A questão da imigração tem aparecido na política americana durante muitos anos. Os políticos a tem usado como uma bandeira em muitas campanhas, e proponentes tanto das portas abertas quanto das fechadas, seja por anistia ou força contra os ilegais, têm usado este tema como questão definidora.
Como judeu, estamos bastante cônscios da necessidade de imigrar. Para aqueles que fugiam dos regimes reacionários da Europa Central ou dos pogroms dos czares, as portas abertas da América ofereciam abrigo e oportunidade. E quando a América manteve suas portas fechadas à medida que a ameaça nazista se tornava ainda mais mortal, sofremos a agonia daqueles que foram deixados para morrer.
Ardendo em nossas mentes estão imagens como aquelas das centenas de refugiados do St. Louis, procurando escapar de Hitler, e tendo a entrada recusada nos Estados Unidos e Cuba. Em vez se lhes ser oferecido um abrigo contra a tempestade, aqueles judeus foram enviados de volta à Europa enquanto barcos da Guarda Costeira patrulhavam para garantir que nenhum conseguiria passar. Isso é algo real para nós, não apenas um argumento abstrato.
Porém quando se aborda um tópico tão sensível como a imigração, é importante ter em mente que as políticas não podem ser baseadas apenas na emoção, mesmo que sinceras. Deve haver alguns critérios pelos quais possamos avaliar confiantemente as posições e dar uma resposta cuidadosa, crítica. A Torá nos oferece exatamente este conjunto de critérios, baseado na opinião integrada de que toda escolha humana é cosmicamente significativa.
Há muitas questões cercando todo o debate sobre a imigração: os países têm o direito de admitir novos moradores apenas sob determinadas condições? Um país pode assegurar que o afluxo de imigrantes não irá prejudicar seu próprio mercado de trabalho? Um país tem o direito de insistir que suas leis sejam respeitadas e sua cultura honrada?
Políticas não pode ser baseadas apenas em emoção
O objetivo deste artigo não é oferecer uma solução mágica a um problema muito complicado e sensível. É mostrar quantas das questões deste debate sobre imigração já foram discutidas na Torá, e partilhar as ideias dessas discussões. É nossa crença que embora todo país e situação sejam únicos, a aplicação dos princípios da Torá pode trazer alguma ordem ao caos do atual debate acalorado sobre imigração.
A Moralidade das Fronteiras
Antes de começar qualquer discussão sobre migração através de fronteiras, primeiro temos de ter certeza se os países têm o direito de reforçar suas fronteiras. Embora todos os países do mundo afirmem esse direito,1 algumas pessoas dizem que nenhum país tem o direito de excluir ninguém. É um mundo, afirmam eles, no qual todos nós nascemos, e todos temos o direito de viver onde escolhermos. Interferir com isso seria discriminatório e antidemocrático.
Como disse um advogado britânico: Controles são autoritários. Sua afirmação mais fundamental é que liberdade de movimento global pelos migrantes, imigrantes e pessoas que buscam asilo deve ser determinado não por aqueles que desejam mudar mas deve ser restrito por aqueles alegando uma franquia absoluta e o direito de ocupação para onde eles desejarem se mudar.2
Se céus e terra e toda a humanidade foram criados por um único D'us, o que a Torá, instrução manual de D'us, nos diz sobre o “Um só mundo? A Torá reconhece as fronteiras nacionais como legítimas?
Na poética canção de Há’azinu, Moshê proclama: Quando o Mais Alto deu às nações seu destino, quando Ele separou os filhos do homem, Ele estabeleceu os limites dos povos segundo o número dos filhos de Israel.3
Está claro que sob a perspectiva da Torá, as fronteiras nacionais são tanto naturais quanto providenciais. Refletem um propósito Divino no mundo, e portanto aquele propósito deve ser mantido. Toda nação difere de todas as outras nações em vários aspectos: sua terra, seu idioma, seus clãs e seus povos.4 Essas características nacionais são facilmente observáveis, embora seja moralmente importante reconhecer que esses estereótipos não ditam o comportamento individual.
Japoneses e britânicos esperam pacientemente em filas para trens e ônibus. Compare isto com uma cena no metrô de Nova York na hora do rush, ou num apinhado ponto de ônibus em Tel Aviv, quando há poucos assentos vazios.
O idioma italiano é melódico, e se presta a canções líricas e românticas; a língua alemã serve para precisão científica e filosófica, ou para o épico e sério em poesia e canção. Tais generalizações refletem alguma verdade real, que a Torá reconhece. Essas características nacionais, e os países distintos e demarcados que deram origem a elas, são parte do plano providencial de D'us.
