Para quem não sabe, o micvê moderno parece uma piscina em miniatura. Numa religião rica em detalhes, beleza e ornamentação – contra o pano de fundo do antigo Templo ou até das modernas sinagogas – o micvê é surpreendentemente uma estrutura humilde, indescritível.

Sua aparência comum, porém, desmente seu lugar fundamental na vida e na lei judaicas. O micvê oferece ao indivíduo, à comunidade, e à nação de Israel o notável presente da pureza e santidade. Nenhum outro estabelecimento, estrutura ou rito religioso pode afetar o judeu desta maneira e na verdade, num nível tão essencial. Seu poder extraordinário, porém, é vital em sua construção segundo as numerosas e complexas especificações delineadas na Halachá, a Lei Judaica.

Os corpos naturais de água do mundo – oceanos, rios, poços, lagos – são micvaot em suas formas mais primárias. Contêm águas de fonte divina e assim, ensina a tradição, o poder de purificar. Criados antes que a terra tomasse sua forma, estes corpos de água oferecem uma rota quintessencial para a consagração. Porém eles também possuem dificuldades. Essas águas podem ser inacessíveis ou perigosas, para não mencionar os problemas do clima e da falta de privacidade. A vida judaica precisa portanto da construção de micvaot (“piscinas”) e na verdade, isto tem sido feito pelos judeus em todas as épocas e circunstâncias.

Em resumo: um micvê deve ser construído no solo ou como parte essencial de um edifício. Receptáculos portáteis, como banheiras, hidromassagens ou Jacuzzis, nunca podem funcionar como micvaot. O micvê deve conter um mínimo de duzentos galões de água da chuva que foi recolhida ou sifonada para dentro do micvê segundo um conjunto específico de regulamentos. Em casos extremos onde a aquisição de água da chuva é impossível, gelo ou neve originados de uma fonte natural podem ser usados para encher o micvê. Como ocorre com a água da chuva, um complicado sistema de leis cerca seu transporte e manuseio.

O observador casual geralmente verá apenas uma piscina – aquela usada para imersão. Na verdade, a maioria dos micvaot são compostos de duas, às vezes três, piscinas adjacentes. Enquanto a água da chuva acumulada é mantida em uma piscina, a piscina de imersão adjacente é drenada e reenchida regularmente com água da torneira. As piscinas compartilham uma parede comum que tem um buraco com pelo menos cinco centímetros de diâmetro. O livre fluxo, ou “beijo” das águas entre as duas piscinas torna as águas da piscina de imersão uma extensão da água natural da chuva. Conferindo assim à piscina de imersão o status legal de micvê. (A descrição acima é um dos dois métodos sancionados pela Halachá para atingir essa meta).

As piscinas de micvê modernas são equipadas com sistemas de filtragem e purificação de água. As águas do micvê geralmente chegam à altura do peito e são mantidas a uma temperatura agradável. O acesso à piscina é feito por escadas. (Micvaot acessíveis a pessoas doentes ou com incapacidades físicas são equipadas com elevadores).

O micvê como instituição é vítima de um equívoco popular. A imersão na água está naturalmente associada com purificação. Para complicar ainda mais a questão, os judeus historicamente eram barrados com frequência pelas autoridades de usarem os rios da cidade para banhar-se. Como resposta eles construíram casas de banho, muitas com micvaot ou perto deles. Juntos, estes fatores forjaram um elo inextricável entre a ideia de micvê e higiene física. Mas o micvê nunca foi um substituto mensal para um banho ou ducha. De fato, a Halachá estipula que a pessoa deve estar escrupulosamente limpa antes de imergir. Para facilitar essa exigência, áreas de preparação – com banhos e chuveiros, xampus, sabonetes e outros produtos de limpeza e de beleza – fazem parte do micvê moderno.

