"O que aconteceu?" perguntei ingenuamente. Pela primeira vez, ouvi as palavras "reféns", "bebês", "um massacre".

"Você tem certeza?" insisti, não querendo acreditar. Parecia um eco reminiscente dos rumores que Elie Wiesel ouviu quando era criança. Era inacreditável demais para ser verdade. Eu não queria acreditar. Não conseguia acreditar. Ainda acho difícil de acreditar.

Simchat Torah 5784 será para sempre lembrado como um dos dias mais sombrios da história judaica. É uma sombra que perpassa em nossa consciência judaica. Nos despertou de nossa apatia, de nossa inocência. Nos levou a refletir, a ser mais ativos, mais judeus.

De muitas maneiras, esta história é muito pessoal para mim. É a história da minha busca pessoal por alívio concreto, para encontrar respostas, para entender a dor em minha alma. Por que estava doendo tanto? Eu nunca conheci Ariel Bibas, nem nenhum dos preciosos soldados que caíram no último ano. No entanto, chorei em funerais como se fosse um membro da minha própria família que havia caído. Eu precisava entender como e por quê.

Como é possível amar e sentir falta de pessoas que você nunca viu?

Intelectualmente, eu sempre soube que o povo judeu é um corpo espiritual e interconectado, mas minhas viagens no último ano, em Israel e ao longo da "Trilha do Hummus", as rotas orientais que muitos jovens israelenses percorrem após completarem o serviço militarmilitar, me mostraram o quão real, forte e inquebrável é nossa conexão.

Chanucá em Gaza

No Laos, conheci Raz Barabi, um soldado destemido e forte da Unidade Duvdevan, um judeu tradicional, não tão observante, e com um coração de ouro. Ele relembra, nos levando de volta à zona de guerra, às explosões ensurdecedoras, ao sempre presente Anjo da Morte. "Foi um daqueles momentos cujo peso espiritual era impossível de ignorar", ele nos diz. "Aquilo me reanimou, acendeu minha crença, me lembrou por que estamos aqui, por que estamos lutando."

Eu sabia que estava prestes a ouvir uma joia.

"Era Chanucá", ele continua. "Estávamos estacionados em uma casa em Jabalia, no norte de Gaza. Soldados da minha unidade queriam acender as velas de Chanucá, mas era perigoso— as luzes poderiam nos expor. Qualquer movimento poderia revelar nosso esconderijo. Mas era Chanucá.

"E então, mascaramos todas as janelas, nos amontoamos em um canto e acendemos as mesmas velas que os judeus acendem há milhares de anos. Cantamos as mesmas músicas que os judeus cantaram nos barracões, no shtetl, em todos os cantos do mundo, em todas as situações perigosas. Lá estávamos nós em Gaza, em um lugar mais escuro que a maioria, lutando por nosso povo, não apenas fisicamente, mas com o poder das luzes."

Olho para Raz e percebo que ele já não está mais aqui; ele foi transportado para aquele momento, e suas descrições vívidas me levaram com ele.

"Não houve sentimento igual. Uma luz simples, na escuridão ensurdecedora. Aquilo me lembrou por que eu estava lutando; me deu forças para seguir em frente."

Uma história simples nas circunstâncias mais complexas. Não foram nem suas palavras que me comoveram, mas seu tom. No momento de acender as velas, ele teve uma clareza inegável. Ele viu a composição espiritual deste mundo através da óbvia energia Divina que cada um de nós carrega dentro de si. Foi um momento como o que todo judeu anseia por experimentar. Um momento que nos lembra quem somos, por que estamos lutando e o que representamos.

Amigos Consolando Amigos

Acabei de aterrissar em Hoi An, no Vietnã, quando escuto Matan Sussman perguntando a dois amigos que claramente acabara de conhecer: "Essa é uma foto de Aloush na capa do seu celular?"

"Sim, ele é nosso amigo", respondem os dois amigos.

"Eu estava com ele em Gaza na noite em que ele caiu", diz Matan baixinho. Seus novos amigos ficam surpresos, sóbrios, mas curiosos, e se aproximam. Há muito hebraico, muita conversa sobre o exército, mas eu apenas observo enquanto dois homens ouvem os eventos que levaram à morte de seu amigo de infância, Liav Aloush, que serviu na Tzevet 100, a equipe da elite da Unidade Duvdevan.

Eu não entendo todos os detalhes, mas percebo que houve terroristas, explosões e muitos tiros.

"Tudo o que poderia ter dado errado, deu errado", disse Matan com tristeza.

Liav Aloush, 21, que caiu em Khan Yunis em 17 de dezembro de 2023.
Liav Aloush, 21, que caiu em Khan Yunis em 17 de dezembro de 2023.

Essas são pessoas jovens e comuns, de férias no Vietnã, mas os horrores que testemunharam são indescritíveis. Mas a conversa não termina ali; logo a conversa sombria se transforma em sorrisos e risos, enquanto alguém grita "Achla Aloush", uma gíria para "Incrível Aloush", e eles começam a relembrar a vida que ele viveu, as alegrias que experimentaram juntos em suas breves vidas.