Estando satisfeitos que a Torá reconhece o conceito de fronteiras, podemos agora considerar os motivos que os povos têm oferecido para apoiar e se opor a manter aquelas fronteiras fechadas, bem como a opinião da Torá sobre o assunto.
Os proponentes da imigração aberta nos Estados Unidos apontam para (entre outras coisas) preocupações humanitárias, a necessidade de trabalho barato ou trabalho que a maioria dos cidadãos não deseja fazer, e a energia dos auto-selecionados que escolhem ir para um país porque realmente desejam ficar ali.
No lado oposto, os proponentes a limitar ou negar imigração falam sobre preocupações com a segurança, coesão social e cultural, influência negativa sobre o senso de propósito nacional, exploração de benefícios governamentais, aumento de desemprego da população nativa, e provocar uma queda nos salários com o aumento da força de trabalho.
Fronteiras nacionais são tanto naturais quanto providenciais. É verdade que com frequência os motivos dados para apoiar uma determinada posição têm sido apenas racionalizações mascarando a intolerância dos proponentes. Mas, concordando que argumentos validos sempre podem ser mal utilizados – os motivos dados no debate americano são justificáveis à luz da Torá? Que motivos, em sua melhor apresentação, são considerados merecedores de consideração pela lei e ensinamento judaicos?
Segurança
Embora o foco da Torá esteja em Israel, e todo país tenha os próprios desafios e problemas, não se pode extrapolar dali a opinião da Torá.
Comentando sobre o versículo “ferro e bronze são suas trancas,”5 que é parte da bênção de Moshê à tribo de Asher antes de sua morte, Rabi Shlomo Yitschaki (Rashi) explica: Os homens poderosos de Israel podiam morar nas cidades da fronteira e trancar a fronteira para que nenhum inimigo pudesse entrar; era como se estivessem fechadas com trancas e barras de ferro e bronze.6
As fronteiras apresentavam um perigo singular, e a Lei Judaica mandava que as autoridades procurassem as verdadeiras motivações daqueles que queriam entrar no país. Avisava que um perigo mortal poderia espreitar, e que deveríamos ficar atentos a todos que tentassem cruzá-la. A tal ponto, que somos permitidos a transgredir o sagrado Shabat devido a essas preocupações com segurança. Como diz o Código da Lei Judaica: Numa cidade fronteiriça, mesmo se outros povos o abordarem [ostensivamente] por palha e feno, a pessoa deve violar o Shabat para repeli-los, para que não tomem a cidade e dali sigam para conquistar a terra.7
O Israel de hoje, também, conhece a necessidade do rigoroso controle de suas fronteiras. A construção do muro separando o restante de Israel das áreas da Autoridade Palestina quase compltamente terminou com os ataques de bombas que mataram tantos civis há uma década.
Obviamente, os desafios para Israel não são necessariamente os mesmos que aqueles a outros países como os Estados Unidos, e eles podem exigir soluções diferentes e específicas. Mexicanos e canadenses não apresentam a mesma ameaça à segurança nacional como o Hamas, Síria e Egito. Apesar disso, a Torá reconhece que segurança é uma preocupação real que precisa ser cuidada.
Coerência Cultural
Além das preocupações com a segurança, a Lei Judaica reconhece que há também perigos ideológicos. Explicando sobre o mandamento negativo de não permitir idólatras na terra de Israel,8 Maimônides escreve: Quando em Israel [respeitadas as condições para observar o Jubileu] é proibido para nós permitir um idólatra entre nós. Até um residente temporário ou um mercador que viaja de um lugar a outro não deve ter permissão de passar pela nossa terra até que ele aceite as sete leis universais ordenadas a Nôach e seus descendentes, como diz o versículo:9 Uma pessoa que aceita estas sete mitsvot é um guer toshav, “estrangeiro residente”.10
O problema não é o estrangeirismo em si, mas sim uma certa ideologia estrangeira perniciosa que é exempificada pelo nome “idolatria”. O motivo para isso é que a Torá vê idolatria como a raiz do mal, e retrata seus efeitos sobre a nação judaica como totalmente destrutivos.11
A aceitação das sete mitsvot é evidência clara que a pessoa se afastou da idolatria e agora aceita o governo de D'us. É somente então, aceitando o Soberano da terra, que ele pode habitar na terra ou passar por ela.