Até relativamente pouco tempo, a maioria dos micvaot podia ser descrito mais como utilitário: função, não conforto, ditavam seu estilo. Uma nova percepção entre as mulheres judias modernas, o rabinato e líderes da comunidade nas últimas décadas tem lançado uma nova tendência na construção de micvaot. Micvaot lindos, até luxuosos – completos com espaços elegantes e salas de espera, áreas de preparação completamente equipadas, e piscinas bem desenhadas – estão sendo construídos em todo o país e ao redor do mundo. Alguns micvaot rivalizam com luxuosos spas europeus e oferecem aos usuários mais amenidades do que poderiam desfrutar em casa.

Em comunidades com grande número de usuários de micvaot, o prédio pode abrigar até vinte ou trinta áreas de preparação, e duas a quatro piscinas de imersão. Nesses locais, um sistema de intercomunicação ligando cadaum dos aposentos a uma mesa central e um atendente garante a privacidade dos usuários do micvê. Alguns dos prédios maiores incluem salas de conferência usadas para visitas e programação educacional.

Atualmente não é apenas uma metrópole judaica que pode se gabar de ter um micvê. Em locais remotos, até exóticos – Anchorage, no Alasca, e Bogotá, na Colômbia; Yerres, França, e Ladispoli, Itália; Agadir, Marrocos, e Assunção, Paraguai; Lima, Peru, e Cidade do Cabo, na África do Sul; Bangcoc, Tailândia, e Zarzis, na Tunísia; e quase toda cidade na antiga União Soviética – há micvaot casher e confortáveis, e rabinos e rebetsins capazes de prestar assistência a qualquer mulher em seu uso. Em muitas comunidades pode-se fazer um tour pelo micvê. Ao chegar a uma nova cidade ou quando estiver viajando, informações sobre micvaot na região podem ser obtidas telefonando ao escritório local do micvê, a uma sinagoga ortodoxa, ou ao Beit Chabad.

A imersão no micvê tem oferecido um portal para a pureza desde a criação do homem, O Midrash relata que após ser banido do Éden, Adam entrou num rio que fluía do Jardim. Esta foi uma parte integrante de seu processo de teshuvá (arrependimento), sua tentativa de retornar à perfeição original.

Antes da revelação no Sinai, todos os judeus foram ordenados a imergir em preparação para ver-se face a face com D'us. No deserto, o famoso “poço de Miriam” servia como micvê. E a indução de Aharon e seus filhos ao sacerdócio foi marcada pela imersão no micvê.

Na época do Templo, os sacerdotes e os judeus que desejavam entrar na Casa de D'us tinham primeiro de imergir num micvê.

Em Yom Kipur, o mais sagrado dos dias, o Sumo Sacerdote podia entrar no Santo dos Santos, a câmara mais interior do Templo, na qual nenhum outro mortal podia entrar. Este era o zênite de um dia que envolvia uma ordem ascendente de serviços, cada um dos quais precedido pela imersão no micvê.

Os usos básicos do micvê atualmente são delineados na Lei Judaica e remontam ao alvorecer da história judaica. Abrangem muitos elementos da vida judaica. O micvê é parte integrante da conversão ao Judaísmo. O micvê é usado, embora menos conhecido, para a imersão de panelas, vasilhas e utensílios antes de serem usados por um judeu. O conceito do micvê é também o ponto focal da taharah, o rito de purificação de um judeu antes que seja colcoado para descansar e a alma suba ao alto. O derramar manual de água de uma maneira altamente específica sobre o corpo inteiro do falecido serve a esse propósito.

O micvê também é usado por homens em várias ocasiões; com a exceção da conversão, são todas costumeiras. A mais largamente praticada é a imersão pelo noivo no dia de seu casamento, e por todo homem antes de Yom Kipur. Muitos homens chassídicos usam o micvê antes de cada Shabat e feriado, alguns até fazendo uso do micvê todo dia antes da prece matinal (em cidades com grandes populações de judeus observantes, micvaot especiais para homens facilitam esses costumes). Porém o uso mais importante e geral do micvê é para purificação pela mulher menstruante.

