“O mundo quebra todos, e depois alguns ficam mais fortalecidos nos locais quebrados.” _ Ernest Hemingway
Quebradas
A leitura da história (registrada duas vezes na Torá, em Shemot, Êxodus, na porção dessa semana, e novamente em Devarim, Deuteronômio) é assim: Depois que os judeus criaram o Bezerro de Ouro, Moshê quebrou as tábuas de pedra criadas por D'us, gravadas com os Dez Mandamentos. Moshê e D'us então “debateram” a reação apropriada a essa transgressão e foi decidido que se o povo realmente se arrependesse, D'us daria a eles uma segunda chance. Moshê moldou um segundo jogo de tábuas de pedra; D'us as gravou com os Dez Mandamentos e Moshê as entregou ao povo judeu.
Porém ainda há algumas perguntas que nos vêm à mente.
1 – Moshê, furioso ao ver um bezerro de ouro construído pelos judeus como uma divindade, despedaçou as tábuas de pedra. Ele aparentemente sentiu que os judeus não as mereciam, e não seria adequado dar-lhes esse presente Divino. Mas por que Moshê teve de quebrar e destruir as tábuas celestiais? Ele poderia tê-las escondido ou devolvido ao seu criador celestial.
2 – Os rabinos nos ensinam que “As tábuas inteiras e as quebradas ficaram dentro da Arca do Pacto 1.” Os judeus juntaram os fragmentos do primeiro conjunto de tábuas e então as guardaram na Arca, no Tabernáculo, junto com as segundas tábuas inteiras. Os dois conjuntos de tábuas foram mais tarde levados à Terra de Israel e mantidos lado a lado na Arca, situada no Santo dos Santos no Templo em Jerusalém.
A verdade é encontrada não apenas na integridade, mas também – às vezes primeiramente – nos fragmentos quebrados do espírito humano.Isso parece estranho. Por que eles colocariam as tábuas quebradas no Santo dos Santos, quando esses fragmentos eram um constante lembrete da grande falha moral do povo judeu 2. Por que não apenas descartá-los, ou colocá-los num local isolado e seguro?
3 – Em sua eulogia para Moshê, a Torá escolhe este episódio de quebrar as tábuas como o ponto alto e o clímax das realizações de Moshê.
Nos versículos finais de Devarim lemos: “Moshê, o servo de D'us, morreu ali na terra de Moab… E ali não surgiu um profeta em Israel como Moshê, a quem D'us conheceu face a face; todos os sinais e maravilhas que D'us enviou à terra do Egito… aquela mão poderosa, aqueles atos corajosos, que Moshê fez perante os olhos de todo Israel.”
O que Moshê fez “perante os olhos de todo Israel?” Rashi 3, em seu comentário sobre a Torá, explica “Que seu coração o fez quebrar as tábuas perante os olhos deles, como está escrito, ‘e eu as quebrei perante seus olhos.’ D'us então concordou com essa opinião, como está escrito, “que você quebrou – Eu afirmo sua força por tê-las quebrado.”
“Não há nada mais inteiro do que um coração partido.”Isso é chocante. Seguindo todas as grandes realizações de Moshê, a Torá escolhe concluir seu tributo a Moshê aludindo a este episódio de quebrar as tábuas! Com certeza Moshê foi justificado em quebrar as tábuas, mas isso pode ser dito para mostrar sua maior realização? E sobre tirar os judeus do Egito? Moldá-los como um povo? Partir o Mar Vermelho? Receber a Torá de D'us e transmiti-la à humanidade? Liderá-los durante quarenta anos num deserto?
Por que a Torá escolhe este episódio trágico e devastador para captar o ponto alto da vida de Moshê e como o tema com o qual concluir a Torá inteira, todos os cinco livros de Moshê?
Nos Fragmentos
Precisamos examinar este episódio inteiro sob um ponto de vista mais profundo. Moshê não quebrou as tábuas porque estava irado e perdeu o controle. Mas sim, a quebra das tábuas foi o início do processo de cura. Antes que o bezerro de ouro fosse criado, os judeus podiam encontrar D'us na totalidade das tábuas, dentro da integridade espiritual da vida. Agora, depois que o povo tinha criado o bezerro de ouro, a esperança não estava perdida. Agora eles iriam encontrar D'us nos pedaços quebrados de algo que já fora um lindo sonho.
“Há tempos em que D'us deseja suas mitsvot”, disse o Rebe, “e outros tempos e que Ele deseja suas ‘tábuas quebradas.’”Moshê estava ensinando ao povo judeu a mensagem mais importante do Judaísmo: a verdade poderia ser moldada não apenas a partir da vida espiritualmente perfeita, mas também a partir dos pedaços quebrados da psique humana corrupta e desmoralizada. As tábuas quebradas, também, possuem a luz de D'us.
É por isso que os sábios nos dizem que não apenas as tábuas inteiras, mas também as quebradas, estavam situadas no santo dos santos. Isso transmitiu a mensagem articulada no próprio Gênesis do Judaísmo: a partir dos pedaços quebrados da vida você pode criar um santo dos santos.
D'us, assim dizem nossos sábios, afirmou a decisão de Moshê de quebrar as tábuas. D'us disse a ele: “Obrigado por quebrá-las 4.” Porque as tábuas quebradas, representando os pedaços quebrados da existência humana, têm sua própria história para contar; elas contêm uma luz própria. A verdade é encontrada não apenas na integridade, mas também – às vezes primeiramente – nos fragmentos quebrados do espírito humano 5. Há momentos quando D'us deseja que nos conectemos a Ele como um povo inteiro, com clareza e um senso de plenitude; há momentos ainda mais profundos quando Ele deseja que O encontremos nas experiências abaladas de nossas vidas.
Esperamos e rezamos para sempre apreciarmos as “tábuas inteiras”, mas quando encontramos as quebradas, não deveríamos correr delas ou sermos desprezados por elas; com ternura devemos abraçá-las e levá-las ao nosso “santo dos santos”, lembrando a observação de um dos Rebes de que “não há nada mais inteiro que um coração partido.”
Com frequência acreditamos que D'us pode ser encontrado em nossos momentos de integridade espiritual. Mas e quanto aos conflitos que atormentam nossa psique? E quando estamos lutando contra a depressão, vício ou confusão? E quando enfrentamos desespero e sofrimento? E um conflito entre uma existência profana e uma existência concentrada em D'us? Associamos “religião com momentos “religiosos”. Mas e quanto aos nossos momentos “não-religiosos”?
O que Moshê conseguiu ao quebrar as tábuas foi a demonstração da verdade de que aquilo que chamamos de santidade pode ser conseguido da própria alienação de uma pessoa de D'us. A partir do próprio torvelinho de sua falha psicológica ou espiritual, uma nova santidade pode ser descoberta.
É com essa nota que a Torá escolhe culminar seu tributo à vida de Moshê. A maior realização de Moshê foi sua habilidade de mostrar à humanidade como podemos juntar nossos pedaços e transformá-los num santo dos santos. Quando Moshê quebrou aquelas tábuas sagradas, ele para sempre permitiu a jornada das almas fragmentadas entre nós.6
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