Extraído de uma palestra ministrada pelo Rabino Steinsaltz
em 17 de junho de 2004, no evento que marcou o 10º yahrtzeit do Rebe,
Rabino Menachem Mendel Schneerson, de abençoada memória,
na Biblioteca JFK, em Boston, Massachusetts.

O Talmud, em poucas frases, registra uma disputa que ocorreu há cerca de 2000 anos entre as duas principais escolas ideológicas e haláchicas da época, Beit Shammai ("Casa de Shammai") e Beit Hillel ("Casa de Hillel").

O tema da disputa era: "É melhor para o homem nascer ou não nascer?"

Durante dois anos e meio eles debateram. Quando finalmente chegaram a uma decisão, concordaram que é mais vantajoso não nascer. A única ressalva foi que, uma vez que se nasce, deve-se tornar o seu melhor possível.

Existem centenas de debates entre Beit Shammai e Beit Hillel registrados no Talmud, e a maioria deles trata de questões de leis da Torá e rituais, como, por exemplo, ao nos sentarmos para a refeição de Shabat, devemos primeiro recitar o kidush ou lavar as mãos? Encontrar uma disputa sobre se a existência do homem vale ou não a pena parece estranho no meio dessas outras questões. Qual é a base do desacordo deles?

Se alguém quisesse fazer um resumo geral da diferença entre as duas escolas, seria o seguinte: Beit Shammai era idealista, enquanto Beit Hillel era realista. Beit Shammai pensava em um cenário perfeito, uma existência ideal; Beit Hillel pensava na existência como ela é. Esta é, claro, uma simplificação grosseira, mas é um fio condutor comum em seus debates. Beit Shammai era composto por pessoas do céu. Em tudo o que viam neste mundo, não queriam ver seus limites; queriam vê-los em sua totalidade, em seu significado último. Beit Hillel, por outro lado, se concentrava em problemas e situações da vida como eles realmente são. Isso explica muitas diferenças em várias questões.

Em nossos tempos, neste mundo, seguimos as regras de Beit Hillel. E nos tempos de Mashiach, a lei se reverterá e seguiremos as regras de Beit Shammai. Em um mundo imperfeito, a lei segue Beit Hillel; em um mundo ideal, ela pode seguir a perfeição e as regras de Beit Shammai.

Tudo depende, portanto, de qual é a sua visão de mundo, qual visão da existência você tem diante de si, como você percebe a questão de "o que é o homem?"

Beit Hillel diz que na imperfeição devemos lidar com o que temos. Que é, na verdade, uma questão de "como ser". Beit Shammai diz que não podemos ignorar o grande quadro teórico. Não basta simplesmente fazer o que você tem que fazer, tudo precisa se encaixar em algo maior.

De muitas maneiras, o homem é uma criação que não justifica o esforço investido nele. Na vida real, as pessoas pecam, não se importam. Beit Hillel tentou manter uma visão positiva e disse: estamos aqui, tentamos fazer as coisas. Beit Shammai, no entanto, insistia em perceber o homem em comparação com o que ele poderia ser, em comparação com os anjos. Visto sob esta luz, há imperfeições demais. Nas palavras do Salmo 8:5, Ma enush kee tizkerenhu, "O que é o homem para que te lembres dele?"

A coisa mais notável sobre o Rebe — e isso é algo que se pode ver em tudo o que ele fez, ouvir em trechos de suas discussões com as pessoas, em praticamente todas as frases que ele falou ou escreveu — era sua enorme motivação: sempre superar a si mesmo, sempre fazer mais e além.

Eu vivi isso pessoalmente no meu relacionamento com o Rebe. Sei que não se deve falar de si mesmo, mas o que posso fazer? Este é um assunto sobre o qual sei um pouco...

Há mais de doze anos, escrevi uma carta para o Rebe. Tentei descrever o que estava fazendo, tentei explicar que um projeto em que estou envolvido já é suficiente para ocupar meu dia inteiro, todos os dias. Havia também um segundo projeto, que também era trabalho suficiente para preencher meu dia inteiro. E então havia um terceiro empreendimento que era um trabalho de um dia completo. Disse ao Rebe que estava achando difícil continuar com todos eles e que cada dia ficava mais difícil que o anterior, porque havia muito a ser feito. Então, quais deveriam ser minhas prioridades? O que deveria abandonar? Essa foi a carta que escrevi.