Para a mulher casada que menstrua, a imersão no micvê é parte de uma estrutura mais ampla conhecida como Taharat Hamishpachá (Pureza Familiar). Como em toda área da prática judaica, a Pureza Familiar envolve um conjunto de leis detalhadas: ou seja, o “quando”, “o quê” e “como” da observância. Estudar com uma mulher que seja experiente neste campo é a maneira honrosa de ganhar familiaridade e conforto com a prática. Nas cidades ou comunidades com grandes populações judaicas, podem haver muitas classes das quais se pode participar. A maioria das mulheres, no entanto, aprende através de um encontro mais pessoal, com uma pessoa. Embora os livros sejam um fraco substituto para uma professora experiente, alguns títulos selecionados podem ser usados como um guia para este ritual ou para rápida referência (veja uma lista de livros sugeridos num apêndice deste artigo). O que se segue é apenas um breve resumo destas leis. Não é, e não tinha a intenção de ser, um substituto para o estudo adequado deste tema.

A Pureza Familiar é um sistema atribuído ao ciclo mensal da mulher. A partir do início da menstruação e por sete dias após o seu término, até que a mulher faça a imersão no micvê, marido e mulher não podem ter relações sexuais. Para evitar a violação desta lei, o casal deve evitar ser indulgente em ações que consideram excitantes, colocando um freio no contato físico direto e abstendo-se de manifestações físicas de afeição. O termo técnico para uma mulher nesse estado é Nidá (significado literal: estar separada).

Exatamente uma semana após a cessação do fluxo, a mulher visita o micvê. A imersão ocorre após o cair da noite do sétimo dia e é precedida por uma purificação obrigatória. A imersão é válida somente quando as águas do micvê envolvem toda e cada parte do corpo e na verdade, cada fio de cabelo. Para isso, a mulher toma banho, lava o cabelo, penteia-se tirando todos os nós existentes, e retira do corpo tudo que possa impedir a imersão total.

A imersão no micvê é o ponto alto da disciplina Taharat Hamishpachá. É um momento especial para a mulher que aderiu às muitas nuances da mitsvá seguindo da melhor maneira que lhe foi possível as instruções e preparativos até chegar a esta noite. Às vezes, no entanto, a mulher pode estar se sentindo apressada ou ansiosa por motivos relacionados ou não-relacionados a este ritual.

A essa altura, ela deve relaxar, passar alguns momentos contemplando a importância da imersão, e de maneira não apressada, descer até as águas do micvê. Após imergir uma vez, enquanto está de pé nas águas, a mulher recita a bênção apropriada para a purificação ritual e então, segundo o costume largamente difundido, imerger mais duas vezes [ou sete, o que dependerá do costume que era adotado pela sua mãe, no caso dessa também ter cumprido a mitsvá da Pureza Familiar] . Muitas mulheres usam essa hora auspiciosa para dirigir suas preces pessoais a D'us. Após a imersão, marido e mulher podem retornar às relações conjugais.

Antes de explorar as dimensões mais profundas desse ritual, vamos examinar brevemente a centralidade do micvê na vida judaica. A maioria dos judeus, até aqueles que se consideram seculares, estão familiarizados, pelo menos conceitualmente, com observancias religiosas como o Shabat, as leis dietéticas, Yom Kipur e muitas outras leis da Torá. Micvê e Pureza Familiar, porém, estão nubladas pela obscuridade – páginas rasgadas do livro, por assim dizer.

Porém a observância da Pureza Familiar é bíblica, da mais alta ordem. A infração desta lei é igualada a transgressões importantes como comer chamets (alimentos fermentados) em Pêssach, violação intencional do dia sagrado de Yom Kipur, e não entrar no pacto através da circuncisão ritual, o brit milá.

A maioria dos judeus vê a sinagoga como a instituição central na vida judaica. Porém a Lei Judaica declara que construir um micvê tem precedência até sobre construir uma sinagoga. Tanto a sinagoga quanto um Rolo de Torá, o o tesouro mais venerado do Judaísmo, podem ser vendidos para levantar fundos para construir um micvê. De fato, aos olhos da Lei Judaica, um grupo de famílias judias vivendo juntas não atingem o status de uma comunidade se não houver um micvê comunitário.

