Pergunta:

Gostaria de saber sua opinião sobre aquele diálogo de Platão no qual Sócrates argumenta (com Euthyfro, creio) que os atos morais não são morais porque os deuses os amam, mas sim que os deuses amam os atos morais porque eles são morais (a discussão em si era sobre piedade). A filosofia contemporânea adotou a opinião de Sócrates. Porém, eu creio que a opinião da Torá – se é que entendi corretamente – é que Sócrates a entendeu ao contrário: o que torna o roubo etc. errado não é uma qualidade intrínseca no ato que nós, bem como D’us, podemos perceber. O que torna o roubo errado é que ele desagrada a D’us (ou que D’us decidiu que não deseja que roubemos).

Resposta:

O ponto crucial neste caso é que para Platão e Sócrates, as coisas são como são porque elas devem ser dessa maneira. O tempo e a matéria são entidades necessárias. Os princípios da geometria euclidiana são “verdades auto-aparentes” que não poderiam ser de outra forma. Essa noção percorre toda a Filosofia Grega. E talvez seja o ponto principal de divergência com o pensamento judaico.

O D’us judaico tem livre arbítrio. Ele escolheu tempo e espaço. Porém, Ele poderia da mesma forma ter escolhido inteiramente outros parâmetros. De maneira alguma podemos compreender o que aqueles parâmetros poderiam ser, pois Ele não os escolheu e portanto eles jamais vieram a existir, nem sequer em conceito. Porém, não há nada obrigatório sobre o tempo e o espaço em particular, ou sobre a maneira de eles funcionarem, que obrigue o Criador a criá-los. E o mesmo ocorre com as leis da lógica, causalidade, geometria, e sim, ética.

Este é verdadeiramente o conceito por trás do primeiro versículo da Torá, “No princípio D’us criou os céus e a terra.” Como você sabe, no Septuaginto, (a antiga tradução grega da Bíblia), D’us faz céu e terra – porque os gregos simplesmente não tinham uma palavra para criação a partir do nada. A ideia para eles era mais que absurda – nem sequer estava no léxico.

E ainda há mais: A forma ativa do verbo (D’us criou – não “céu e terra vieram a existir”) implica que esse foi um ato voluntário. Na verdade, quando o ato da Criação é descrito como “E D’us disse…”, Nachmânides traduz como “E D’us desejou…” Nada tinha de ser criado. Mas Ele criou, portanto estamos aqui.

A arrebatadora inclusão de “céu e terra” também tem implicações de peso. O céu geralmente é entendido na mitologia como a fonte de nossa existência aqui neste mundo. A maneira pela qual os deuses estão lá em cima é culpada por estarmos aqui em baixo. Porém, na Torá nada precede a nossa existência. D’us, que não pode realmente ser chamado de “uma existência”, deu origem a tudo a partir do vazio. Nada precede nossa existência, nem mesmo a ausência dela – pois não havia tempo segundo quase todos os pensadores judeus clássicos. Portanto não houve o antes. Ao criar nossa existência, D’us cria também a ausência dela – o que significa que também poderia não ser.

Portanto, o D’us judaico não pode ser chamado corretamente de uma “Causa Primordial”, pois isso implicaria um efeito necessário em consequência da causa. A existência do universo não tem causa. Não havia um potencial para um mundo existir precedendo-o. Nada. E assim, poderia ser feito de qualquer maneira que Ele quisesse que fosse feito.

