Durante todo o tempo em que o Rebe esteve na fortaleza de Petropavlovsk, comitês especiais trabalharam reunindo e classificando todo o material disponível relativo às acusações contra o Rebe. Em seguida, foi chamado para interrogatório.
O interrogatório não teve lugar na fortaleza, mas sim em Tainy Soviet (Câmara Secreta do Conselho), e foi levado da fortaleza para Tainy Soviet repetidas vezes para o interrogatório. O rio Nieva separa a fortaleza de Tainy Soviet, e um funcionário especial costumava levá-lo numa pequena barca.
Rabi Yossef Yitschac relatou a seguinte história:
"Certa vez, enquanto viajava nesta barca, o Rebe quis recitar a bênção da lua nova. Pediu ao funcionário que parasse a balsa, mas este se recusou. O Rebe disse que, se assim o desejasse, poderia ele mesmo parar a embarcação. Como o funcionário ainda se recusasse, a barca parou por si, e o Rebe recitou o Salmo que precede a bênção, porém nada além disso; então a balsa continuou.
"O Rebe pediu novamente ao funcionário que parasse a embarcação. Esse exigiu uma recompensa, e o Rebe deu-lhe uma bênção escrita num pedaço de papel, de punho próprio. O barqueiro parou então a balsa, e o Rebe continuou com a recitação da bênção.
"Este funcionário tornou-se muito proeminente e rico e morreu em idade muito avançada. Ele guardou o bilhete escrito à mão, valorizando-o como uma preciosidade, emoldurado com grossa chapa de vidro adornada de ouro. O renomado chassid Rabi Dov Zeev de Yecatrinoslav viu este bilhete em posse do filho do funcionário, e pôde ler seu conteúdo."
"Eu tinha nove anos de idade quando ouvi esta história," continuou Rabi Yossef Yitschac, "e me perguntava por que o Rebe não dissera a bênção depois de ter feito a barca parar, não dependendo, assim, de favor algum. Porém, conforme fui crescendo e estudando Chassidut, vim a compreender que este acontecimento indica um conceito básico de serviço Divino. Tinha de ser daquela maneira, e apenas daquela maneira, pois a pessoa deve cumprir os mandamentos conforme estes estão revestidos nas leis e caminhos da natureza, e não através de meios sobrenaturais. Mesmo assim, a simples idéia de que a escrita de próprio punho do Rebe estava em posse de um não-judeu é, ela mesma, uma das magnas maravilhas do Onisciente."
Ao ser levado ante os juízes, perguntaram primeiro ao Alter Rebe se pertencia aos adeptos do Báal Shem Tov. Em outra ocasião, comentou que se tivesse respondido negativamente teria sido libertado imediatamente da prisão. Contudo, não queria se separar do Báal Shem Tov sequer por um segundo, nem mesmo através de palavras; e portanto respondeu afirmativamente.
Depois disso, colocaram à sua frente 22 questões referentes a:
- A ordem do Livro de Orações, que ele havia mudado,
- As facas de aço para abate ritual que introduzira,
- A diretriz que expediu a seus seguidores, para que rezassem demoradamente, o que poderia causar ausência do estudo da Torá,
- A publicação dos ensinamentos do chassidismo, e o fato de ele ter revelado a todos os aspectos místicos da Torá,
- A doutrina explanada em suas dissertações de que a emanação de "Reinado" é a de nível inferior, referindo-se a uma "terra" que, assim alegavam, é um aviltamento da própria idéia de reinado,
- Seu hábito de interromper ocasionalmente a prece com exclamações de "Haf, Af, Af," algo que o Báal Shem Tov também costumava fazer, e que os traidores interpretavam como uma prece a D'us para que direcione Sua ira contra o governo (a palavra "af" em hebraico literalmente significa "ira");
- Alocação de fundos para o sultão da Turquia, com a intenção de ajudar a depor o governo; e diversas outras acusações.
A última questão, relativa a seu ponto de vista expresso no final do capítulo I do Tanya, de que a alma animal dos judeus pertence à Categoria de Potencialidade, i.e., que pode ser desenvolvida para o bem; o que não acontece com as almas dos povos da terra. Elas provêm das forças negativas espirituais (kelipá) nas quais não há qualquer bem inerente.
O Alter Rebe respondeu a cada questão ponderando e pesando cuidadosamente cada palavra, com consideração, e não insultando ou subestimando os argumentos dos adversários.