Isso por um motivo simples: a prece comunitária e privada podem ser feitas praticamente em qualquer local, e condições para as funções sociais da sinagoga podem ser encontradas em toda parte. Mas a vida conjugal judaica, e portanto o nascimento das futuras gerações de acordo com a Halachá, somente é possível onde há acesso a um micvê. Não é exagero, portanto, declarar que o micvê é a pedra fundamental da vida judaica e o portal para um futuro judaico.

Já determinamos que a função do micvê não é aumentar a higiene física. O conceito de micvê está enraizado no espiritual. A vida judaica é marcada pela noção de Havdalá – separação e distinção. Na noite do sábado, quando o Shabat acaba dando início a uma nova semana, os judeus são lembrados das fronteiras que delineiam todo aspecto da vida. Sobre um copo de vinho casher o judeu santifica e bendiz a D'us que “separa entre o sagrado e o mundano, entre luz e trevas, entre Israel e as nações, entre o sétimo dia e os seis dias de trabalho…”

De fato, a definição literal da palavra hebraica kodesh – geralmente traduzida como “sagrado” – é aquilo que é separado, segregado do restante para um propósito único, para a consagração. Em muitas maneiras o micvê é o umbral separando o profano do sagrado, porém há mais. A imersão no micvê assinala uma mudança de status – mais corretamente, uma elevação de status. Sua função ímpar está no poder de transformação, sua capacidade de efetuar a metamorfose.

Os utensílios que não poderiam ser usados podem, após a imersão, ser utilizados no sagrado ato de comer como um judeu. Uma mulher, que desde o início da menstruação estava separada fisicamente do marido, após a imersão pode se reunir com ele na suprema santidade da intimidade que une o casal.

Homens e mulheres na época do Templo, que eram afastados dos serviços por causa de profanação ritual, podiam, após a imersão, subir ao Monte do Templo, entrar na Casa de D'us e envolver-se nas oferendas de sacrifício e similares.

No caso de imersão por um não judeu nas águas do micvê, após todo o processo que pasou para sua conversão, possui um significado tocante; o indivíduo que desce ao micvê como um gentio, emerge das suas águas como um judeu.

Os mandamentos de D'us, as 613 ordens conhecidas como mitsvot, são divididas em três categorias distintas:

Mishpatim são aquelas leis governando o tecido civil e moral da vida; são lógicas, prontamente entendidas, e largamente apreciadas como centrais no alicerce e na manutenção de uma sociedade sadia. Exemplos são a proscrição contra assassinato, roubo e adultério.

Eidut são aqueles rituais e ritos mais bem descritos como testemunhais. Essa categoria inclui os muitos atos religiosos que lembram os judeus dos momentos históricos em sua história, e servem como testemunha das crenças cardeais da fé judaica, como a observância do Shabat, a celebração de Pêssach, e a colocação de uma mezuzá sobre o batente.

Chukim a terceira categoria, são princípios supra-racionais; são decretos Diviinos sobre os quais a mente humana não pode formar julgamento. Os chukim desafiam completamente o intelecto e entendimento humanos. Desde tempos imemoriais eles têm sido uma fonte de diversão, alvo de zombaria e uma presença desconfortável e vergonhosa aos detratores da observância judaica. Para o judeu observante, eles personificam uma mitsvá no que ela tem de melhor; um caminho puro, não adulterado, de conexão com D'us. Essas mitsvot são reconhecidas como as maiores, capazes de afetar a alma em seu nível mais profundo. Não afetados pelas limitações da mente humana, esses estatutos são praticados somente por uma razão: o cumprimento da vontade da palavra de D'us. Como exemplos temos as leis da cashrut, a proibição contra usar shatnez (roupas contendo uma mistura de lã e linho), e as leis da pureza ritual e micvê.

Há reflexões que podem ajudar a acrescentar dimensão e significado à experiência no micvê, embora pertençam a classificação de chuk.

No princípio havia apenas água. Um composto maravilhoso, a fonte básica e fator de vida e sustento e, por extensão, da vida como a conhecemos. Porém o Judaísmo ensina que seu significado vai muito além, pois esses mesmos atributos – a água como fonte e sustento da energia – são espelhados em outra dimensão: a água tem o poder de purificar; restaurar a vida ao nosso ser espiritual, nossa alma.

