Extraído da palestra inaugural do Memorial de Palestras do Rebe, pronunciada pouco depois do falecimento do Rebe, pelo Rabino Chefe da Inglaterra, Dr. Jonathan Sacks.

Nessa ocasião solene, eu não poderia deixar de começar com uma das cenas mais comoventes das Escrituras, a cena no segundo Livro dos Reis, que descreve os últimos dias do notável líder de Israel, o Profeta Eliyáhu.

Eliyáhu, bem lembramos, ficou certa vez no Monte Horeb, e soube que D'us não está num redemoinho ou num terremoto nem no fogo, mas numa voz baixa que fala dentro da alma humana. E foi depois dessa visão que Eliyáhu abriu sua capa sobre a pessoa que se tornaria seu discípulo – o Profeta Elisha. E finalmente, chega a hora em que Elisha está para ser levado deste mundo. Está para morrer. Elisha sabe disso. O grupo de profetas que estavam com eles todos sabem disso. E Eliyáhu diz a Elisha: “Fique aqui, tenho de cruzar o Jordão. D'us me chamou para fazer a jornada final da minha vida. Estou para ingressar naquela jornada que cada um de nós deve fazer sozinho.”

E Elisha se recusa a separar-se de seu Rav, de seu Rebe. Diz "Pela vida de D'us e pela tua vida, não te deixarei." E os dois caminham juntos. E quando eles cruzam o Jordão, Eliyáhu diz a Elisha: "Pede, diz o que posso fazer antes de eu ser tirado de ti e dessa vida." E ele pede uma coisa: "Por favor, concede-me uma dupla porção do teu espírito."

Assim como Moshê foi ordenado por D'us a colocar a mão sobre Yehoshua, seu sucessor – em vez disso – por amor do discípulo – colocou ambas as mãos , dando a Yehoshua uma porção dupla de seu espírito, também Elisha fez seu pedido. Eliyáhu diz: "Pediste algo muito difícil. Mas isso eu te prometo: se ainda me vires, se uma visão de mim ainda permanecer contigo depois de eu ser tirado de ti, terás uma porção dupla de meu espírito. E caso contrário, não."

E então Elisha viu uma carruagem de fogo e cavalos de fogo levando Eliyáhu ao céu. E ele chora: "Meu pai, meu pai, carruagem e cavaleiros de Israel." Apanha suas roupas e as rasga em pedaços.

Nada capta mais precisamente a nossa sensação – a minha sensação – de perda inconsolável pelo falecimento do Rebe. O homem que foi, para centenas de milhares de seus discípulos e admiradores, nada menos que "Meu pai, meu pai." E nada define nosso consolo mais eloqüentemente.

Diz o Midrash: " Eliyáhu não morreu realmente." Ele continuou a aparecer aos Sábios como uma espécie de elo vivo entre o céu e a terra. E por quê? Porque seus discípulos mantiveram vivos os seus ensinamentos. "Se minha visão permanecer contigo mesmo depois que eu me for, ainda estarei vivo em teu coração. Se aquilo que eu fui, se aquilo que eu fiz continuar a te inspirar, então ainda terás uma porção dupla do meu espírito." E isso, em termos judaicos, é imortalidade.

O Rebe foi um dos imortais. Um dos verdadeiros imortais. Minha tarefa esta noite não é pintar um retrato de sua vida. Isso certamente será feito por outros, em outras ocasiões. Mas pelo menos deixem-me dizer: Dentre os mais notáveis líderes judeus do passado houve alguns que transformaram comunidades, houve outros que arrebanharam muitos discípulos, outros ainda que nos deixaram códigos e comentários que serão estudados em todas as épocas. Mas deve ter havido poucos em toda a história de um dos povos mais antigos do mundo que durante a vida influenciaram todo o mundo judaico.

Onde quer que existam judeus, ali você encontra um emissário pessoal direto do Rebe. E ali você verá ele ou ela fazendo contato com judeus e reacendendo a chama da vida judaica. Lubavitch foi e continua indo a toda parte. Acima de tudo, Lubavitch foi antes de qualquer outro, e numa época em que isso representava um enorme perigo, à antiga União Soviética para fazer contato com os judeus que estavam em silêncio e manter vivo o espírito do Judaísmo. Foi arriscado – quase impossível. E como era quase impossível, Lubavitch o fez. O Rebe, não conhecia fronteiras. Lubavitch não reconhecia portas fechadas, cercas ou fronteiras. A Torá diz que se você está disperso nos confins do céu "de lá o Eterno teu D'us te recolherá e de lá Ele te trará te volta." E alguma vez existiu um líder religioso em Israel que levou este versículo ao pé da letra, e tão surpreendentemente se tornou um parceiro do Todo Poderoso, ao trazer de volta os judeus de todos os cantos do mundo?