Como eles podiam rir e sorrir? Me perguntei. Como consegue viver suas vidas normalmente depois de toda a dor que testemunharam? O que eu experimentei na vida morando em uma cidade pequena, pitoresca e sem Guerra em Sydney? O que me deu o direito de sentir a dor também? Eu não estava lá; eu nunca tinha conhecido Aloush.

"Eu não contei todos os detalhes", Matan me disse mais tarde naquela sexta-feira à noite no Beit Chabad. Passaram-se vinte e quatro horas desde que eu testemunhei o encontro e não dormi bem na noite anterior. Eu sonhei com a zona de guerra, o caos e os sons, e, claro, o rosto de Aloush que tinha ficado gravado em minha mente por causa do adesivo na capa do celular.

Mais tarde, vi os dois amigos de Aloush sentados com Matan, bebendo uma cerveja. Eles tinham se encontrado apenas 48 horas antes, mas compartilharam uma história. Compartilharam Aloush.

Lembrando Shilo em Tishá B’Av

Tishá B’Av está quase chegando. Estamos na estrada, preparando um cuscuz de última hora em um estacionamento com ovos que pegamos no mercado local. Arrumamos tudo e então me lembrei: Hoje é o aniversário de Shilo.

Shilo Rauchberger, 23, um oficial da Brigada Golani, foi morto em 7 de outubro, defendendo sua base.
Shilo Rauchberger, 23, um oficial da Brigada Golani, foi morto em 7 de outubro, defendendo sua base.

Fui apresentado pela primeira vez a Shilo Rauchberger através de uma pulseira de cobre usada por dois de seus amigos.

"O que está escrito na pulseira?" perguntei inocentemente.

"Aprenda a ver o lado bom e comemore-o", explicaram.

Quem era ele e por que, entre tantas coisas, ele gravou em uma pulseira?

Quando me sentei para escrever este artigo, finalmente tive coragem de ligar para seus três melhores amigos, Nadav, Matan e Beeri, para perguntar, saber mais; por mim, por você, para lembrar aqueles que sacrificaram suas vidas por nós.

A primeira coisa que Matan descreve é o que Shilo estava vestindo quando se conheceram na 9ª série da escola. "Ele estava vestindo uma daquelas camisetas de acampamento, como as que dão no B’nei Akiva, cortada ao redor do pescoço. Ele adorava essas camisetas", lembra, "Ele sempre usava."

Olho para minha camiseta; há algo escrito em hebraico na frente e atrás. "Eu também adoro essas camisetas", penso comigo mesmo. Eu tento imaginar perder meu melhor amigo da escola. Estremeço.

Matan Sussman (à direita) com seu amigo Shilo Rauchberger na 9ª série.
Matan Sussman (à direita) com seu amigo Shilo Rauchberger na 9ª série.

"Como você faz isso?", pergunto desesperado, como se houvesse alguma fórmula secreta para superar a tragédia incessante que tem nos sufocado nos últimos 365 dias.

"Eu me conforto sabendo que ele lutou por Am Yisrael até o fim; essa era a única maneira que Shilo faria. Ele faria qualquer coisa para proteger seus soldados, seu povo, sua terra—nossa terra", diz Matan com convicção.

Shilo Rauchberger nasceu em Eli em Tisha B’Av de 2000, filho de Dudi e Nirit. Ele era um entre sete filhos. "Ele sempre tinha um sorriso no rosto. Esta foto é o Shilo clássico", diz, enquanto me envia a foto que incluí neste artigo.

Shilo era comandante na Brigada Golani 51 da Yeshivat Hesder, servindo no posto avançado de R&D no sul, na fronteira de Gaza. Ele abriu mão da oportunidade de ser um oficial de elite da Unidade Especial Egoz para poder inspirar pessoas de diferentes partes da sociedade israelense na Brigada Golani, não apenas aqueles nas unidades especiais.

"Esse era o Shilo", explica Matan, "ele não era autoritário, mas seus soldados se saíam melhor do que qualquer outra unidade. Eles simplesmente o amavam e respeitavam."

Eu não quero perguntar sobre o último dia dele. Meu eu habitual, falante e curioso, perdeu a capacidade de fazer esse tipo de pergunta. Mas ele não esperou que eu perguntasse…

"Era Simchat Torá. Shilo organizou para que um rabino viesse passar a festa na base. Quando as sirenes soaram nas primeiras horas, vestido com uma de suas camisetas favoritas, ele reuniu todos os seus soldados na sala segura do refeitório. Shilo estava lá, segurando a porta, enquanto uma chuva de granadas, balas e gritos em árabe caía sobre eles. Dedicado aos seus soldados até o fim, Shilo ficou firme na porta, apesar de estar gravemente ferido por estilhaços. Quando ele não pôde mais ficar de pé, ele se deitou, continuando a dar comandos aos seus soldados para proteger a base, até que sua alma sagrada deixou este mundo. Nenhum terrorista conseguiu passar pela base para o território civil. A maioria dos kibutzim e moshavim do sul, na fronteira com Gaza, foi salva. Mas a que preço."