O micvê personifica tanto o útero quanto o túmulo; os portais para a vida e para o que vem após a vida. Em ambos uma pessoa é despida de todo poder e orgulho. Nos dois há uma questão de total confiança, completa abdicação de controle. A imersão no micvê pode ser entendida como um ato simbólico de auto-abnegação, a suspensão consciente do ser como força autônoma. Ao fazê-la, o judeu que imerge mostra um desejo de atingir a união com a fonte de toda a vida, de retornar à unidade primitiva com D'us. A imersão indica o abandono da própria forma de existência para adotar uma infinitivamente mais elevada. Quando cumpre esse item, a imersão no micvê é descrita não apenas em termos de purificação, revitalização e rejuvenescimento, mas também como renascimento.

Mas a menstruação das mulheres já foi tratada pelas sociedades antigas com consternação. Mulheres mesntruadas eram evitadas, até desprezadas e deixadas de lado. Muitas vezes, colocavam nelas a culpa por tragédias e problemas, como se tivessem trazido ao ambiente poluição. Infelizmente uma forma primitivade pensamento.

A Torá sempre retratou o período de menstruação, como um estado de ausência da pureza, assim como a escuridão é a ausência de luz, pois a mudança física está associada ao plano espiritual. Somente a imersão no micvê, seguindo os preparativos exigidos, tem o poder de mudança sobre o status da mulher impura para pura em todas as dimensões.

O conceito de pureza e impureza conforme ordenado pela Torá e aplicado na vida judaica é único, não tem paralelo ou equivalente nesta era pós-moderna. Talvez seja por isso que é difícil para a mente contemporânea entender e vê-la como relevante.

Nos tempos antigos, porém, tumá e tahará eram fatores centrais e determinantes. O status de um judeu – se ele ou ela era, ritualmente puro ou impuro – estava no âmago do modo de vida judaico; ditava e regulava o envolvimento da pessoa em todas as áreas do ritual. Mais notavelmente, a tumá tornava impossível a entrada no Templo sagrado, e a oferenda de sacrifício inacessivel.

Havia numerosos tipos de impureza que afetavam os judeus – referentes tanto à sua vida quanto ao serviço do Templo – e um número equivalente de processos de purificação. A imersão no micvê era o ponto alto do rito de purificação em todos os casos. Até para os ritualmente puros, ascender a um nível mais elevado de envolvimento espiritual ou santidade necessitava da imersão no micvê. Assim, a instituição do micvê assumia o centro da vida judaica.

Em nosso tempo, neste período pós-Templo, o poder e interação do status ritual desapareceu, relegando essa dinâmica à obscuridade. Existe, no entanto, uma arena na qual pureza e impureza continuam a ser importantes. Nessa conexão há apenas uma ordem bíblica para a imersão no micvê – e esta é referente à sexualidade humana. Para entender por que é assim, devemos primeiro compreender como a Torá vê a sexualidade.

A alegada incompatibilidade entre sexualidade e espiritualidade – mais precisamente, sua natureza contrária – é uma noção que, embora estranha ao pensamento da Torá, é atribuída por muitos à filosofia judaica sob a rubrica mais ampla e completamente mítica de um credo “Judaico-Cristão”. Poucos conceitos foram mais prejudiciais que este equívoco largamente difundido. Num flagrante contraste com o dogma cristão – no qual o casamento é visto como uma concessão à fraqueza da carne, e o celibato é louvado como uma virtude – a Torá confere ao matrimônio uma posição exaltada e sagrada. Dentro dessa união consagrada, a expressão da sexualidade humana é uma ordem, uma mitsvá. De fato, é a primeira mitsvá na Torá e um dos mais sagrados de todos os feitos humanos.

Além disso, o sexo humano traz a possibilidade e o potencial para uma nova vida, a formação de um novo corpo e a descida de uma nova alma do céu. Ao se fundirem, homem e mulher tornam-se parte de algo maior; em sua transcendência do ser, eles atraem, e até tocam, o Divino. Entram numa parceria com D'us; chegam mais perto de aceitar o atributo divino do Criador. Na verdade, o sagrado da união íntima permanece não mitigado até quando a possibilidade de concepção não existe. No sentido metafísico, o ato e seu potencial permanecem ligados.