E, muitas vezes tenho me perguntado, por quê? O que impulsionava o Rebe, Seria, pensei certa vez, aquele extraordinário pronunciamento do Báal Shem Tov, o fundador do Movimento Chassídico, que passou ele próprio a vida inteira indo aos judeus onde quer que estivessem – nas pequenas aldeias e quando lhe perguntavam por que fazia isso, por que não fazia aquilo que se supõe que um rabino devia fazer – sentar-se e estudar, o Báal Shem Tov dizia: "Todo judeu é uma letra no Rolo de Torá. E assim como um Rolo de Torá é inválido se faltar uma única letra, também o povo judeu, que é um Rolo vivo de Torá, fica inválido se um judeu estiver faltando. Saio para restaurar os judeus ao seu lugar na Torá." Seria essa imagem que o impulsionava?

Seria a obra da vida do Rebe nada menos que uma recriação num mundo secular dos primeiros dias do próprio Movimento Chassídico quando, como disse o Rebe, a tarefa dos chassidim era despertar o povo judeu do seu sono espiritual? Seria isso? Estaria ele recriando aquilo que acontecerá dois séculos antes? Ou seria algo mais?

Seria talvez por que o Rebe viveu durante o buraco negro da História Judaica – o Holocausto. Ele tinha visto o mundo inteiro, o mundo dos judeus da Europa Oriental – desaparecer em chamas. E tenho muitas vezes me perguntado, o que ele sentiu – ele que se preocupava tanto? O que ele sentiu com a destruição da terça parte de nosso povo judeu, incluindo um milhão e meio de crianças, crianças judias que nunca cometeram um pecado?

A Chassidut usa uma palavra muito poderosa da Cabalá, ticun – que significa remendar este mundo fraturado, consertar. Como se pode remendar uma fratura tão profunda, tamanho buraco no coração da humanidade? E eu certa vez especulei num artigo de jornal que talvez, apenas talvez, o Rebe tinha aceitado a iniciativa espiritual mais ousada na história da humanidade. Seria possível ir procurar cada judeu por amor, assim como os judeus certa vez foram procurados e caçados por ódio, e seria este o único ticun possível – o único remendo possível de um mundo pós-holocausto. Quem pode dizer?

Talvez o Rebe tenha visto, assim como o Talmud nos conta que Rabi Chanina ben Teradyon tinha visto muitos séculos antes – o Sêfer Torá – o grande rolo do povo judeu queimando, e ele estava quase que sozinho tentando reescrevê-lo? Não sei. Porém todos sabemos que existem poucos fenômenos como esse na história judaica, e esta deve sua inspiração a um único homem. E um dia contaremos aos nossos filhos que fomos privilegiados por viver na mesma época que ele.

Quando pela primeira vez tive a honra de encontrar o Rebe, permanecer em sua presença, compartilhar com ele uma conversa, descobri algo surpreendente. Eu já conhecera dezenas, dezenas de outros líderes, e a todo líder eu tinha feito perguntas e recebera respostas. O Rebe foi o único que tinha me feito perguntas. E que perguntas aquelas! “O que você está fazendo pela vida judaica em Cambridge?" Lembro-me de ter começado minha resposta. "Bem", disse eu, "na situação em que me encontro" – que maravilhoso começo – e o Rebe interrompeu-me no meio da frase e me disse: "Ninguém jamais se encontra numa situação. Você se coloca naquela situação. E se você se colocar nessa situação, pode colocar-se numa situação diferente." E naquele momento entendi que o Rebe não estava interessado em criar seguidores. Estava interessado em criar líderes. Ele era o mais abnegado e discreto líder que jamais conheci. Ele incorporava, ao máximo, aquele maravilhoso momento na Torá em que Yehoshua corre para Moshê e diz: "Moshê, há outras pessoas profetizando no acampamento. Mande-as se calarem. Estão desafiando sua liderança." E Moshê responde: "Você está ciumento por mim?"

O Rebe foi um homem extraordinário que praticava liderança de Torá numa escala inimaginável, geográfica e, acima de tudo, espiritual. E é sobre essa espiritualidade que eu desejo dedicar o restante das minhas palavras porque esta noite eu desejo pagar uma dívida pessoal que tenho com o Rebe.

