezuzá, etc.) de geração a geração, em países diferentes e sob condições diversas. Embora outros fatores que geralmente se associam com a preservação de outras nações e suas culturas étnicas - tais como território, independência política, idioma, modo de vestir, etc. - tenham mudado na vida judaica de tempos em tempos e de lugares para lugares, a Torá e mitsvot não mudaram na vida de todos os judeus. Este fato que corre como uma linha de ouro por toda nossa História Judaica não apenas confirma sem a menor sombra de dúvida a autenticidade de nossa Torá e mitsvot, como também demonstra qual é verdadeiramente o fator vital da constância que nos tem preservado como judeus sob todos os tipos de circunstâncias e crises, a saber, a Torá e mitsvot...

Nenhuma outra religião, sem exceção, mesmo aquelas cujos seguidores superam em número nosso povo judeu, pode reivindicar tal prova de autenticidade.

Pois se traçarmos uma linha até a origem dessas religiões, invariavelmente encontraremos que cada uma delas, sem exceção, está baseada num único fundador ou pequeno grupo de fundadores.

Conseqüentemente, apesar da multidão de seguidores, o cético poderia questionar a veracidade da revelação reivindicada pelo fundador original, se foi uma revelação profética genuína como afirmam ou talvez uma alucinação, e, no caso de um pequeno grupo de fundadores, se houve uma experiência genuína compartilhada, ou talvez uma conspiração, ou coisa semelhante.

Porém, é claro que estas dúvidas não se aplicam a respeito da Torá, especialmente porque as outras grandes religiões admitem claramente sua dependência fundamental em nosso Tanach (o assim chamado "Antigo Testamento"), com todos os eventos lá narrados, incluindo o Êxodo e a Revelação no Sinai - nossa própria prova enfática (caso provas fossem necessárias) de que "Moshê é verdadeiro e sua Torá é verdadeira."

Finalmente, há ainda um outro aspecto importante, que é também uma regra aceita pela ciência, a saber, confiar na autoridade de um perito reconhecido - uma regra fielmente seguida mesmo pela medicina, quando diretamente relacionada com saúde e vida; certamente não para dispensar, ou agir de forma contrária à opinião do especialista.

Os peritos, a respeito dos problemas delineados em sua carta, são as autoridades da Torá de todas as gerações, aqueles que dedicaram toda sua vida ao estudo da Torá e cujas vidas foram consagradas a viver pela letra e espírito da Torá e suas mitsvot.

Como tudo acontece pela Hashgachá Pratit (Divina Providência), e esta carta, há muito devida, foi escrita muito próxima a Yud Shevat, o Yahrzeit - Hilula de meu sogro, o Rebe, de abençoada memória, é oportuno lembrar sua vida e obra, que tocaram tantos judeus em todas as partes do mundo. Creio que você está ciente de sua total dedicação à preservação e, de fato, disseminação dos caminhos da Torá, mesmo sob os mais cruéis e anti-religiosos regimes totalitários. Logicamente, não havia a mais remota chance de que ele tivesse sucesso, especialmente após todos os outros líderes religiosos (não apenas judeus) terem sido silenciados ou eliminados. Mesmo assim, quando a situação atingiu um ponto crítico (em 1927), ele saiu vitorioso com a ajuda de D'us. Os frutos de sua vitória podem ser vistos mesmo agora, mais de meio século depois, nos homens, mulheres e crianças que emergiram da Cortina de Ferro como judeus fortes e integrais, e que são uma inspiração para todos aqueles que os encontram...