A sexualidade humana é uma força primária na vida de um casal; é a linguagem única e expressão do amor que partilham. Um relacionamento forte entre marido e mulher não é somente a base de sua própria unidade familiar, mas é integrante do mundo como um todo. Pois as bênçãos de confiança, estabilidade, continuidade e até comunidade, fluem do compromisso que eles têm um com o outro e com um futuro em comum.

Ao reafirmar seu compromisso, em sua intimidade, o casal aumenta a vibração e a saúde de sua sociedade, de humanidade e até da fruição do plano Divino; um mundo aperfeiçoado pelo homem. Em sua reunião privada, pessoal, eles são criadores da paz, harmonia e cura – numa escala microcósmica, mas com reverberações macrocósmicas – e assim estão engajados na mais sagrada das atividades.

À essa luz, fica claro por que as relações conjugais com frequência são mencionadas como o Templo Sagrado do esforço humano. E a entrada no Sagrado sempre foi, e continua a ser, obrigatório na pureza ritual.

Embora não possamos atualmente servir a D'us num Templo físico em Jerusalém, podemos erigir um santuário sagrado dentro de nossas vidas. A imersão no micvê é o portal sagrado e fértil do casamento.

As leis da Pureza Familiar são uma ordem Divina. Não há motivo melhor, mais legítimo, mais lógico ou essencial para sua observância. É um mandamento difícil, uma disciplina que faz exigências em nosso tempo, nossa psique, e nossas emoções. É uma força em contraste com a carne, uma maneira de vida que a pessoa comum não escolhe ou resolve. Pede uma suspensão temporária da auto-determinação, a subserviência dos nossos desejos mais íntimos a uma ordem de uma autoridade mais elevada. E nisso está a potência da mitsvá. O conhecimento de que é baseada em algo maior que o ser – que não é baseada nas emoções ou decisão subjetiva de um ou do outro – permite que Taharat Hamishpachá funcione para o benefício mútuo da mulher e do marido. Ironicamente, esta mitsvá “inconcebível” revela suas bênçãos a nós, mais que qualquer outra, de maneiras diárias, palpáveis. Suas recompensas são proporcionais ao desafio da observância.

À primeira vista, o sistema de micvê fala de limitações e restrições – perda da liberdade. Na verdade, a emancipação nasce da restrição. Crianças (e adultos) seguros, bem ajustados, confiantes são crianças disciplinadas; entendem os limites e aprendem o autocontrole. Países seguros e estáveis são aqueles pedaços de terra cercados por fronteiras definidas e bem guardadas. O desenho de parâmetros cria terra firme no meio do caos e da confusão e permite a travessia daquilo a que chamamos “vida” de maneira progressiva e produtiva. E nenhuma área da vida é mais necessária que isto em nossos relacionamentos mais íntimos.

A árvore do Conhecimento

“De toda árvore do jardim você podem comer mas da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal não devem comer…” Assim D'us ordenou a Adam e Eva no dia de sua criação. Mas eles desobedeceram naquela fatídica tarde de sexta-feira, e a história da humanidade foi alterada para sempre.

A natureza complicada da sexualidade humana tem sua genesis neste capítulo histórico. Pois a Árvore do Conhecimento continha uma mistura de bem e mal, e indulgência neste “conhecimento” pelo homem primitivo introduziu uma nova ordem no mundo: um mundo onde o bem e o mal se misturaram, um mundo de confusão e desafio, múltiplas escolhas, e potencial infinito.

Nunca mais as relações íntimas – uma entre muitas funções biológicas – seria tão natural e descomplicada como as outras. O banimento do Jardim do Éden significou a introdução de uma nova sexualidade; uma repleta de possibilidade e fragilizada pela tensão. Seria a chave para grande êxtase e dor excruciante, a realização mais tentadora e a sensação mais devastadora de vácuo. Uma união significativa precisaria de um compromisso inequívoco e constante nutrição por parte do homem e da mulher. Mas até o máximo esforço empregado pelo homem teria de ser aumentado com a ajuda vinda do Alto. A bênção iria fluir de um reservatório chamado micvê, e o Éden como era antes do pecado seria inatingível.