A sala segura no posto avançado que Shilo morreu protegendo.
A sala segura no posto avançado que Shilo morreu protegendo.

Um estande de Shabat no Kibutz Eilot

Estou sentado em uma cafeteria em Pai, Tailândia, quando ouço um pai e suas três filhas mencionarem que são do Kibutz Eilot.

"Kibutz Eilot?!", intervenho. "Passei todas as sextas-feiras gerenciando um estande de Shabat lá, por cinco meses", falo animadamente.

"Com a Danielle?", perguntam, igualmente animados.

Imediatamente, eles pegam um telefone e enviamos um vídeo para Danielle. Danielle gerencia o mercado semanal de sexta-feira em um kibutz logo fora de Eilat.

Como surgiu o estande de Shabat?

"Pouco antes de Chanucá, recebemos uma ligação", lembra a Rebetsin Chanie Klein, emissária do Chabad em Eilat “e, honestamente, a mulher mais incrível que já conheci. "

O interlocutor explicou que o Kibutz Eilot estava buscando algo mais depois do trauma dos ataques de Simchat Torá em 7 de outubro, e perguntou se o Chabad de Eilat estaria interessado em abrir um estande na feira de sexta-feira deles.

"Eu nunca poderia ter previsto isso", exclamou Chanie animadamente. "Um kibutz secular pedindo um estande de Shabat em sua feira local de sexta-feira? Foi um milagre moderno."

Chanie trouxe seus próprios castiçais de prata para colocar no centro do nosso estande e, pelos próximos cinco meses, distribuímos velas de Shabat todas as sextas-feiras, aos milhares. Na minha última sexta-feira, recebi uma oferta de trabalho no kibutz local, muitos abraços e beijos emocionados de despedida.

Danielle do Kibutz Eilot e a Rebetsin Chanie Klein no primeiro estande sobre o Shabat, na feira de sexta-feira.
Danielle do Kibutz Eilot e a Rebetsin Chanie Klein no primeiro estande sobre o Shabat, na feira de sexta-feira.

Chalá Bake no campo de batalha

"Chana, você voltará para assar chalot conosco?", perguntou Shira, uma soldada que eu tinha acabado de conhecer em um churrasco em uma base no Golan.

"Claro", concordei, sem hesitar. “Eu sou Chabad, afinal de contas.”

Mas eu estava indo para a Austrália em dois dias. "Que tal amanhã?", ouvi eu mesma sugerir

Honestamente, eu nunca me senti particularmente conectada à Chalá Bake. Mas desde os ataques, parece uma tábua de salvação. Eu preciso disso, anseio por isso: Mulheres se reunindo, assando pão, geração após geração. O poder da prece e a energia mística que é inegavelmente palpável—não há nada igual. Rimos juntas, choramos juntas, viajei para bases em todo Israel promovendo isso. Não por elas, mas por mim. É a minha tão necessária terapia espiritual.

"Espera, vocês têm um forno na sua base?", perguntei a Shira. Eu sabia que a resposta seria negativa. Eu tinha visto a base. Era um campo lamacento sem eletricidade. Não havia nem um piso de concreto lá; meus sapatos foram engolidos pela lama. Eu tinha que encontrar uma solução.

"Tenho uma pergunta estranha", gaguejei ao telefone para um hotel aleatório em Moshav Keshet, nas proximidades. "Por acaso vocês têm um forno que eu possa usar por uma hora? Estou tentando organizar um Chalá Bake para soldadas em uma base próxima."

"Estamos fechados por causa da guerra", disse a mulher do outro lado da linha, "mas deixe-me ligar para três números de famílias no moshav. Tenho certeza de que você pode usar os fornos domésticos delas."

Sua resposta foi tão calma e indiferente, como se eu tivesse perguntado qual era o sobrenome dela. Obviamente, uma garota australiana aleatória ao telefone pode vir e usar um forno privado, em uma casa particular, sem perguntas…

Só em Israel.

Chalá Bake com a Unidade de Artilharia nas Colinas do Golan.
Chalá Bake com a Unidade de Artilharia nas Colinas do Golan.

Claro, uma das pessoas que contatei me indicou outra família que tinha um forno maior. E assim, depois de completar um dos Chalá Bake mais memoráveis—em uma tenda, em uma base de artilharia, em um campo nas Colinas do Golan, em nossa terra natal—chegamos à casa de Sheri às 22h para deixar as bandejas de chalot para assar em seu espaçoso forno.

"Sem problema; eu as levarei até a base pela manhã", ela nos diz.

Agora são 23h, temos uma viagem de quatro horas de volta ao centro e eu tenho um voo para a Austrália na manhã seguinte. Carrego a lama sagrada e seca nos meus sapatos, da nossa terra, da base no Golan, por todo o caminho até a Austrália.