Foi um dos grandes momentos de transformação pessoal, e mudou não apenas Moshê, como também nossa concepção da própria liderança. Ao final do Livro de Bamidbar, a carreira de Moshê como líder parecia chegar ao fim. Ele tinha designado seu sucessor, Joshua, e seria ele, não Moshê, que levaria o povo através do Jordão até a terra prometida. Moshê parecia ter atingido tudo que estava destinado a conseguir. Para ele não haveria mais batalhas a lutar, não mais milagres para realizar, não mais preces a serem feitas em prol do povo. Foi aquilo que Moshê fez em seguida que leva a marca da grandeza. Durante o último mês de sua vida ele reuniu o povo e fez uma série de discursos que conhecemos como o Livro de Devarim, literalmente, “palavras”.
Neles ele revisou o passado do povo e previu seu futuro. Deu a eles leis, algumas que tinha dado antes mas em formato diferente, outras que eram novas e que tinha esperado para anunciar até que o povo estivesse para entrar na terra. Associando todos esses detalhes da lei e da história numa única visão abrangente, ele ensinou o povo a se enxergar como um am kadosh, um povo sagrado, o único povo cuja soberania e editor das leis era o próprio D'us.
Se alguém que não soubesse nada sobre o Judaísmo e o povo judeu pedisse a você um único livro que explicasse sobre ambos - quem são os judeus e por que fazem o que fazem - a melhor resposta seria Devarim. Nenhum outro livro encerra e dramatiza todos os principais elementos do Judaísmo como fé e modo de vida. Numa palestra com grande audiência, e num livro com o mesmo nome, Simon Sinek diz que os líderes transformadores são aqueles que ‘Começam com Por Quê’. Mais poeticamente, Antoine de Saint-Exupery disse: “Se você quiser construir um navio, não obrigue as pessoas a juntarem madeira e não lhes dê tarefas e trabalho, mas sim ensine-as a ansiar pela interminável imensidão do mar.” Em Devarim, Moshê deu ao povo seu Por Quê. Eles são o povo de D'us, a nação sobre a qual Ele colocou Seu amor, o povo que Ele resgatou da escravidão e deu, na forma dos mandamentos, a constituição da liberdade.
Eles podem ser poucos, mas são únicos. São o povo que, por si mesmos, testemunham algo além deles mesmos. são o povo cujo destino vai desafiar as leis normais da história. Outras nações, diz Moshê, vão reconhecer a natureza milagrosa da história judaica - e assim, de Blaise Pascal a Nikolai Berdyaev e outros, eles o fizeram. No último mês de sua vida Moshê deixou de ser o libertador, o fazedor de milagres e redentor, e se tornou Moshê Rabenu - “Moshê, nosso Mestre”. Ele foi o primeiro exmplo na história de um tipo de liderança no qual os judeus se superaram: o líder como professor. Moshê certamente sabia que algumas das suas maiores conquistas não durariam para sempre. O povo que ele tinha resgatado um dia sofreria exílio e perseguição novamente. Da próxima vez, porém, eles não teriam um Moshê para fazer milagres. Portanto ele colocou uma visão na mente deles, esperança em seus corações, disciplina em suas ações e uma força em suas almas que jamais diminuiria. Quando os líderes se tornam educadores eles mudam vidas. Num poderoso ensaio, “Quem deve liderar o povo judeu?” Rabi Joseph Soloveitchik contrastou a atitude judaica com reis e professores como tipos de liderança.
A Torá coloca fortes limites no poder dos reis. Eles não devem multiplicar ouro, ou esposas, ou cavalos. Um rei é ordenado a “não se considerar melhor que os israelitas nem se voltar para a lei da direita ou da esquerda” (Devarim 17:20). Um rei deveria somente ser nomeado a pedido do povo. Segundo Ibn Ezra, a nomeação de um rei era uma permissão, não uma obrigação. Abrabanel dizia que era uma concessão à fragilidade humana. Rabbenu Bachya considerava a existência de um rei como punição, não uma recompensa. Em resumo, o Judaísmo é bastante ambivalente sobre a monarquia, ou seja, sobre liderança como poder. Por outro lado, sua consideração pelos professores é quase ilimitada. “Que o temor ao seu mestre seja como o temor ao céu”, diz o Talmud.
Respeito e reverência pelo seu mestre devem ser maiores até que respeito e reverência pelos seus pais, decreta Rambam, porque os pais trouxeram você a este mundo, ao passo que os mestres lhe dão entrada ao mundo vindouro. Quando alguém exerce poder sobre nós, ele ou ela nos diminui, mas quando alguém nos ensina, ele ou ela nos ajuda a crescer.
É por isso que o Judaísmo, com sua aguda preocupação pela dignidade humana, favorece liderança como educação acima de liderança como poder. E tudo começou com Moshê, ao final da sua vida.
Durante vinte e dois anos, como Rabino Chefe, eu carreguei comigo a seguinte citação de um dos maiores líderes do Movimento Sionista, o Primeiro Ministro de Israel, David Ben-Gurion. Embora ele fosse um judeu secular, foi um historiador e erudito da Torá para entender essa dimensão de liderança, e disse em palavras eloquentes: Não importa se você tem um cargo humilde numa prefeitura ou num pequeno sindicato ou um alto cargo num governo nacional, os princípios são os mesmos: você deve saber o que quer atingir, ter certeza de seus objetivos, e ter aquelas metas constantemente em mente. Você deve fixar suas prioridades. Deve educar seu partido, e educar o público em geral. Deve ter confiança em seu povo - maior do que eles têm neles mesmos, pois o verdadeiro líder político sabe instintivamente o alcance das capacidades do homem e pode levá-lo a exercê-las em tempos de crises. Você deve saber quando enfrentar seus oponentes políticos, e quando deixar o tempo correr. Jamais deve abrir mão em questões de princípio. Deve sempre estar consciente do elemento do tempo, e isso exige uma constante percepção do que está ocorrendo ao seu redor - em sua região se você for um líder local, em seu país e no mundo se você é um líder nacional. E como o mundo jamais para nem por um momento, e o padrão do poder muda seus elementos como o movimento de um caleidoscópio, você deve constantemente reacessar as políticas escolhidas para conseguir seus objetivos. Um líder político deve passar muito tempo pensando. E deve passar muito tempo educando o público, e educando-o novamente.
O poeta Shelley disse que “poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo.” Se isso é verdadeiro ou falso, eu não sei, mas isso eu sei: que há toda uma diferença entre dar às pessoas o que elas querem e ensiná-las o que querer.
Professores são os construtores não reconhecidos do futuro, e se um líder procura fazer uma mudança duradoura, ele ou ela deve seguir os passos de Moshê e tornar-se um educador. O líder como professor, usando influência e não poder, autoridade espiritual e intelectual em vez de força coerciva, foi uma das maiores contribuições que o Judaísmo já fez para os horizontes morais da humanidade e pode ser vista mais claramente no Livro de Devarim, quando Moshê pelo último mês de sua vida convocou a próxima geração e ensinou-lhe leis e lições que iriam sobreviver, e inspirar, enquanto houver seres humanos sobre a terra.
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