Casamento sem tédio

Por mais estranho que possa parecer, o micvê oferece aos casais a possibilidade de repetir “luas de mel” no decorrer de seu casamento. O tédio, um estado aparentemente inócuo de ser, pode destruir qualquer relacionamento e enfraquecer o seu alicerce. A separação mensal obrigatória proporciona um balanço equilibrado que ocila entre sensações de saudade e desejo – pelo menos, um senso de apreciação – que é seguido pelo excitamento do reencontro.

No decorrer da vida, a disponibilidade sexual aberta pode levar a uma diminuição do desejo e até do interesse. O hiato mensal ensina os casais a valorizar o tempo que podem e é apropriado para permanecerem juntos e dá a eles algo pelo qual esperar, ansiar e se preparar quando estão separados. Todo mês eles são separados – nem sempre quando é conveniente ou fácil – mas eles esperam um pelo outro. Contam os dias até poder ficarem juntos, e a cada vez há uma nova qualidade em sua reunião. Sobre isso o Talmud declara: “Para que ela seja tão amada como no dia do casamento.”

O relacionamento homem-mulher floresce num modelo de afastamento e retorno. A Torá ensina que Adão e Eva em sua forma original foram criados como um ser andrógino. Depois, D'us os separou, garantindo assim independência por um lado e por outro a possibilidade de uma união opcional. Homens e mulheres têm sido separados e juntados desde então. O sistema de micvê garante ao casal esta dinâmica necessária. Dentro de seu compromisso de viverem juntos e serem para sempre leais um ao outro, dentro de sua monogamia e segurança, ainda há este mecanismo semelhante a uma fonte em funcionamento.

D'us queria que o homem e a mulher se encontrassem e trabalhassem naquela busca – não apenas uma vez, mas constantemente – num processo contínuo de se tornarem “uma só carne”.

Afastamento e reaproximação

Os seres humanos partilham uma tendência intuitiva praticamente universal para o proibido. Shelomô, o mais sábio de todos os homens, falava sobre “águas roubadas que são mais doces”. Quantos indivíduos inteligentes colocaram em risco seu casamento e família na busca pelo ilícito por causa de sua aparente promessa do romântico e do novo? O micvê introduz um cenário novo; o cônjuge da pessoa – sua parceira na vida, dia após dia, para o melhor e para o pior – se torna temporariamente inacessivel, proibida, fora dos limites. Com frequência isso dá aos casais motivo e oportunidade para considerar o outro como novidade. Neste espaço de tempo “afastado”, sob este novo ponto de vantagem, eles se veem e se aproximam contribuindo com a valorização da troca de palavras e gestos.

Temperando o tempo

A disciplina Taharat Hamishpacha é útil também em outras maneiras: a flutuação e disparidade no desejo sexual jamais podem ser completamente aliviadas. Porém o regulamento no sistema micvê serve para aliviar tensões que surgem a partir disso. Para casais que devem se abaster por um mínimo de doze dias por mês, o tempo que têm juntos é tempo precioso para ambos, um tempo que valorizam e saboreiam.

Para muitas mulheres, seu tempo como nidá também oferece uma medida de solidão e introspecção. Há, além disso, uma sensação fortalecedora de autonomia sobre seus corpos e, na verdade, sobre o relacionamento sexual que partilham com seus maridos. Há força e conforto no conhecimento de que seres humanos não podem satisfazer todo capricho nem serem possuídos a qualquer instante.

Os benefícios trazidos à vida conjugal pela prática da Pureza Familiar têm sido reconhecidos por numerosos especialistas, tanto judeus quanto não-judeus. Para assegurar, este tipo de análise, como qualquer outro, está sujeito a argumento e crítica. Em última análise, porém, a força do micvê sobre o povo judeu – a promessa de esperança e redenção – está enraizada na Torá e flui de uma crença em D'us e em Sua perfeita sabedoria.

