O chassid Rabi Shmuel Munkes estava viajando para passar Rosh Hashaná com seu Rebe, Rabi Shneur Zalman de Liadi, quando ficou detido numa pequena aldeia para o Shabat.

Logo depois que terminou o Shabat, toda a aldeia se retirou para dormir cedo. Alguns minutos antes da meia-noite, o shamash começou a fazer sua ronda com uma lanterna numa das mãos e uma maleta na outra, batendo nas janelas de cada casa e chamando: "Acorde! Acorde! Acorde para o serviço do Criador!"

Todos da aldeia pularam da cama, se vestiram rapidamente e correram até a sinagoga iluminada para Selichot, a prece solene que abre os dias festivos de Rosh Hashaná.

Na casa do anfitrião de Rabi Shmuel houve muita correria. Toda a família tinha se vestido e estava reunida à porta, livros de preces na mão, prontas para ir à sinagoga; porém seu prestigioso hóspede ainda estava no quarto. Finalmente, o aldeão bateu levemente à porta de Rabi Shmuel. Não houve resposta. Ele entrou devagarinho no aposento. Para sua surpresa, encontrou o chassid profundamente adormecido.

"Reb Shmuel, Reb Shmuel" – insistiu ele, sacudindo o hóspede. "Vamos logo. Selichot."

A única reação de Rabi Shmuel foi mergulhar ainda mais sob as cobertas.

"Ande, Reb Shmuel" – insistiu o dono da casa. "Eles estão para começar na sinagoga a qualquer momento."

"Começar o quê?" perguntou Rabi Shmuel, obviamente contrariado. "É meia-noite. Por que está me acordando no meio da noite?"

"Qual o problema com você?" gritou o aldeão. "esta noite é Selichot! Um judeu distinto como você! Ora, se eu não o tivesse acordado, dormiria durante Selichot inteiro!" "Selichot?" perguntou Rabi Shmuel. "O que é Selichot?"

O anfitrião ficou fora de si, incrédulo. "Está zombando de mim? Não sabe que hoje foi o Shabat anterior a Rosh Hashaná? Todo homem, mulher e criança da aldeia está na sinagoga neste momento, tremendo de entusiasmo. Logo o báal tefilá começará a entoar as preces de Selichot e a comunidade inteira romperá em lágrimas, rezando e implorando a D’us por um ano bom…"

"Então todo este alvoroço é por causa disso?" perguntou Rabi Shmuel. "Vocês estão indo à sinagoga para rezar? O que há de tão urgente que não pode esperar até amanhã cedo? Estão rezando para pedir o quê?"

"Há muito por que rezar, Reb Shmuel" – suspirou o aldeão. "Rezo para que a vaca dê leite suficiente para manter meus filhos sadios. Rezo para que as cabras atinjam um preço bom no mercado este ano, pois logo terei que casar uma filha. Rezo para que meu cavalo não quebre uma perna, D’us não o permita, como aconteceu no ano retrasado…"

"Não entendo" – interrompeu Rabi Shmuel. "Desde quando homens adultos acordam no meio da noite para rezar por um pouco de leite?"

O aldeão estava certo

Rabi Shmuel Munkes queria imprimir em seu anfitrião a idéia de que há mais a se preparar para Rosh Hashaná do que rezar a D’us pelas necessidades materiais. Rosh Hashaná é o dia no qual proclamamos D’us como Rei do Universo, e nos comprometemos a obedecê-lo e servi-lo. É um tempo para teshuvá, de arrepender-se pelos pecados cometidos e tomar a resolução de não repeti-los.

Este é o tempo de abordar D’us com uma "lista de compras" das nossas necessidades materiais?

E apesar disso, uma olhada ao livro de preces de Rosh Hashaná mostra que está repleto de pedidos para a vida, saúde e sustento. Pois em Rosh Hashaná, a energia Divina que dá vida a toda a criação é "renovada" por mais um ano, e a toda criatura é concedido seu quinhão de vida, felicidade e riqueza. O aldeão simples estava certo; Rosh Hashaná é a ocasião de rezar para que a vaca dê leite e as cabras alcancem bom preço no mercado. Como, na verdade, podemos conciliar a altura do dia com o assunto mundano de algumas das suas preces?

O próprio conceito de prece encerra o mesmo paradoxo. A prece é a comunhão da alma com seu Criador, uma ilha celestial num dia que de outra forma seria apenas terreno. De fato, a palavra hebraica para "prece", tefilá, significa "apego", sendo o esforço para nos elevarmos acima de nossas preocupações comezinhas e fazermos uma conexão com nossa Divina fonte. Porém a essência da prece, o alicerce sobre o qual seu edifício espiritual se apóia, é nossa súplica ao Todo Poderoso para que Ele nos proporcione aquilo que precisamos no dia-a-dia.

O paradoxo da prece é ampliado mil vezes quando se trata das preces de Rosh Hashaná. Nesses dias, não estamos apenas perante D’us; estamos coroando-O Rei, empenhando a Ele a total abnegação de nosso próprio ser, e todos os seus desejos, à Sua vontade. Que espaço há neste dia para a própria noção da necessidade pessoal?

Uma Morada Abaixo

Somente o homem pode tornar D’us Rei, pois somente o homem possui a capacidade de livre arbítrio – sem o qual o próprio conceito de "soberania" carece de significado. Ao nos submeter livremente à soberania Divina em Rosh Hashaná, redespertamos Seu desejo de ser Rei e de infundir nova vitalidade em Seu envolvimento com toda a criação.

O desejo Divino de ser Rei é também descrito por nossos Sábios como um desejo de "uma morada nos reinos inferiores" – um lar no mundo físico. Por que o mundo físico? Porque somente na arena física existe a verdadeira escolha. O mundo do espírito está naturalmente inclinado para sua fonte Divina. Assim, nosso serviço a D’us nas áreas espirituais de nossas vidas é um serviço "forçado", estimulado pelas inclinações naturais de nosso ser espiritual. Por outro lado, quando convidamos D’us para nossa vida física, quando O servimos por meio de atos físicos e com os materiais de nossa existência física, estamos realmente escolhendo nos submeter a Ele, pois este tipo de servidão vai contra o próprio cerne de nossa natureza física.

Assim, quem considera "inadequado" implorar a D’us por leite para seus filhos em Rosh Hashaná, rejeita um aspecto fundamental da Divina soberania. Coroar D’us como Rei significa aceitá-Lo como soberano em todas as áreas de nossa vida, incluindo – e principalmente – nossas necessidades e exigências mundanas. Significa reconhecer nossa total dependência d’Ele, não apenas para nossa nutrição espiritual, mas também pelo pedaço de pão que sustenta nossa existência física.

Vistas sob esta ótica, nossas necessidades não são pessoais, e nossas exigências não são egoístas. Sim, estamos pedindo comida, saúde e bens; porém não estamos pedindo como um súdito os solicita a seu rei – como um servo pedindo ao amo os meios para melhor servi-lo. Pedimos dinheiro para cumprir a mitsvá da caridade; força, para construir uma sucá; alimento, para manter corpo e alma juntos para que nossa vida física sirva como uma "morada nos reinos inferiores" que abrigue Sua presença em nosso mundo.