Rabi Menachem Meiri (1249-1310) explica ainda que devemos assumir uma visão muito ampla da definição de “residente estrangeiro” à luz das realizações da religião de Avraham no sentido de civilizar o mundo e levá-lo além do pensamento idólatra. Embora ele não dê nome às sete mitsvot, ainda insiste que aqueles que entram na Terra devem partilhar uma crença em D'us e um estilo de vida disciplinado que flui a partir dali.12
Embora seja claro que a idolatria seja a antítese a tudo que o Judaísmo defende, o que precisa ser indagado no presente debate é se há algo equivalente àquilo hoje nos Estados Unidos. Existe algo hoje que seja equivalente à idolatria, algo que apresente uma ameaça legítima e não seja apenas a imaginação de xenófobos?
Economia
No que diz respeito à caridade quando há recursos limitados, a Lei Judaica estabelece orientações claras para as nossas prioridades. Parentes pobres vêm antes de outros, e os pobres do local em que habitamos prevalecem sobre os pobres de outra cidade.13 Está implícito que este princípio se aplica não somente à caridade mas também a outras questões econômicas, pois recursos limitados sempre exigirão decisões duras a serem tomadas. E para que decisões duras sejam bem feitas, é preciso haver uma forte ordem de prioridades.
Sobre isso, o Talmud declara que uma comunidade pode proibir competição que seja tão dispendiosa a ponto de não se preocupar com seu efeito sobre o sustento do outro. Rav Huna estende esse princípio a restringir o acesso de forasteiros aos mercados da cidade – mas ao mesmo tempo, ele abre uma porta. Rav Huna, filho de Rav Yehoshua, disse: Está claro para mim que os moradores de uma cidade podem impedir os residentes de outra cidade [de estabelecer competição nesta cidade], mas não, no entanto, se ele pagar impostos para aquela cidade; e que o morador de uma rua não pode impedir outro morador da mesma rua [de entrar em competição em sua rua].14
Assim, segundo essa regra, uma comunidade pode manter seu mercado fechado para forasteiros, a menos que uma pessoa se torne um membro pagando impostos. Ao participar nas responsabilidades econômicas de uma cidade, a pessoa ganha acesso aos privilégios econômicos da cidade. Muitos rabinos são da opinião de que, em vista disso, poderia parecer que a Lei Judaica permite que qualquer judeu se mude para outra comunidade judaica em qualquer cidade ou país, desde que pague impostos; as pessoas da cidade não podem impedi-lo.15
No entanto, outras vozes mais importantes discordam. E estas leem a frase acima dita por Rav Huna como se referindo àqueles que já pagam impostos para a cidade, i.e., aqueles que já são moradores. Sua leitura abre espaço para surgir aquilo que foi chamado do Direito de Estabelecimento (chezkat hayashuv) na Lei Judaica.
O Direito de Estabelecimento, como seu nome indica, é um direito de morar num determinado lugar. A pessoa deve possuir tal direito a fim de estabelecer-se numa cidade ou comunidade; ninguém pode agir como se simplesmente tivesse o direito de se estabelecer onde quiser, mesmo que se junte ao fardo do pagamento de impostos da cidade.16
Embora essas restrições nunca se apliquem durante tempos difíceis ou quando havia um perigo claro e presente para os imigrantes,17 em geral, a imigração era restrita por essa lei.
Os que defendiam este poder de restringir a imigração apresentaram várias razões para seu apoio. Alguns rabinos citam a questão do desprazer dos povos com um rápido influxo de judeus, e que a segurança da comunidade atual está em jogo.18 Outros citam problemas econômicos: com limitadas oportunidades econômicas, a imigração irrestrita tiraria o pão da boca da comunidade atual.19 Outros dizem que estão baseados nos direitos soberanos do governante local, pois todos os direitos políticos se originam no governante.20 Outros citam o mandato rabínico de buscar tikun olam – tornar a vida melhor cuidando dos atuais problemas sociais que afetam as vidas da comunidade.21
O que fica claro é que rabinos e comunidade no nosso passado partilhavam muitas das preocupações modernas. No entanto, também podemos ver que havia rabinos notáveis que opunham restrições em se estabelecer, desde que a pessoa pagasse impostos, e muitas comunidades nem sequer aceitavam chezkat hayishuv,22 portanto não podemos dizer que o debate é unilateral. Portanto, embora o caso das legítimas restrições à imigração possa ser forte, não deve nos impedir de sermos incomodados pelo aborrecimento daqueles que precisam mudar, e de sermos incomodados pelo seu desejo de liberdade.
