Por Jonathan Sacks - Rabino chefe da Inglaterra
Os direitos humanos estão para transformar-se numa nova cruzada contra os judeus? Faço esta pergunta com toda a seriedade, à luz da próxima Conferência Mundial sobre racismo, a ser realizada sob os auspícios das Nações Unidas em Durban.
Em sua forma atual, o documento que acompanha a conferência é pior que a notória declaração "Sionismo é Racismo" de 1975, que o Secretário Geral das Nações Unidas Kofi Annan descreveu como "o ponto baixo" na história das Nações Unidas. Se for encaminhada conforme os planos, será uma tragédia.
Os judeus são um povo bastante pequeno, menos de um quarto de 1 por cento da população mundial. Por direito, nossa voz sobre o assunto do racismo deveria ser insignificante. Deveria ser assim. Infelizmente, não o é por três razões.
A primeira é que o anti-semitismo é o ódio mais antigo do mundo. Nasceu muito tempo antes do nascimento do Cristianismo, e tem existido de forma incessante desde então. Adicionou novas palavras ao vocabulário da vergonha humana, dentre elas gueto, pogrom e Holocausto. Por mais tempo que qualquer outro povo, os judeus tiveram negados seus direitos, onde quer que estivessem. O resultado foi uma sucessão sem paralelos de perseguições, conversões forçadas, calúnias sangrentas, expulsões, inquisições e massacres.
Não há um status especial conferido às vítimas, mas os judeus sabem mais do que qualquer outro povo na terra o que significa viver num mundo sem direitos.
A segunda razão é sobre idéias. O conceito de direitos foi introduzido no Ocidente nos séculos dezessete e dezoito. Quando Hobbes e Locke estavam escrevendo seus tratados, o livro que tinham à sua frente era a Bíblia Hebraica. Quando Thomas Jefferson sentou-se para escrever as palavras imortais da Declaração Americana de Independência - "Consideramos clara estas verdades, que todos os homens são criados iguais e dotados por seu Criador com alguns direitos inalienáveis" - ele não estava se inspirando na filosofia da Grécia antiga. Nem Platão ou Aristóteles os teriam entendido, convencidos como eram de que alguns povos nascem escravos.
Aquelas verdades eram claras apenas a uma mente baseada no Livro do Gênesis, com sua declaração revolucionária de que todos os seres humanos são feitos à imagem de D'us; no Livro do Êxodo, com sua afirmação de que o verdadeiro D'us é aquele que liberta escravos; e nos profetas do antigo Israel, cuja mensagem de dignidade humana, justiça e paz ainda ressoa nos dias de hoje.
A linguagem dos direitos humanos é universal, mas fala com sotaque judaico.
A terceira razão é que não foi por acidente que a Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas foi feita em 1948. Era uma tentativa, na esteira dos Julgamentos de Nuremberg, de dar livre expressão à idéia de crime contra a humanidade. Isso não era óbvio. Significava que um indivíduo, obedecendo as ordens de um governo adequadamente constituído (Hitler chegou ao poder pelo voto democrático), buscando o interesse nacional como sua nação o concebia, pode mesmo assim ser culpado de um crime. Isso significou formular um conceito que transcendeu as leis normais de auto-determinação nacional.
O crime contra a humanidade foi o Holocausto. Lamento que tenha sido preciso a morte de um terço de meu povo antes que este conceito se tornasse parte da lei internacional.
Tristemente, então, a voz judaica não é estranha na batalha contra o racismo. É uma guerra na qual os judeus têm estado na linha de frente por mais de 3000 anos. É impensável que uma conferência internacional para ampliar a luta devesse, de fato, excluir a voz do povo que apostou sua própria existência no direito de ser diferente - na inerente e majestosa dignidade da diferença.
Mesmo assim, é isso que ameaça o documento de Durban do jeito que está atualmente. Acusa Israel de racismo, segregação racial, crimes contra a humanidade, e de constituir uma ameaça à segurança internacional. Avilta o Holocausto ao recusar-se a reconhecer sua singularidade, falando em "holocaustos", no plural e em minúsculas. Deixa de reconhecer o povo judeu como um alvo específico do racismo. Introduz o pior tipo de política em um documento que deveria estar acima da política.
De forma transparente, é um ataque a Israel, como nos lembrou o finado Martin Luther King: "Quando o povo critica o Sionismo, estão se referindo a judeus."
Se o documento continuar na forma atual, irá ferir a luta contra o racismo. Prejudicará a autoridade moral das Nações Unidas. Pior que tudo, ameaçará o próprio princípio que busca proteger: a dignidade da pessoa humana como um princípio que transcende as vicissitudes de conflitos particulares e sua resolução. Um programa contra o racismo deve estar escrupulosamente livre de qualquer possível acusação de que incorpora o próprio erro que visa corrigir.
Os céus sabem que o Estado de Israel não é perfeito. Mas desde que passou a existir por uma votação nas Nações Unidas há meio século, têm feito mais que a maioria das nações de seu tamanho e idade para honrar os direitos humanos. Tem fornecido um lar para refugiados de 103 países, falando 82 idiomas diferentes. Sob constante ameaça terrorista ou militar, possui imprensa livre, poder judiciário independente e uma democracia ativa, por vezes até mesmo hiperativa. Tem fornecido ajuda humanitária em zonas de conflito e desastre em todo o mundo. Mesmo atualmente, após o processo de paz de sete anos que terminou em violência, a grande maioria dos israelenses deseja a paz, e está preparada para pagar um alto preço por ela.
Israel não merece ser vilanizada pelo documento de Durban. O povo judeu não merece a tentativa de tornar invisíveis seus sofrimentos, do passado e do presente. Estas coisas não são justas nem sábias, e também, não são prováveis de ajudar a causa da tolerância e da paz. As Nações Unidas são uma nobre instituição, e a luta contra o racismo é uma causa de suprema urgência. Durban é importante demais para falhar. E somente pode ter sucesso se reconhecer igualmente todos os direitos. Não é tarde para fazer uma emenda no documento e resgatar uma das maiores oportunidades de nossa época.