Ela surgiu da maneira mais extraordinária. Eu tinha acabado de receber minha ordenação rabínica e fui pedir conselho ao Rebe sobre o que fazer em seguida. Eu deveria voltar à minha carreira anterior de professor de filosofia secular ou deveria ir atrás da minha verdadeira ambição, a advocacia? E eu tinha sido levado a crer que a pessoa apresentava opções ao Rebe e ele dizia faça isso ou faça aquilo. Bem, ele não disse uma nem outra coisa. Disse: "Você tem de se tornar rabino. Precisa se tornar rabino em anglo-Judaísmo." Ele direcionou cada parte daquela conversa para o rabinato. Falou-me sobre como reviver a Faculdade Judaica, que na época estava quase fechando. Falou-me até para mudar o tema da minha tese de Doutorado, que naquela época eu estava escrevendo sobre filosofia secular. Ele disse: "Quando você terminar seu Doutorado, envie-me uma cópia. Gostaria de lê-lo."

Alguns anos depois, eu o terminei. E perguntei-me: deveria enviar a ele? Eu sabia que toda semana o Rebe recebia milhares de cartas vindas do mundo inteiro. Tudo que ele precisa é uma tese doutoral com 400 páginas... Porém meus amigos no Beit Chabad disseram: "Se o Rebe disse para enviar, então faça isso." Portanto a enviei.

Semanas depois, chegou uma carta. Não datilografada, mas cuidadosamente escrita na caligrafia do Rebe. Não percebi na hora o valor daquela carta, e a perdi, mas ainda posso me lembrar exatamente o que dizia. Criticava duas coisas, mas esta noite falarei apenas sobre uma. Criticava uma das palavras que eu tinha traduzido na tese, e então o Rebe disse: "Você escreveu um doutorado sobre responsabilidade judaica coletiva. Estou surpreso por você não ter mencionado o Capítulo 32 do Tanya – a grande obra do chassidismo de Chabad escrita por Rabi Shneur Zalman de Liadi. Por que eu não escrevera, sugeria ele, sobre a dimensão mística do amor do judeu pelo judeu que nos define como um povo?

Devo dizer que fiquei surpreso. Eu tinha escrito um doutorado sobre Lei Judaica, Halachá, e o Rebe estava me dizendo que eu deveria ter mencionado nesse doutorado algo que não era sobre Halachá – não sobre a Lei Judaica – mas sobre o misticismo judaico. Certamente, eu tinha incluído em minha análise a obra de Rabi Shneur Zalman sobre Lei Judaica. Porém ele queria que eu incluísse não apenas a obra legal, como também a mística. E eu não podia ver como aquilo se encaixava.

O Rebe estava dizendo algo bastante fundamental, desafiante. Ele estava dizendo, na verdade, que não poderíamos sequer entender a Lei Judaica – a lei judaica de amar nosso próximo judeu – sem entender a base mística para aquele amor. Nesse caso, a mitsvá – a ordem – e a raiz mística da ordem eram inseparáveis. E eu nunca entendi isso, até agora. Porém esta noite eu ofereço, conforme o meu limitado entendimento, minha opinião sobre aquilo que o Rebe queria dizer, o que ele desejava me dizer e aquilo que eu ainda não tinha dito.

Começo na forma de uma extraordinária proposição. Damos como certo que como judeus, estamos ligados por um pacto de destino compartilhado. Nada poderia ter nos lembrado mais tragicamente desse fato que o Holocausto em si, no qual os judeus foram condenados à morte não apenas por serem judeus, nem sequer porque seus pais eram judeus, mas porque seus avós eram judeus. Tanto os mais ardentes quanto os mais assimilados. Até aqueles que passaram uma vida inteira fingindo não ser judeus foram sentenciados ao mesmo decreto.

Naquele momento fatídico, ouvimos um terrível eco das palavras de Mordechai a Esther no Livro de Esther "Não acredite que você, Esther, no palácio do rei, conseguirá escapar ao destino de seu povo." Sabíamos e sabemos que estamos ligados por um pacto de destino, responsabilidade e amor mútuos, e os Sábios definem isso em termos da expressão: "Todos os judeus são responsáveis uns pelos outros."

Porém aquilo que desejo perguntar agora é onde aquela expressão ocorre em primeiro lugar – e no quê se baseia? Os Sábios nunca fizeram declarações como essa sem encontrar algum fundamento num texto bíblico, e neste caso, qual foi o texto?