À questão de "por que os chassidim rezam demoradamente, vindo, portanto, a perder tempo de estudo de Torá," o Alter Rebe respondeu:
"Há almas mais inclinadas e ligadas à Torá, e há almas mais inclinadas e ligadas à prece. Já encontramos esta distinção no Talmud. O Talmud menciona aqueles 'cuja Torá é seu chamamento.' Estes não interromperiam seus estudos pela prece. Rezam não mais que uma vez a cada trinta dias, e mesmo assim, por um curto período de tempo. O Shemá, que deve ser lido duas vezes ao dia, recitam-no muito breve e rapidamente, conforme está dito: 'ele costumava pegar a mão e passar sobre os dois olhos, e isto era a leitura do Shemá de Rabi Yehudá, o Príncipe.' Estas pessoas ocupavam-se primordialmente do estudo de Torá. Do outro lado, encontramos homens que costumavam rezar bastante: 'Os chassidim (homens pios) de antanho passavam nove horas por dia em orações.' Aqui, o Talmud questiona: 'Se é assim, o que acontece com seu estudo de Torá?' E o Talmud responde que por serem homens pios, sua Torá era melhor preservada. Disseram a respeito de Rabi Akiva que quando estava rezando, num momento encontrava-se num canto, e no momento seguinte em outro. Além disso, nossos sábios nos ensinam: 'Quem dera o homem rezasse o dia inteiro.' "
"Também atualmente," o Rebe continuou, "aqueles que seguem o Gaon de Vilna são almas com relação inata mais tendente à Torá; e os que seguem o Báal Shem Tov e seus discípulos são almas com maior tendência inata relativa à oração."
O Alter Rebe ficou muito perturbado com a questão relacionada a "Haf, Af, Af," pois fora forçado a revelar algumas profundas devoções do Báal Shem Tov, e a explicar seus costumes perante oficiais não-judeus. Conquanto pudesse satisfazê-los com diversas respostas, recusou-se a fazê-lo, não desejando se separar do Báal Shem Tov por um instante sequer, nem mesmo da maneira mais externa.
Em outro de seus discursos, Rabi Yossef Yitschac de Lubavitch disse:
"É público e notório que os doze últimos dias da estadia do Rebe na prisão foram os mais amargos. Durante aqueles dias, foi torturado com questões em excesso sobre tópicos como "O que é um judeu?" "O que é D'us?" "Qual o relacionamento dos judeus com D'us, e de D'us com os judeus?". O Rebe ficava em extrema agonia ao ouvir tais questões nos termos grosseiros dos interrogadores; e lágrimas, brotando de um coração alquebrado, desciam por suas faces. Não obstante, tinha de responder a todas as questões com explicações claras à tosca compreensão e conceitos dos interrogadores.
"Uma das questões lidava com um Midrash acerca do versículo 'D'us que fez Moshê e Aharon - Moshê e Aharon que fizeram D'us.' É bem compreensível como uma mente bruta interpretaria assunto tão delicado e espiritual.
"O Alter Rebe explicou que o Midrash queria dizer o seguinte: Com aqueles poderes sagrados através dos quais 'D'us fez Moshê e Aharon,' isto é, através dos quais foram imbuídos de força Divina em todos os assuntos da natureza, que erguendo a mão a água se transformaria em sangue (e as outras pragas do Egito), através destes poderes Divinos, Moshê e Aharon difundiram a idéia de Divindade no mundo, mostrando de maneira perceptível que D'us é o Criador e Governador do Universo, e tudo que nele está contido. Este é o significado da interpretação do Midrash: 'D'us que fez Moshê e Aharon.' A força que D'us lhes deu foi utilizada por Moshê e Aharon para revelar e propagar a Divindade no mundo."
Quando os interrogadores chegaram ao quesito em que perguntam por que o Rebe menciona em seus ensinamentos que o nível de "reinado" é o mais inferior, denegrindo assim a própria idéia de reinado, o Rebe disse que este assunto, em especial, requeria extensiva explanação que não poderia dar oralmente, mas prometera fazê-lo por escrito. Os interrogadores deram-lhe certo tempo, e o Rebe colocou por escrito uma réplica clara e adequada. Esta resposta fora escrita em hebraico, e enviada a dois tradutores para que a traduzissem para o russo. Um deles residia em Vilna.
Ao chegarem à última questão, acerca do primeiro capítulo do Tanya, já mencionado, o Rebe não respondeu. Ficou em silêncio, e podia se perceber um sorriso em seu rosto. Os juízes consideraram o silêncio e o sorriso como uma resposta, e não perguntaram mais. Após a libertação, o Rebe contou aos mais íntimos que com seu sorriso deu-lhes a entender o seguinte:
"Vocês mesmos viram que até agora forneci respostas adequadas a todas as 21 questões, e convenceram-se de que todas as minhas palavras são justas e sinceras. Assim sendo, quando eu responder a última questão, certamente ficarão convencidos de que minha opinião acerca das almas dos não-judeus também é justa. De que serventia teria para vocês tal explicação? Melhor que a pergunta continue sem resposta..." O Rebe acrescentou que seus interrogadores entenderam muito bem sua intenção, e concordaram.
Quando voltou para casa, um homem livre, o Rebe proferiu um discurso sobre o versículo "Pois não serviram, etc.," onde explica que júbilo (uma alusão a seu sorriso) tem o poder de adoçar o julgamento, etc., e acrescentou que realmente vivenciara isso em Tainy Soviet.
O Alter Rebe respondeu a todas as questões de tal maneira, com tão profunda sabedoria, que as respostas foram aceitas pelos juízes.
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