A primeira imersão

O Judaísmo clama pela consagração da sexualidade humana. Não basta que a intimidade nasça do compromisso e da exclusividade, deve ser sagrada. Assim, a primeira vez obrigatória para a imersão no micvê está no limiar do casamento.

O micvê antes do casamento, estritamente falando, não é obrigatório sobre um compromisso com a observância regular da Pureza Familiar. Mesmo assim, não deve ser entendido como não relacionado a esta estrutura mais ampla. É simplesmente a primeira vez que uma mulher judia é ordenada a se purificar desta maneira. E é uma maneira impressionante e auspiciosa de começar uma nova vida junto com seu marido.

Após aprender os detalhes e lhes dar a devida consideração, o micvê é um ritual que pode facilmente ser incorporado nos preparativos pré-casamento por toda noiva e todo noivo judeus. A data do casamento deve ser planejada tendo em vista o ciclo mensal da noiva, permitindo assim sua imersão antes das núpcias.

Uma tremenda quantidade de tempo e energia é gasta ao planejar um casamento. Há uma inata esperança humana de que um casamento perfeito seja equivalente a um começo de vida perfeito. Porém a maioria reconhece suas limitações humanas. Aquilo que eles mais precisam e desejam – saúde, boa sorte e filhos – estão além do nosso controle. Quando dizemos a antiga saudação de mazal tov, estamos oferecendo uma prece a D'us pedindo que Ele abençoe o novo casal com abundante bondade. A imersão no micvê é uma maneira importante de atrair D'us e Suas bênçãos para o casamento.

Nunca é tarde para começar

Enquanto uma mulher menstruar, seu ciclo mensal dita o ritmo das relações conjugais dentro do casamento, e a cada mês é uma mitsvá marido e mulher se renovarem com as águas do micvê. Para aqueles que ainda não fizeram um compromisso para toda a vida no início da vida conjugal, nunca é tarde demais para começar a seguir as leis da Pureza Familiar. Da mesma forma, embora a observância deva ser contínua, não se deve permitir que um lapso de tempo impeça esse comprometimento. Esta prática também não depende da observância de outros preceitos da Torá. O micvê não é, como frequentemente se pensa, o domínio exclusivo de quem é religioso.

Mesmo que eles não estejam preparados para aderir a essas leis todas as vezes, mulheres e seus maridos deveriam dar especial consideração a essa mitsvá antes da concepção de seus filhos. O micvê, assim somos ensinados, é o condutor para atrair uma alma sagrada revestida num corpo receptivo e saudável.

Após a menopausa

Para a mulher pós-menopausa, uma imersão final no micvê oferece pureza para o resto de sua vida. Até mesmo uma mulher que nunca usou o micvê antes deveria fazer um esforço para imergir após a menopausa (nunca é tarde demais para uma mulher fazer isto, mesmo que tenham se passado muitos anos após a menopausa), permitindo assim que todas as intimidades subsequentes sejam divinamente abençoadas.

A livre escolha

O maior presente concedido por D'us à humanidade é a teshuvá – a possibilidade de retorno – para começar de novo e se despedir do passado. A teshuvá permite que o homem se eleve acima das limitações impostas pelo tempo e torna possível afetar nossa vida retroativamente.

Uma única imersão no micvê, mesmo tarde na vida, pode parecer insignificante para alguns, um ato rápido e simples. Porém junto com dedicação e respeito, é um feito monumental; traz pureza e seu poder regenerativo não somente ao presente mas para o futuro.

Assim, cada mulher pode conectar-se a uma antiga tradição que tem percorrido as gerações. Através do micvê, ela se coloca em contato imediato com a fonte de vida, pureza e santidade – com o D'us que a cerca e permanece dentro dela.

OBS:
Este artigo pretende ser apenas um esboço sobre o tema. Para o correto cumprimento e compreensão da mitsvá de Taharat Hamishpachá por mulheres judias é necessário o estudo com pessoa competente e bem versada na Halachá, Lei Judaica.