Ética Desnecessária

Quanto ao assunto que você abordou, a ética. Se o cosmo fosse uma existência necessária, tanto em matéria quanto em forma, a pessoa teria de concluir que a ética necessária para sustentar este cosmo também é necessária. A questão de por que existe o mal no mundo teria de ser desconsiderada, presumindo que isso também é algo necessário, como um artefato da matéria da qual o mundo foi feito, ou alguma outra explicação semelhante. Porém, é assim que os rabinos colocaram este ponto num antigo Midrash (Bereshit Rabah):

No despertar da Criação do mundo, D’us contemplou os atos dos justos e os atos dos perversos… “E o mundo era caos e vácuo” (Bereshit 1:2) – estes são os atos dos perversos. “E D’us disse: ‘Que haja luz.’ (ibid. versículo 3) – estes são os atos dos justos. Porém, eu ainda não sei qual deles Ele deseja… Então, ao declarar ‘E D’us viu a luz, que é boa’ (versículo 4), eu sei que Ele deseja os atos dos justos, e não deseja os atos dos perversos.

O Midrash está dizendo: No primeiro dia da Criação, D’us disse que deveria haver luz. Porém, havia também trevas, caos e vazio. Então a Torá nos relata que D’us chamou a luz de dia e a escuridão Ele chamou de noite.

Os rabinos interpretam luz e escuridão num sentido mais amplo. À essa altura, já existem duas opções: os atos dos justos e os atos dos perversos. E nesse ponto, não há como saber qual deles D’us deseja. Não há nada intrínseco sobre o bem ou sobre D’us dizendo que deve escolher o bem.

O Livro de Iyov declara: “Se você pecar, como O afeta? Se suas transgressões se multiplicarem, o que você faz a Ele? Se você age corretamente, o que deu a Ele? O que poderia Ele receber de sua mão?”

Então, a história em Bereshit continua e diz: “E D’us viu a luz, que era boa.” Portanto agora sabemos que D’us preferiu desejar os atos dos justos. Porém, D’us não teve de escolher entre bem e mal. Ele poderia ter escolhido violência, roubo e todos os outros elementos destrutivos. Mais significativamente, Ele poderia ter escolhido que o bem e o mal permanecessem em constante conflito. Como o Báal Shem Tov explica este Midrash, D’us poderia ter decidido que a escuridão forma um belo cenário para a luz, e que o mal também é um bom pano de fundo para o bem. E Ele poderia simplesmente ter desejado que as coisas continuassem daquela maneira, eternamente. Ele não o fez – mas a opção estava lá.

Tolerar o Mal

Esta é a melhor explicação que eu conheço para o grande dilema do mal; como D’us criou “os céus e a terra,” e como Ele escolhe o bem e não o mal, então como o mal jamais veio a existir? Como pode ser que algo oposto à Sua vontade fosse derivado de Sua vontade? Uma vez que acreditamos em criação, incluindo, conforme Nachmânides descreve em detalhes, o próprio material do qual tudo é feito, não há ninguém nem nada a culpar pelo mal. Tudo vem d’Ele.

Se D’us odiasse o mal porque este se opõe a Ele em essência, este dilema seria intransponível. Uma vez que dizemos que Ele escolheu odiar o mal, o assunto é descartado. Pelo contrário, aquela mesma escolha de odiar o mal é a suprema fonte que traz o mal à existência por implicação. Afinal, não se pode odiar algo que não existe. Portanto o mal existe para que D’us pudesse desprezá-lo. Ou melhor, existe por causa do desprezo que D’us tem por ele.

Steve Goldstein, arquiteto, perdeu-se numa ilha sem nome no Pacífico Sul durante sabe-se lá quantos anos. Quando finalmente foram resgatá-lo, ficaram surpresos ao encontrá-lo como o único habitante de uma pequena cidade, toda projetada e construída por Steve Goldstein, arquiteto. Antes de partir, Steve fez uma volta turística com eles – mostrou-lhes a casa, o café, o supermercado, o cinema, o estádio esportivo, e finalmente, sua maior realização – a sinagoga. Porém, havia um edifício alto ao qual ele não os levou. Parecia ignorar todas as perguntas que lhe faziam sobre ele. Quando insistiram e persistiram, ele fez um gesto de assentimento e respondeu: “Ah, aquele. É a sinagoga que eu não frequento.”