A frase "Todos os judeus são mutuamente responsáveis" ocorre no Talmud em dois tratados, Shavuot e Sanhedrin. No entanto, ocorre pela primeira vez no Sifra, um comentário rabínico sobre Vayicrá do tempo da Mishná, datado de cerca do segundo século da Era Comum. E isso ocorre no contexto de um comentário rabínico sobre aquela terrível passagem na porção Bechucotai da Torá, no 26º capítulo do Livro de Vayicrá conhecido como a Tokhacha, a passagem que descreve as maldições que cairão, D'us não o permita, sobre Israel como um povo se eles desobedecerem a D'us. É uma passagem tão assustadora e traumática que quando a lemos na sinagoga, isso é feito a meia voz.

O texto diz que Israel sofrerá terríveis catástrofes, será exilado de seu país, e D'us deixará cheios de medo os corações daqueles que permanecerem após todas as tragédias na terra de seus inimigos, e eles ficarão aterrorizados pelo som de uma folha soprada pelo vento. E eles fugirão como se estivessem sendo perseguidos com uma espada, quando na verdade ninguém os estará perseguindo. E eles tropeçarão uns nos outros como se estivessem fugindo, embora ninguém os esteja perseguindo. E sobre aquela frase: "Eles cairão uns sobre os outros", diz o Sifra: Não leia esta frase "Eles cairão uns sobre os outros." Leia: "Eles cairão por causa uns dos outros. Por causa dos pecados mútuos." E disso aprendemos que todos os judeus partilham um destino e uma responsabilidade.

É este ensinamento rabínico que é mencionado subseqüentemente no Talmud nos tratados de Shavuot e Sanhedrin e constitui nossa única fonte para o princípio de que os judeus estão ligados entre si num pacto de dever compartilhado. O que desejo que todos nós entendamos esta noite e que nunca entendi totalmente antes é que nessa passagem rabínica, há um mistério. E se tomarmos algum tempo para meditar sobre esse mistério, revelaremos uma das maiores crises espirituais na história do Judaísmo. E chegaremos, acredito, à inescapável conclusão de que há 1800 anos, o misticismo salvou o povo judeu.

O mistério é esse: por que motivo, durante o segundo século da Era Comum, há 1800 anos, os rabinos escolheram esse texto e nenhum outro para provar que os judeus são unidos? Em face disso, nenhum texto mais peculiar é imaginável. Porque se vocês e eu estivermos procurando por um texto para provar que nossos destinos como judeus estão conectados, a questão não seria qual texto devemos escolher. A questão seria qual texto não deveríamos escolher.

Praticamente cada linha da Torá fala sobre nosso destino coletivo. Sempre que a Torá menciona recompensa e castigo, fala sobre nossa recompensa coletiva, nossa punição coletiva. Tudo sobre o Judaísmo é coletivo. Prosperamos juntos, sofremos juntos. Compartilhamos o mesmo destino. Estamos conectados.

Os Rabinos não poderiam encontrar uma outra prova que este texto de judeus tropeçando uns nos outros – um texto tirado das maldições que se abateriam sobre o povo judeu – um texto que fala de Israel no exílio na terra de seus inimigos? O que estavam fazendo os rabinos ao ignorar todos os outros textos e escolhendo justo esse?

Em face disso, é inexplicável, e somente se vocês e eu pudermos sentir que aquela inexplicabilidade entenderemos a profundidade da crise na qual o povo judeu mergulhou pela destruição do Segundo Templo.

Deixem-me explicar: Tendemos a pensar na responsabilidade coletiva como uma idéia muito judaica, mas a verdade é que esta não é uma idéia judaica – mas sim uma idéia simples, cotidiana. Ser morador de um bairro ou cidadão de qualquer país, de qualquer estado, é estar envolvido em alguma forma de responsabilidade coletiva. A idéia é abrangente mas apenas sob uma ou duas condições: sou afetado por aqueles com quem vivo em proximidade física – pelos meus vizinhos, as pessoas próximas, ou sou afetado por aqueles aos quais estou conectado pela mesma entidade política – meus concidadãos. O que acontece a um país afeta todos os cidadãos. E é por isso que durante praticamente todo o período das Escrituras, a idéia de judeus sendo coletivamente responsáveis é auto-evidente e está ali, em cada linha da Torá. A Torá esta repleta disso porque durante praticamente todo o período das Escrituras aquelas duas condições foram satisfeitas. Os judeus viviam em proximidade física e eram uma entidade política. Eles foram aquela entidade política chamada de um reino de sacerdotes e uma nação sagrada.