Ele respondeu — esta foi praticamente a última carta que recebi do Rebe — a resposta foi: "continue com todas essas coisas que você está fazendo e acrescente mais a todas elas."

Até agora, avançamos em certos aspectos e, em seguida, falhamos, retrocedemos. Isso é o que compõe a história: as tentativas e fracassos da humanidade.

Ele exigiu todas as coisas. Como posso explicar? Você conhece a famosa história sobre o fazendeiro que vai até o rabino reclamando sobre como sua casa pequena está cheia de crianças. É insuportável. Então o rabino lhe diz para levar uma cabra para dentro de casa — uma cabra barulhenta, cheirando mal e suja. Logo, o fazendeiro volta ao rabino gritando: "Todos os problemas que eu tinha ficaram piores!" O rabino então lhe diz para tirar a cabra de casa. Ele tira a cabra de casa e logo volta para dizer ao rabino que agora tem uma casa grande e maravilhosa.

Essa é uma história muito antiga, mas o que o Rebe fazia era semelhante e, ainda assim, bem diferente.

Quando as pessoas reclamavam de como o trabalho era difícil, ele lhes dava ainda mais trabalho. Quando reclamavam do quanto isso era terrível, ele dava mais tarefas ainda. Ele dizia para "adicionar a cabra" e, depois, para colocar camelos dentro de casa! Essa era a maneira como ele agia o tempo todo. Sempre que alguém reclamava sobre sua incapacidade de lidar com algo ou sobre os momentos difíceis que enfrentavam, ele sugeria: "assuma algo mais."

Obviamente, isso vai contra as leis da natureza. Você tem uma quantidade limitada de espaço, você está confinado pelos limites da condição humana. O que o Rebe fazia? Como ele podia sobrecarregar as pessoas dessa maneira?

Eu darei uma resposta com base na física. Quando eu era jovem, honesto e curioso, eu me interessava por essa área. Existe algo na física. Quando você exerce uma certa pressão sobre algo, há um ponto em que aquilo não aguenta mais. Quando você aplica dez, cem vezes essa pressão, algo acontece. As moléculas colapsam e a própria natureza do objeto muda. Em astronomia, você tem as chamadas "anãs brancas." São estrelas pequenas, do tamanho da Terra, às vezes até menores. A massa que elas contêm é muitas vezes maior do que a do Sol. Cada centímetro cúbico pesa toneladas. Por quê? Porque a matéria colapsou e se tornou algo diferente — as próprias leis mudaram.

De certa forma, era isso que o Rebe queria fazer. Ele queria mudar a própria natureza da matéria humana, do comportamento humano, da maneira como o ser humano funciona. Com todos que ele encontrava, ele tentava mudar sua natureza para algo completamente diferente. Eles não eram mais pessoas comuns; tornavam-se algo novo.

A primeira pessoa com quem o Rebe experimentou isso foi com ele mesmo. Há cartas que ele escreveu em 1950, quando os chassidim insistiram que ele se tornasse Rebe. São cartas incomuns para ele, muito emocionais: "Como posso suportar esse sofrimento? Eu não mereço isso. Eu não quero. Isso não sou eu."

Ele escreve que "não é capaz nem disposto" a assumir essa posição. Ele diz que é como "se arrancassem a carne de seus ossos" quando pediam para ele ser o Rebe. Se ele fosse perguntado "ser ou não ser?", sua resposta teria sido, como Beit Shammai, "não ser." Mas ele fez isso. Ele assumiu algo que insistia que não era para ele. Tornou-se algo além de um ser humano.