Todos precisam de uma sinagoga à qual não vão. Toda história escrita tem um antagonista. Todo jogo apresenta um desafio. E D’us criou o mal. Como declarou o Profeta Yeshayáhu com toda a clareza: “Ele forma luz e cria escuridão, faz a paz e cria o mal” (Yeshayáhu 45:5). Sua vontade cria o bem e seu desdém cria o mal.

Os rabinos do Talmud (Yoma 69 b) dizem o mesmo num estilo próprio: Quando Yirmiyáhu testemunhou a destruição de Jerusalém e do Templo, ele gritou: “Onde está Sua percepção? Onde está Sua força? Os idólatras estão dançando em Seu Templo e Ele fica em silêncio!”

Mais tarde, na época do exílio da Babilônia, quando os Homens da Grande Assembleia estabeleceram uma versão padronizada de prece, eles precisaram escolher superlativos pelos quais louvar a D’us. E escolheram: “O poderoso e o impressionante D’us.” À pergunta de Yirmiyáhu, eles responderam: “É nisto que está Sua grandeza, é esta mesma Sua força. Ele vê aqueles que vão contra Ele e fica silente.”

D’us não é forçado a agir contra o mal, pois a própria existência do mal é por Sua opção. Ele pode se afastar (figurativamente, é claro, pois nós O entendemos como um Ser eminente e transcendente) e assistir ao desenrolar do drama.

Seu Livre Arbítro e o Nosso

Isso explica nosso âmbito do livre arbítrio: Como o bem e o mal existem pela vontade de Seu Criador, assim também são acionados pela vontade. Em outras palavras, nós, os atores neste drama, escolhemos o caminho de nosso drama, na direção do bem ou do mal, assim como o Autor escolheu que estes caminhos devem existir em primeiro lugar.

Os ciclos da natureza, os caminhos das estrelas, as leis do movimento, etc – em todos esses (i.e., na maior parte da nossa vida diária), não temos escolha. Somente em questões de escolher entre o bem e o mal é que temos uma opção. Não podemos fazer a primavera chegar antes do inverno, nem fazer os filhos mais velhos que os pais, ou fazer com que um mais um totalize cinco. Porém, podemos decidir não tratar mal o sujeito que trabalha na outra sala, ou doar algum dinheiro a mais para uma boa causa. Como diz o Talmud: “Tudo está nas mãos do Céu, exceto o temor ao Céu.”

Mas D’us também tem livre arbítrio em determinar estas leis e padrões? Como D’us é um agente livre em todas as coisas, também deveríamos ser!

Sobre isso, o quinto Rebe de Chabad, Rabi Shalom Dov Ber, assim pensava: Primeiro D’us escolheu o que seria o bem e o que seria o mal, e a dinâmica entre eles. Uma vez isso estabelecido, todas as coisas foram projetadas como pano de fundo para este drama. Como o drama já tinha sido escrito, o pano de fundo somente poderia ser projetado de uma maneira. Não havia opção. Portanto nós, também, não temos escolha nestes assuntos.

Ódio Absoluto

Um último ponto: a pessoa pode tomar um caminho errado sob a influência da discussão acima, presumindo que como D’us escolheu odiar o mal, este não importa realmente tanto para Ele, pois Ele sempre poderia dar meia volta e mudar de ideia. Na verdade, o oposto é verdadeiro. Quando algo é odiado por algum motivo, o grau de ódio é proporcional ao mérito daquele motivo. Mas quando, sem nada que force uma ou outra maneira, D’us escolhe a luz e não as trevas, esta é uma opção vinda da própria essência de D’us. É, portanto, completamente obrigatória.

D’us pode nos perdoar por escolher o mal, pois Ele está acima do drama. Porém Ele não perdoa o mal em si. Afinal, foi isso que Ele escolheu: que Ele odiará o mal com um ódio consumado, e por fim o terá destruído – que seja antes do que possamos imaginar.