Agora entendemos a imensa crise – sem precedentes em toda a história judaica de destruição do Segundo Templo e suas conseqüências: um exílio que deveria durar mais de 1800 anos, e uma dispersão que espalharia o povo judeu pelo mundo inteiro. Quase que pela primeira vez na história, o povo judeu não era mais um corpo político porque tinha perdido a soberania e sua autonomia. Eles não mais se governavam. E não viviam mais juntos porque estavam dispersos pelo mundo. Isso tinha acontecido apenas uma vez na História Judaica, quando os assírios conquistaram o Reino Norte de Israel. E o resultado disso é que oitenta por cento do povo judeu assimilou-se e desapareceu. (O exílio babilônico do Reino Sul, durante a destruição do Primeiro Templo, foi um tanto diferente. Foi um exílio breve, menos de 70 anos. Aquele não foi um teste crítico para a sobrevivência judaica. Eles voltaram com tempo suficiente para não se desintegrarem como um povo.)

Agora entendemos o completo patético e profundidade do Sifra. A questão não foi: onde encontramos uma prova de que o povo judeu é uma única entidade conectada por um destino coletivo? A questão era: onde encontramos que o povo judeu ainda é uma só entidade, mesmo em dispersão pela face da terra. Seria possível que o povo judeu ainda fosse um povo na terra de seus inimigos, quando não tinham nenhuma das condições necessárias para ser um povo unido?

E claramente, você não poderia pesquisar a Torá inteira. A Torá na íntegra foi baseada no fato de que os judeus estavam juntos. Há somente dois locais na Torá onde pode-se encontrar uma fonte que poderia dizer que até então os judeus permaneciam como um povo. Estes dois lugares são as duas passagens da própria Tokhacha – a mesma passagem na Torá que fala sobre essa catástrofe se abatendo sobre o povo judeu, de Israel sendo exilado e disperso. É por isso que os Rabinos tiveram de olhar justamente aqui, e foi aqui que eles a encontraram. Até um povo esfacelado, disperso geográfica e politicamente, permanece um povo unido. É por isso que eles procuraram este único versículo.

Eu expliquei por que eles procuraram o texto onde o fizeram. Porém não expliquei por que eles sabiam que o encontrariam ali.

Foi dito sobre Michelangelo e sua notável escultura do David que ele não a esculpiu na pedra. Ele simplesmente a revelou de dentro da pedra. Ele já sabia que ela estava ali em potencial, Ora, vocês e eu poderíamos passar por um bloco de pedra durante cem anos e veríamos apenas um bloco de pedra. É preciso um Michelangelo para olhar para uma pedra e enxergar nela um David.

Foi preciso um Michelangelo de espírito judaico para ver aquilo que ninguém mais poderia – ou seja, que apesar de todas as aparências e toda a lógica humana, Israel não era mais um povo ou nação – mesmo assim ainda era ambas as coisas. E quem foi este Michelangelo? Foi talvez o mais de todos os místicos judeus. Um homem que viveu naqueles tempos. Um homem conhecido como Rabi Shimon bar Yochai.

O que é um místico? Meu Dicionário Oxford me diz que místico é alguém que busca pela contemplação e se entrega para obter absorção da divindade, ou aquele que crê na apreensão espiritual de verdades inacessíveis ao entendimento – e tenho certeza de que é isso mesmo. Mas eu prefiro a definição muito simples que me foi dada por um colega quando, há 25 anos, fui estudar em Kfar Chabad. Ele disse: "A diferença entre você e eu é que você é um filósofo de Cambridge. Portanto, você acredita no Mundo e pergunta se D'us existe. Eu sou apenas um chassid. Creio em D'us e pergunto se o Mundo existe." Este é um místico. Um místico é aquele para quem o espiritual é mais real que o físico. E tal pessoa foi Rabi Shimon bar Yochai.

Em termos físicos, empíricos, visíveis, Israel não era mais uma nação. Não tinha nenhuma das propriedades de uma nação: não tinha território – a definição física; não partilhava soberania – a definição política. Visivelmente, não era uma nação. Então veio Rabi Shimon bar Yochai no texto conhecido por nós como a Mechilta d'Rabi Shimon bar Yochai, e ele tomou a frase bíblica "um reino de sacerdotes e uma nação sagrada" e disse, goy – a palavra "nação" – nos ensina que o povo judeu é como um corpo e uma alma. E assim está em Yeshayáhu: "Quem é como Israel, uma nação única na terra. Se um judeu peca, somos todos punidos. E se um judeu sofre, todos sentimos dor."