Expectativas Mútuas
É verdade que o versículo nos diz que “uma Torá e uma lei haverá para vocês e o estrangeiro que vem para viver com vocês.23 Porém, o profeta também proclama: Também, busquem a paz e a prosperidade da cidade à qual levei vocês ao exílio. Rezem a D'us por ela, porque se ela prosperar, vocês também prosperarão.24
A Torá não está oferecendo nenhum privilégio sem as responsabilidades da lei. Isso implica que devemos não apenas nos conformar com as leis da cidade para a qual migramos, mas também nos dedicar ativamente ao seu bem-estar. Não meramente aceitar suas leis. Como disse Rabi Yehuda Loew (Maharal de Praga): Como o profeta nos ordenou rezar a D'us pelo local ao qual fomos exilados, como podemos ordenar o oposto disso, D'us não o permita, transgredindo assim as palavras do profeta? Ao contrário, os sábios nos advertem a aceitar a soberania e a lei das nações. Após D'us decretar que devemos ficar sob sua autoridade, é correto que aceitemos sua lei, e não agir como se o decreto fosse inválido.25
Ao mesmo tempo, somos instruídos que “o guer que mora com você deveria ser considerado por você como um nativo entre vocês, e devem amá-lo como ama a si mesmo, pois foram guerim na terra do Egito. Eu sou seu D'us.”26
Tanto o recém-chegado quanto o cidadão residente são obrigados pelos laços da humanidade a respeitar um ao outro: a comunidade aceitando as pessoas, e os imigrantes pela aceitação das leis da comunidade e seu estilo de vida. A Torá está oferecendo nenhum privilégio sem as responsabilidades da lei. O amor nasce do respeito mútuo daqueles que partilham responsabilidades para uma meta em comum.
Expectativas não Preenchidas: Imigração Ilegal
Até agora discutimos exemplos de imigração legal. Mas e quanto a alguém que cruza a fronteira ilegalmente?
O Talmud fala de um caso no qual pessoas que se recusaram a aceitar as leis parecem ser recompensadas. Isso é contrariado com base num princípio de senso comum: ein chotei niskar, por lei o pecador não deveria ser recompensado pelo seu erro.27
Este é um princípio que é encontrado tanto na lei inglesa quanto na americana, e é conhecido como a doutrina do ex turpi causa, que significa, como disse Lord Mansfield: “Nenhum tribunal dará sua ajuda a um homem que fundamenta sua causa de ação sobre um ato imoral ou ilegal.”28
No entanto, ao mesmo tempo encontramos no Talmud uma ordem rabínica chamada takanat hashavim, para o benefício daqueles que desejam se arrepender.
Rabi Yochanan ben Gudgeda atestou… sobre uma viga transversal roubada que o ladrão colocou numa mansão, que a vítima aceita apenas o valor da viga como compensação, mas não pode forçar o ladrão a devolver a viga em si. Isso foi decretado para o benefício daqueles que desejam se arrepender.29
Embora estritamente falando, sob a lei bíblica, a pessoa teria de devolver o objeto roubado,30 os sábios decretaram que ele pode manter a viga e apenas pagar por ela, pois se lhe fosse exigido devolver a viga, isso seria muito difícil para o ladrão, e tornaria relutante qualquer ladrão desejoso de se arrepender.
Em outras palavras, às vezes é preciso ser um pouco leniente e ter compaixão daqueles que transgrediram a lei, se você quiser que eles se retratem e se arrependam. As anistias na lei funcionam sob o mesmo princípio – um pouco de leniência pode encorajar melhor concordância no final, como ocorre com os muitos países que ocasionalmente oferecem anistia para penalidades sobre impostos, e como resultado não apenas poupam a despesa e a desordem de infindáveis processos, mas também recebem muitos impostos dos delinquentes.
A takanat hashavim pode ser lida dessa maneira ampliada, e ser aplicada como uma ajuda para a anistia daqueles que violaram as leis da imigração?
Ainda precisamos perguntar: como poderia o uso do princípio de ein chotei niskar se aplicar aos modernos debates sobre imigração? Isso equilibraria o princípio de takanat hashavim, ou o anularia?
O princípio de ein chotei niskar exigiria que um imigrante ilegal deixasse o país e voltasse ao fim da fila antes de ser analisado?
Tendo em mente o princípio de takanat hashavim, algum outro método o estabeleceria como alguém agora realmente comprometido a aceitar as leis soberanas da comunidade, ou tal flexibilidade minaria a credibilidade da lei? Uma falta de compaixão minaria a adesão da própria comunidade à lei?
Além disso, e quanto àqueles que não transgrediram a lei por vontade própria, como crianças levadas pelos pais: estendemos a punição também para elas?
É com essas perguntas demoradas, e não com conclusões definitivas, que encerramos, pois é nossa esperança que as fontes acima citadas tenham nos feito pensar, e sirvam como um ponto de partida tanto para aquele que faz as leis como para o leigo.
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