Isso nos traz de volta à questão do Talmud. Após dois anos e meio de debate, todos os sábios, tanto os otimistas quanto os pessimistas, tiveram que admitir que o ser humano era um experimento falho. A única conclusão era: "Agora que estamos aqui, façamos o melhor que pudermos." Mas há uma maneira diferente de responder a essa pergunta. Em vez de responder "sim" ou "não", encontrar uma terceira resposta. Foi isso que o Rebe tentou fazer. Ele disse: em vez de responder à pergunta "o homem merece estar neste universo?", vamos criar um novo ser humano, um novo tipo de existência, da qual a resposta deve ser positiva.

Cada vez mais ao longo dos anos, a ênfase do Rebe estava em Moshiach. Ele falava sobre Moshiach repetidamente. Ele deixou claro em seu primeiro discurso público que esse era o assunto que mais o interessava. Ele expressou essa ideia milhares de vezes; em tudo o que dizia, sempre havia a mesma ideia — Moshiach está chegando.

Agora, Moshiach não é algo pequeno que acontece de vez em quando. Moshiach é, de fato, o fim da história e um novo começo. Significa que haverá um momento em que as coisas não só melhorarão, mas serão como deveriam ser. Significa que tudo o que tentamos em todas as gerações, em todas as eras, será realizado. Até agora, avançamos em certos aspectos e, em seguida, falhamos, retrocedemos. Isso é o que compõe a história: as tentativas e fracassos da humanidade.

Moshiach significa que chegará um momento em que os problemas serão resolvidos. A partir de então, não haverá mais falhas. Será o fim dos tempos, "o fim dos dias," como a terminologia bíblica coloca. O fim dos altos e baixos da história humana em criar algo completamente novo e diferente.

Trazer o Moshiach é muito mais difícil do que criar o Estado de Israel ou fundar os Estados Unidos da América. Trazer Moshiach é mudar o mundo de uma forma que nunca volte ao que era. Em vez desse movimento errático da existência, onde cada ascensão é seguida por um fracasso, o Rebe visava mais alto, pedindo às pessoas que fizessem o que não podiam fazer. O que, no pensamento chassídico, é chamado de "b’chol m’odecha." Essa frase aparece no Shemá e é comumente traduzida como "com todas as tuas forças," mas na verdade significa "com todo o seu mais." Significa dar sua vida e tudo o que você possui, e então dar mais. O que é o mais? São as coisas que você não consegue fazer.

Essa era a abordagem do Rebe: colocar tanto trabalho sobre uma pessoa até que ela se torne algo diferente. O Rebe não estava interessado em criar uma "colheita de profissionais de divulgação"; ele queria transformar cada lar em um "Beit Chabad." Ele queria literalmente mudar as pessoas, sua própria essência. Ele continuava pedindo mais, exigindo mais, nunca satisfeito, porque ainda não tínhamos chegado a um nível distinto de existência, ao colapso da matéria, por assim dizer, ao colapso da estrutura existente e à construção de uma estrutura de realidade completamente diferente. Mais compacta, menos vazia, melhor. Não se tratava apenas de mudar algumas pessoas aqui e ali, essa é uma realidade que exige algo que todos devem fazer. Nos últimos anos de sua vida, quando o Rebe clamava que devemos trazer Moshiach agora, ele pressionava mais, novamente e novamente.

O que ele estava falando eram coisas que acreditamos não sermos capazes de realizar, coisas impossíveis, que nunca poderíamos completar em apenas uma vida. Porque se diz que, quando Moshiach vier, entraremos no mundo das impossibilidades, onde alcançamos não apenas o que podemos fazer, mas também o que não podemos...

O Rebe queria realizar algo que fosse muito mais abrangente do que qualquer revolução. Ele queria fazer esse tipo de mudança irreversível na natureza humana, essa mudança na história da humanidade, ele queria que ela se tornasse algo completamente novo.

O Rebe entendia as pessoas, ele as compreendia muito bem, porque muitas delas se revelavam, tornavam-se mais do que desnudas em sua presença. Elas contavam tudo o que tinham a dizer, seus fracassos, dificuldades e fraquezas.

E a mensagem do Rebe para nós era: “Corra! E, se você não puder corer…Ande! E, se você não puder andar, Rasteje! Mas sempre avance, avance, avance!