Esta é uma declaração mística, e não é exagero dizer que esta declaração feita após a destruição do Segundo Templo e das subseqüentes perseguições romanas, na verdade salvaram o povo judeu. Porque mesmo quando politica e fisicamente não éramos mais uma nação, misticamente, disse Rabi Shimon bar Yochai, ainda éramos uma nação. Quando não há nada mais visível para manter junto o povo judeu, aquele invisível vínculo místico segurará o povo junto.

E foi essa visão mística que atingiu sua expressão mais elevada 16 séculos depois no Capítulo 32 do Tanya – o capítulo que o Rebe quis que eu tivesse citado em meu doutorado. Porque naquele capítulo, Rabi Shneur Zalman explica que os judeus são chamados literalmente irmãos e irmãs uns dos outros porque cada alma judaica está no único D'us e, portanto, somos uma só alma. É apenas em termos de presença corporal que estamos separados uns dos outros. E assim como não pode haver divisões dentro de D'us, também não pode haver divisões dentro da alma coletiva do povo judeu. Portanto, quando vivemos ao nível da alma, há unidade entre os judeus, mas quando vivemos ao nível do corpo, há desunião entre os judeus. Quando vivemos ao nível da alma, cumprimos a ordem de amarás o teu próximo – não como a ti mesmo, mas porque ele é você mesmo. E é essa idéia mística que está no coração da lei judaica.

E eu finalmente entendi por que o Rebe escreveu-me que minha tese estava incompleta sem este capítulo do Tanya. Porque a íntegra da Lei Judaica repousa nele. A própria existência do povo judeu nos últimos 2000 anos dependeu de uma crença que mesmo fora de Israel, mesmo sem poder, mesmo disperso pelo mundo, o povo judeu continua sendo uma nação conectada mutuamente, responsável uns pelos outros – uma única nação ligada por um pacto de responsabilidade mútua. Esta é uma crença mística, mas foi essa crença que nos manteve como um povo desde a destruição do Segundo Templo até hoje.

E foi, obviamente, aquela mesma crença que está por trás de toda ação que o Rebe fazia. Se um judeu sofre, todos sentimos dor. Muitos de nós podemos entender cada sentença como uma metáfora, mas somente um verdadeiro místico pode vivenciar essa frase como uma realidade – pode na verdade sentir a dor.

E é por isso que o Rebe enviava mensagens a todos os cantos do mundo judaico. Porque se um judeu está sofrendo, se um judeu não está inscrito ainda no Rolo de Torá – o livro que é nosso Livro da Vida – ele sente dor.

Já li muitas obras de teologia pós-holocausto. E todas fazem a mesma pergunta. Perguntam o que nos une – o povo judeu – hoje, com todas as nossas divisões e discussões. E vejo neles a mesma resposta. O que nos une como povo judeu hoje são as memórias do Holocausto, o medo do anti-semitismo. O que nos une como um povo é que outro povo nos odeia.

O Rebe ensinava a mensagem oposta. O que nos une, ensinava ele, não é que outro povo não gosta de nós, mas que D'us nos ama; que cada um de nós é um fragmento da Divina Presença e juntos somos a presença física de D'us na terra. Certamente a mensagem – espiritual, mística como é – é tão mais poderosa, tão mais nobre, tão mais benigna que a alternativa.

Estou tentado prestar um tributo esta noite, não apenas a um dos maiores líderes da História Judaica, mas também a uma das mais notáveis idéias do espírito judaico – a idéia de que mesmo quando os vínculos físicos e políticos da unidade judaica estão rompidos, como estiveram durante os últimos 1800 anos, um vínculo místico permanece, ligando judeu com judeu num pacto de amor. Sugeri que aquela idéia, nos dias de Rabi Shimon bar Yochai, salvou o povo judeu de se fragmentar e desaparecer. E é esta mesma idéia que, em nosso tempo, levou um indivíduo extraordinário a transformar o mundo judaico.

Não consigo pensar numa prova mais visível do poder de uma força invisível – a força do místico Ahavat Yisrael, o amor por todo judeu – que o Rebe tanto amou, viveu e ensinou, e o quanto precisamos daquela mensagem atualmente. Que uma porção dupla do espírito do Rebe fique conosco, enquanto procuramos juntos remendar o mundo judaico.